segunda-feira, julho 31, 2006

Trolha (a experimentar profissões que me podem dar um rendimento decente, ou pelo menos pagar o colégio da Carolina)

trolha
A primeira experiência: trolha (é parecido com tralha, decidi começar por aqui - há poucas coisas que me animam mais do que um joguinho de palavras - há quem se divirta a jogar Solitaire no horário de expediente, quem saiba arrotar todo o abecedário com mestria, por isso, cada um com a sua).
A remodelar 37 metros quadrados de património da família e a ser paga para isso. A Magui podia contratar alguém, mas eu tenho bom corpinho para as obras, e preciso, urgentemente, de dinheiro. Não sei se me faço entender. Não é para luxos. É para as coisas básicas. Pagar as contas e tal, o que me lembra que tenho a Netcabo atrasada, que os seguros do carro, casa e o de vida devem estar quase, quase a chegar ao correio e a deixarem-me, de novo, com a corda presa ao pescoço. Se calhar, a família pode-me contratar para eu lavar as escadas na Avenida do Brasil. Quando o ordenado não estica mais, apesar dos preços muito baixos do Lidl de Xabregas (com a sua fauna autóctone, inspiradora dos meus belos textos), quando as taxas de juro sobem de três em três meses, quando a miúda precisa de bibes, sapatos e Noddys, muitos, de todos os feitios e tamanhos, para evitar sindroma de abstinência, pega-se em tudo: na vassoura, nas folgas, no rolo e na tricha. Sem hesitar, sem nunca hesitar. Trabalhar nunca fez mal a ninguém, só dá uns calos nas mãos e umas noites de sono pesado, que passam a correr.
Arruina as unhas ser trolha (ser tralha, também não lhes faz muito bem: partem-se com a raiva dactilografada em teclados macios). Dá cabo da produtividade literária - neste ritmo, nunca mais chego aos mil posts. Faz doer as costas e as mãos (pintar paredes dá mais tendinites do que escrever textos a metro - e enquanto escrevo isto, o gato 200 gramas trepa pelas pernas do senhor 50.000 e fica pregado às passadeiras do cinto; vou fotografar).
200 gramas
Mas sabe muito bem, a recompensa pelo trabalho não ser aleatória, ser causa-efeito: trabalhas bem, recebes bem; pintas paredes até às três da manhã, tens a metade que te compete, da mensalidade do Valsassina, paga por seis ou sete meses.
Próxima profissão acima dos dois mil euros mensais que vou experimentar?
Enquanto pensam, eu vou ali pintar um tecto de casa-de-banho e já volto.

