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A ideia não é minha, é do Madeira - fazer um blogue inteiramente dedicado aos taxistas da nossa praça.
Eu vou um pouco mais longe e digo-vos isto: era um livro dos diabos (e agora que nós, jornaleiros, temos todos a mania que somos artistas), modéstia à parte, texto Diana Ralha, fotos MMM, igual a best seller. De caras.
A primeira história desse livro seria sobre a Isilda, a telefonista da Retalis, que eu nunca vi na vida, mas que sabe o meu número de crédito de cor (é um número com 10 algarismos), que pergunta sempre pela Carolina, pelo David e pelo Gaudi (de acordo com a Isilda, somos os mais simpáticos jornalistas do país; já tu Madeira, que comunicas com as senhoras da Retalis através de monossílabos - crédito; viriato; miguel madeira -, nunca vens à baila), que me dá conselhos sentimentais e de puericultura, que estranha a minha ausência, que me envia sempre taxistas simpáticos.
A segunda história seria, seguramente, sobre a senhora do 31 - a enorme chauffeur de 54 anos, ex-técnica de higiene e segurança no trabalho, reformada há 12 anos da Inspecção Geral do Trabalho: "se aqueles gulutões dos ministros podem acumular reformas milionárias com vencimentos, porque é que eu não posso??? Além disso, está tudo muito bem feito com o meu patrão; não há risco de ser apanhada", garante-nos. Se o seu anterior empregador a apanha, a senhora do 31 está feita ao bife: é que ela trabalha 16 horas no seu táxi potente. Tudo por uma boa causa, claro está: para pagar os estudos à sua "tropa".
A senhora do 31 tem uma "tropa" exemplar. Fizeram um acordo estratégico da maior importância, a senhora do 31 e a sua tropa de quatro descendentes. Enquanto a "tropa" quiser estudar, a senhora do 31 pega no Táxi todos os dias à uma da tarde e só descola as mãos do volante às cinco da manhã.
A senhora do 31 tem dois filhos doutorados. Estudam nos Estados Unidos. A senhora do 31 é a mulher mais orgulhosa da sua prole que eu já conheci.
Porquê motorista de táxi?, pergunta o Cerejo, a caminho do Parque das Nações. Porque aos 42 anos, uma mulher, desempregada, ainda que com imenso currículo e experiência, está morta para a vida. "Um dia, depois de estar há muito tempo em casa, vi um anúncio no jornal, a pedir motoristas de Táxi e pensei: porque não? Sempre gostei muito de conduzir..."
A senhora do 31 é alucinada a conduzir. Ia a 180 Km/h e eu só pensava, olhando aterrorizada pela janela, para o separador central de betão daquela avenida/autoestrada que vai para a Expo: "São Cristóvão, protege-me que eu não levo cinto e esta mulher é louca, eu tenho uma filha para criar e se ela tem que fazer uma travagem brusca nem a alma se me escapa..."
O São Cristóvão ouviu as minhas preces, jantei com o professor Carmona, apanhei, no regresso, um motorista patusco numa van da Mercedes (lamentavelmente não me recordo do número do Táxi), com quem falei sobre as maravilhas da maternidade. O senhor da carrinha Mercedes recebeu, por milagre, depois de oito anos de tentativas inglórias, um anjinho, o Betinho. Em frente à rua Viriato, sacámos dos nossos telemóveis com máquinas fotográficas e mostrámos, embevecidos, os nossos filhos - o nosso passaporte para a eternidade.
Foi uma noite boa.
Quase não pensei no defunto.
Pena que o morto tenha vindo do além, hoje, ao início da tarde, assombrar-me o meu gmail.
Todos nós temos fantasmas no armário.
1 comentário:
essa ideia do blog para escrever sobre cada taxi e seu respectivo motorista nao era nada mal pensado! nada mal pensado,mesmo!
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