sábado, julho 29, 2006

quarta-feira, julho 26, 2006

A casa

Tenho oito ou nove anos outra vez, um fato-de-banho amarelo fluorescente com folhos rosa choque nas costas, há um par de gémeos cujos nomes começavam por G, sentados nas escadas da estufa, uma trança molhada que chega até ao rabo, e o meu tio Zé a atar-me os cordões do colete insuflável na borda da piscina, e o meu pai, lá dentro, a garantir-me que acabo o dia a saber nadar (há também o Paulo e o Bernardo, muito pequeninos, sobretudo o Paulo - há fotos disto hei-de as encontrar -, sentados um de cada lado dos gémeos que apenas se distinguem por um minúsculo sinal de nascença, com braçadeiras do mesmo padrão que o colete que o meu tio Zé me aperta como um espartilho, e há copos de Tang na mesa do terraço).
Há a mãe dos gémeos, uma mulher muito magra, de olhos claros e dentes de cavalo (há, amanhã, por falar nisso, uma ida urgente à ortodontista, e sei perfeitamente que o seu veredicto será que tornarei a ter que usar por uns meses um sorriso metálico), que me ensina a boiar, com uma paciência e doçura que ainda hoje não esqueço.
Não foi o Zé Ralha que me ensinou a nadar; nem nessa nem noutra tarde; também não foi um peixinho do mar: foi o meu tio Manuel, algures entre a Fonte da Telha e a Praia do Abano (eu sei, apesar de a minha desorientação congénita, que estas duas praias estão separadas à nascença), e no banco de trás de um Toyota Corolla encarnado, que ainda dorme no parque de estacionamento da Estados Unidos, eu e o Hugo apostávamos a cor da bandeira da praia, e o meu tio ensinou-me a nadar num mar crespado, interdito a banhos.
Há quem sonhe ter muito dinheiro, mandar em muita gente e decidir o destino de milhões com um estalar de dedos peludos. Há quem salve passarinhos e use barbas enormes; há quem destrua árvores e não saiba estacionar convenientemente o automóvel; há quem fique com urticária no ante-braço ao mínimo sinal de stress - e hoje, curiosamente, quando a Magui me telefonou a dizer que estou notificada para comparecer num Tribinal Criminal como testemunha de um crime que não faço ideia qual é, ou quem o cometeu, a pele não implodiu e continuou macia como sempre acorda e não escamosa como a das cobras. Há quem fume cigarro atrás de cigarro, enquanto escreve posts que não têm um princípio, um meio ou fim. Há quem leve choques eléctricos nos joelhos e goste da massagem do fisioterapeuta estagiário depois das descargas eléctricas. Há quem tatue o sagrado coração de Maria nas costas - eu cá ainda pinto a Teresinha nas pernas para esconder as varizes. Há quem durma no quarto dos fundos, constipado. Há quem durma no outro quarto, e sonhe com as aventuras do Noddy, e há um gato de duzentas gramas que ronrona embalado pelo som das teclas. Neste preciso momento, há quem envie o jornal de amanhã para a gráfica; quem faça contas à vida a pensar como vai aguentar até à próxima semana com o ordenado que entrou há muito em combustão espontânea. Há quem pense, muito, quem roa as peles do pai-de-todos a pensar nos amigos distantes, mesmo quando estão na mesma cidade. Há quem faça trinta por uma linha, quem chore pela morte de uma irmã octogenária, com um revólver, quietinho, na mesa de cabeceira (e enquanto isso, aposto, há quem fume um cigarro às escondidas, na casa-de-banho).
Há quem queira tudo; há quem não queira nada. Eu só queria uma casa. Uma casa onde me pudesse plantar ao sol, no canteiro, com os meus amigos. Uma casa com piscina, para a Carolina ficar com as mãos e com os pés enrugados todas as tardes dos Verões da nossa vida.
Eu hoje estive na casa. O coração quase que me explodiu de amor, por isso não faço grande sentido, está a transbordar, como a piscina feita à medida da minha avó. Mas na casa, neste momento, há uma piscina de águas paradas iluminada por uma lua nova muito esguia, quase anoréctica; há mais palmeiras do que no jardim botânico, que se entretêm a contar os mexericos que ouviram sobre os dragoeiros; há um eucalipto tombado desde o Inverno sobre o lago das carpas encarnadas; há cinco quadros por metro quadrado de parede; há uma biblioteca que nunca mais acaba, e dois desumidificadores ligados; há quem pense nas promoções desta semana do Lidl e que é preciso comprar iogurtes de um quilo. Mas não há vida, não há amigos, há onze assoalhadas cheias de ar: há quem chore no quarto pela morte da irmã octogenária, e quem fume um cigarro às escondidas na casa-de-banho e prepare um Valium para dormir.

terça-feira, julho 25, 2006

Eu cá fico contente

Que, alguém, há uma da manhã, pesquise no Google sobre um personagem longínquo deste blogue - e não é surpreendente, mas apenas interessante, que a única ocorrência achada pelo melhor motor de busca do mundo aponte para aqui (neste canto, os mortos não são esquecidos, ainda que muito ficcionados).
Mas, para não ferir susceptibilidades (eu cá não gosto de ferir ninguém), esse personagem foi dar uma volta ao bilhar grande, no seu Fiat verde alface, e qualquer dia há-de voltar. Ou não. A estória está mal contada, dizem-me; ficção ou não, sempre me foi assim passada.

segunda-feira, julho 24, 2006

Os pássaros quando morrem caem no céu*

E eu tinha medo de Deus desde que ele me concedeu o desejo no armário dos sapatos.
Desde então, a Magui perdia muito tempo a entrançar-me o cabelo, sempre na casa-de-banho, com a escova azul petróleo, que se perdeu nos entretantos - uma pena; a escova não arrepanhava o meu cabelo de um metro de comprimento, e nunca mais tive uma escova tão boa.
Eu sentava-me, pacientemente e em silêncio sepulcral, com o estojo dos elásticos e dos ganchinhos ao colo - era amarelo e tinha um coelhinho e, infelizmente, também se perdeu nos entretantos -, ainda hoje vi uma fotografia dessa época, os ténis comprados na Angolana, perto do mercado de Alvalade, uma saia de peitilho e uma camisa de quadrados amarelos com mangas de balão que não apertavam, porque os meus braços já eram gordos, eu deitada, e a trança gigante pousada na pista de tartan do Estádio da FNAT (lamento, mas para mim, e a bem das minhas memórias, ele chama-se assim e não primeiro de Maio), e já tinha olhos tristes e a ruga de preocupação a meio das sobrancelhas, e a minha mãe escovava-me o cabelo com cuidado e vestida de preto, sempre de preto, por respeito, e estava tão magra e eu, num banco branco, igual a outro que, há tão pouco tempo, tinha partido três andares acima, sem me acusar, mas quando eu o parti avó Tóia ainda estava viva e obrigava-me a dormir a sesta no quarto da empregada, e depois de dormir, ou de fingir que tinha dormido, ela entrançava-me o cabelo nesse banco idêntico ao de tantas outras casas-de-banho, não usava a escova azul petróleo, mas um pente de dentes finos de tartaruga, e o truque era uma bacia de água com sabão para me fazer canudos de anjo, que eram enrolados no seu dedo indicador, mas eu sempre fui uma boa menina, não arranjava problemas, nunca comi sabão como o Hugo, era sonhadora demais, talvez, e, por isso, ela só me ralhou um bocadinho e foi só por eu não ter contado de imediato que tinha partido o banco (tinha ido ao armário da casa-de-banho buscar um bocadinho de mentolato para uma queimadura da alcatifa no meu joelho direito) e, pior, ter negado veemente a minha culpa (acho que não me deixou comer morangos à sobremesa; acho que foi esse o castigo).
Isto foi antes de o Leonardo me queimar a bochecha esquerda com o secador de cabelo Braun (passados estes anos todos, eu sei que ele continua a negá-lo. E o que dói mais, mais até do que ele me ter feito crer que eu tinha sido encontrada num caixote do lixo do Casal Ventoso, foi a Magui ter visto tudo e não ter feito nada, nem sequer confirmar que ele me queimou a bochecha esquerda com o secador Braun). Eu saí do meu silêncio, quando a Magui estava já a fazer os laçarotes das tranças com fitas de cetim azuis, confessei que tinha morto a minha avó através do pedido feito a Deus no armário dos sapatos, e contra todas as minhas expectativas, ela não me entregou à Polícia; pelo contrário, explicou-me que não, que isso era a minha imaginação e sossegou-me um pouco e ainda disse que a avó estava numa nuvem a fazer limpezas: vai à janela ver se não está a chover, disse ela, mas eu continuei a ter medo de Deus e as nossas conversas sérias, diálogos constantes a qualquer hora do dia ou da noite, acabaram por muitos anos, quase tantos como estes últimos em que lhe virei as costas por não perceber qual é que era a ideia.
Ele fez-me muito mal. Eu acho que ele nem sabe, nem se lembra o mal que me fez. São coisas que fazemos por esquecer, que só nos aparecem nas profundezas dos pesadelos que não recordamos ao acordar a gritar, a nadar em poços de suor. De vez em quando, suponho, ele também acorda a gritar. Ou talvez não. Há quem durma descansado. Eu faço por esquecer. Eu quase já esqueco
Mas reconciliou-me com Deus. Por causa dele, demos um aperto de mãos tímido, demorou muito tempo a voltar a ser o que era, mas foi ele que nos chamou à razão, que colocou alguma água na fervura.
Numa gaiola muito pequenina, com algodão a forrar-lhe o chão, estava um pardalito penugento, que tínhamos encontrado à tarde, no jardim. A Magui não nos deu esperança, preparou-nos para o pior. Era muito pequeno e frágil. Não abria o bico para comer a papa. Ela inisitia, mas ele não abria o bico.
No escuro do quarto da Magui, onde eu dormia desde que me tinha convencido que tinha sentenciado a minha querida avó à morte, por causa de uma conversa tola com Deus, dentro do armário dos sapatos - apenas pedi para regressarmos a Lisboa não queria mais passear-me pelos corredores enormes de Viseu -, havia sombras das persianas da janela na parede da cabeceira. E eu chorava pela vida frágil que estava na gaiola: nesses anos que se seguiram, a morte aterrorizou-me e fez-me vincar a ruga a meio das sobrancelhas, e não é por acaso que ela está tão marcada aos 28.
Passámos por muito. Ele nem se deve recordar. Deitou-se comigo, nos lençóis cor-de-rosa de flanela, e eu soluçava e dizia ele vai morrer, ele vai morrer, e ele sossegou-me, fez-me rir até e ensinou-me a rezar - eu não sei porquê, agora sei, mas na altura não sabia, porque é que lá em casa não se rezava. Entrei para a primeira classe e não sabia o que era jurar, nem tão pouco que prática era essa de imolar carneiros - isto estava num texto de leitura e eu fui gozada por não saber e ainda mais ostracizada no recreio, quando me insurgi contra o sacrifício do pobre animal. Às escuras, ele disse: "Se pedirmos a Deus com força, de olhos e mão fechadas, o passarito não vai morrer". Eu não lhe expliquei que tinha medo de Deus, não queria mais ser gozada, ele ia dizer-me que era tudo um mal-entendido, que ninguém fala com Deus no armário dos sapatos, que foi coincidência (ele era pouco mais velho do que eu, nem saberia o que queria dizer a palavra coincidência).
Já não falávamos há uns meses, mas eu sou banana, tem sido sempre assim, acredito na bondade alheia, que ninguém é perfeito, que a nossa condição é de errantes compulsivos, que toda a gente merece uma segunda, terceira ou milésima oportunidade, e dei-lhe uma hipótese de se redimir aos olhos de uma menina de sete anos, de provar que também dava vida, que podia fazer um milagre por debaixo dos lençóis.
Essa noite não acordei a chorar.
O pardal não morreu.

*É o mais belo instrumental escrito pelo Pedro Ayres Magalhães. Está no álbum os Dias da Madredeus, EMI, 1986

domingo, julho 23, 2006

28

Já está, não custou assim tanto como no ano passado - o ano passado era só eu, a Diana, o Ali Farka Toure, em Monsanto, pois, e agora me lembro que houve lágrimas na rua da Bicaense, e estava lá também o Telescópio, que não me ligou ontem e, por isso, estamos quites de eu me ter esquecido dos seus 30 anos. À mesa do Oh Lacerda, a minha filha fez birras muito acústicas e aquáticas, depois, bezuntou o meu vestido de seda de nódoas de gordura do bife à cortador, o Trafuncas disse ao Mac que ele era um doce, e a minha mãe queixou-se do molho de cocktail com o Raúl, que era muito doce e que tinha demasiados camarões, e eu fiquei ali no meio, sem saber para onde me virar, mesmo quando o Leonardo me salvou do monstro loiro birrento, recorrendo a um telemóvel de terceira geração. Não sei o que se passou. 23 pessoas. Uma estreia (e não vieram estranhos ao meu aniversário; perco qualidades, mas o avô do Miguel, o que levava vagabundos para a ceia de Natal, afinal era bisavô, mas chamava-se Leopoldo e a minha memória afinal não está assim tão mal). Um Ipod lindo, preto, uma cigarreira, chamou-lhe a minha mãe, nas minhas mãos (obrigada por me fazerem as vontadinhas todas). Tanta e tão pouca gente. Esqueci os jornalistas. Não os convidei. E eles não têm telemóveis com agendas despertadoras de aniversários, e também passaram por cima do evento, da capicua 22. E acertei na mosca ao sentar o André em frente ao David. Muitos filmes paralelos, e em todos eu tenho um papel, nem que seja secundário, ou figurante, só aquela mesa dava uma longa-metragem de posta, aquelas de dois palmos, mas eu não vou, não posso escrever, talvez se este blogue fosse anónimo, um dia, e eu só bebi dois copos de sangria, não consegui pairar sobre todos eles, os 23.
E escrevo estas linhas com um gato laranja, muito orelhudo, a fazer ronrom ao meu colo. Chama-se Artur, pesa cerca de 200 gramas, e está a esticar-se com os cocós no pouff e este mini-post é só porque a menina zzz se queixou.

quinta-feira, julho 20, 2006

A dieta da noiva (ou a aura quer-se bem larguinha)

A prole do Zé Ralha herdou-lhe dois caracteres genéticos que, por si só, servem de prova irrefutável em Tribunal na averiguação oficiosa da paternidade, ou em qualquer investigação criminal do ruivo Horatio, nos episódios do CSI, e que escusam a realização de quaisquer complexos e dispendiosos exames de ADN: dentes desalinhados, os incisivos cruzados um por cima do outro (três anos de aparelho fixo não os domaram – aos pouquinhos, e muito discretamente, voltam às suas anteriores posições, o que prova que, de facto, o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita, mesmo que à força e com brackets de titânio), e pernas “à Zé Ralha” (aquelas, rechonchudas, da foto em tons de sépia, do post mais abaixo).
O cabelo muito frisado, quase encarapinhado, passou apenas para dois filhos: o mais novo e o mais velho (com muita pena minha, que preferia ter longos cabelos crespos de anjo aos ondulados que me calharam na rifa genética, mas ainda assim, sorrio ao pensar que me correm olhos azuis nas veias, e que nas do João há cabelos da cor do fogo e sardas pintadas com pincéis de pelo de marta).
A realidade é dura, mas é esta: a noiva está gorda (e ainda não encontrou o vestido para o casamento; tem, desde muito pequena, uma propensão, penso que também ela genética, para bens cujo seu parco salário não pode sequer almejar; cai de amores por todos os vestidos de casamento acima dos três mil euros, e acha girinhos os que rondam a milhena de euros).
Não se pode fazer nada relativamente às pernas “à la Zé Ralha”. Por mais que se submeta a regimes de subnutrição, vai sempre ter coxa grossa e rabo de proporções exageradas (apenas reza que a sua filhinha loira tenha herdado as pernas altas e magras da sua avó também loira). Exibe, então, não muito orgulhosa, uma barriguinha de felicidade. Ainda teve alguma esperança, esta semana, num gabinete sem janelas, onde lhe espreitaram as entranhas através de ultra sons, que, a ecografia pélvica lhe desse, de presente de anos adiantado, um girino 50.000. Na realidade, estava deitada na marquesa, e a médica já espalhava um gel muito frio no seu ventre, e a noiva disse para os seus botões imaginários (já que saia não tinha botões, apenas um fecho eclair) – giro, giro, era que fossem dois (esse é um caracter genético que também carrega: o dos gémeos)
O Zé Ralha tem uma explicação para os gordos, que às vezes ficam menos gordos, mas, mais cedo ou mais tarde, voltam a ser gordos gordos. Disse-me ele, há 18 anos atrás, na sala fresquinha e escura da casa do Robalo, onde a minha avó costumava sentar-se na sua cadeira de couro a traduzir complexas fórmulas químicas, que a explicação está na aura. A aura usa-se justinha ao corpo, como umas calças de lycra (marca registada da Dupond). E quando os gordos perdem peso, a aura não alinha em dietas suicidas. Vai daí, fica largueirona e andrajosa. Tal como os meus dentes teimosos, que tudo fazem para voltar ao sítio onde foram felizes durante 25 anos, a aura utiliza os mesmos esquemas matreiros, recusando-se a enfiar-se na máquina de lavar com o programa a 60 graus para encolher um bocadinho.
Ando nisto há quase 28 anos. Não me quero repetir, já escrevi num post velho, enterrado nos arquivos que não me apetece vasculhar, que estou em dieta desde que nasci. Mas não caso gorda; ainda não tenho vestido, mas não caso gorda gorda, caso menos gorda e como sou o centro do mundo, anuncio aqui, que na próxima estação, primavera-verão 2007, as auras vão usar-se larguinhas e flutuantes.

segunda-feira, julho 17, 2006

O que é a felicidade, meu amor (continuamos com Vinicius)


Foto: irmão Goiaoia

Uma página por dia e a falta que tu (ainda) me fazes

Não é a primeira vez que apanho o sobrolho da Sílvia levantado, como quem tenta perceber porquê. Hoje encolhi os ombros também, olhei para o prato, afundei a covinha da bochecha direita com um sorriso amarelo forçado, suspirei, e expliquei ao senhor 50.000 a minha aparente morte cerebral naqueles escassos segundos da hora de almoço: “Estava a escrever um post na cabeça”.
Um ano sem ir almoçar ao Lacinho e ela ainda se lembra que a minha água é sempre natural, quer seja Inverno, quer seja Verão. Se o Agostinho ainda lá estivesse proibia-me de comer batatas fritas e bifes cheios de molhos deliciosos e, quanto ao arroz doce, só um por semana. Era esse o trato.
Não sei porque estou a cortar a escrita com tantos parágrafos; talvez, porque, hoje, a minha sogra Cecília tenha revelado ao filho que é leitora do (T)ralha, e eu, meia envergonhada, lhe queira facilitar a leitura dos extensos escritos colados nas janelas deste blogue, que não está à venda, mas que busca, desalmado, com um frenesi semelhante ao da véspera de uma visita de estudo, um novo template, e, sim, de borla, porque os leitores têm direito ao Truman/ (T)ralha Show todos os dias, ou quase todos os dias, num qualquer monitor de computador próximo de si, e há todos os ingredientes de um blockbuster: temos sangue, há pouco suor, é um facto, porque nem com 40 graus à sombra eu consigo libertar toxinas pela epiderme, valem-me as lágrimas, demasiadas até para o meu gosto, gosto mais de rir com os dentes todos, mesmo agora que eles estão a voltar ao sítio, semi-desalinhados de novo, e nem me importa o duplo queixo, dos quilos a mais, que aparece sempre que rio a bandeiras despregadas (a Teresa que, eu suponho, anda a montar o Tralha em livro, devia fazer vários livros; este, o mais recente, o que começou no jardim da Estrela é um diário de amor; os anteriores, são todos diários de ódio), portanto, eu até merecia um template bem bonito, já que presto uma espécie de serviço público na blogoesfera, uma espécie de striptease por uma boa causa (Teresa, Esquizo, ou quem quer que esteja a fazer a minha prenda de anos, graciosamente, por baixo do título deste blogue, quero a seguinte frase: Este é o meu corpo)
Parágrafo, que este já vai enorme.
Uma página por dia. Há candelabros encarnados nas paredes, duas velas em cada um. A revelação surge-me às escuras; as velas estão na parede, mas de olhos fechados está escuro. Se eu escrevesse posts de uma página A4, o livro do (T)ralha tinha já perto de 700. Deixem-me pegar numa resma e meia de papel. Literatura ao quilo. É muita página. Este post está a ser escrito no Word (facilita a correcção das gralhas e facilita, também, a criação de outras: no outro dia, a companhia aérea Sata ficou Satã), a Times New Roman (arghhhh), corpo 12. Já tem página e um quarto O poder de síntese não é o meu forte e este post de hoje falas de duas coisas muito distintas, não sei se vou conseguir, em todos os casos, fazer pontes lógicas de um para o outro, mas por causa da Cecília, pelo menos, faço parágrafos.
Outro.
De repente, fez-se do amigo próximo o distante. Este verso é do soneto da separação, de Vinicius de Morais. Toca em surdina cá dentro, apesar de os headphones me trazerem um fado-tango de Adriana Varela (powered by Dijei Madrinha T). Podia ter ido buscar o coçador de costas e calçadeira de sapatos com o galo de Barcelos em todos os minutos daquela tarde. Podia ter arranjado outro lugar de estacionamento, na Praça mais bonita de Lisboa, ou perto da residencial Zé Bastos, a meio caminho andado do Príncipe Real, como é costume, mas o demónio do estacionamento quis de outra forma, que estacionasse em frente a um determinado prédio, onde, em tempos ouvi Ali Farka Toure pela primeira vez. Quis que eu descesse a rua, com a loira de mão dada, e que estivesse um jipe verde escuro parado ao fundo da rua, à procura de um lugar, de um jeitinho do demónio (é tudo obra dele). E o telefone toca mesmo agora, e é ele, quer-se chatear comigo, quer culpar-me da incompetência de um seu estagiário, o coração sai-me do sítio, e isto dói-me tanto, ficar de costas no Lacinho, e a Sílvia sem perceber como é que do amigo próximo se fez o distante, e eu sem saber porque é que já passou um ano, passou um ano precisamente hoje, e ainda me dói tanto, e agora toca o Anthony e chora assim, enquanto canta “Forgive me; Set my spirit free”, e sabias que eu tenho uma casa-de-banho cor-de-laranja, com chão preto, só porque tu tinhas uma igual?

Maria Teresa: Este é para o Livro do Ódio.

sábado, julho 15, 2006

Já sei o que quero nos anos

Um template novo.

quinta-feira, julho 13, 2006

As palavras do doutor Lopes Marcelo

Talvez o doutor Lopes Marcelo tenha razão em tudo o que declarou ser verdade, numa sala de audiência do Palácio da Justiça:

[apesar de terem sido duras, as minhas idas a um instituto com o nome do imposto mais odiado, sito nesse imponente edifício que, passados todos estes anos ainda não tenho a certeza se me agrada, não fiquei com stress pós-traumático, menos mal, já me basta a Relação de Lisboa e porque raio é que se chama Tribunal da Relação? Deverei eu interpor uma acção para a mudança do nome do Tribunal? É um caso a estudar, eu que já estou habituada à lide da alteração de um nome]

a Magui às vezes tem, realmente, uma voz irritante (sobretudo, quando quer ser amável tem voz de loira, e eu ao telefone também, irritam-me as minhas gargalhadas altas, é um martírio desgravar uma entrevista onde apareça a minha voz; recuso-me a acreditar que tenho aquela voz), e, vinte anos depois, confirmaram-se as piores expectativas do meu saudoso avô Oliveira – a sua prole não fez nada pela vida, nem sequer são felizes, não construíram nada, pelo contrário, a família desfez-se, foi cada um para o seu lado, os três herdeiros não compraram prédios a preço de saldo na Lisboa nova, provavelmente, já não aparecemos, sequer, no top 100 dos maiores senhorios de Lisboa, e tudo o que ele deixou está ao Deus dará, e, em vinte anos, a obra que se fez, a única que se vê, foi o desbaratar de uma parte (ínfima, é certo) daquela enorme herança feita do nada.
E ele deixou-nos muito, o suficiente para as próximas gerações não terem que se chatear, mas com a minha idade, ele já tinha chegado ao maior porto de África, Matadi, e também, acho eu, já tinha desistido de apanhar outro barco – onde viajaria no porão, a fazer companhia aos ratos – que o levaria à terra de todas as oportunidades. E, todos os dias, quando peço ao balcão do café, uma garrafa de um quarto de litro de água mineral, oiço-o a dizer-me, pequenina, nos passeios que fazíamos às traseiras do Arreiro, para comprar um garrafão de vinho tinto, numa adega insalubre e muito mal frequentada, “Às vezes, rouxinol (eu era o rouxinol), apetecia-me um refrigerante, quando estava em África, em Matadi. Era só tirá-lo da prateleira da minha loja, que se chamava Manga-Manga. Mas acabava sempre por beber um copo de água”.
As fortunas fazem-se assim, cêntimo a cêntimo, refrigerante a refrigerante. E, à excepção das cada vez mais raras extravagâncias cometidas em sapatarias de Lisboa, talvez eu vá no bom caminho, porque, já raramente bebo café no Lacinho a meio da tarde. Conformo-me com as bicas de borla que o patrão põe à descrição dos seus funcionários.
O dinheiro, sempre o dinheiro. A única coisa que me tira alguma alegria. Eu até suporto bem as dores incríveis nos joelhos, mas não suporto saldo negativo e aumento das taxas de juro a cada três meses. Parece manteiga em nariz de cão, o sacana do dinheiro.
Com 27 anos, a minha idade, o meu avô, Manuel Lourenço d’Oliveira trabalhava de sol a sol. Levantava-se muito cedo, mesmo antes das galinhas, quando os mochos se aconchegavam nos lençóis dos seus ninhos, e tenho a certeza de que a primeira coisa que fazia era ligar a telefonia (era assim que ele a chamava; e chamava geladeira ao frigorífico, e dizia “bem haja” por dá cá aquela palha), e todas as manhãs, bem cedo, ele sabia o que queria, sabia para onde ia, sabia que ia vencer.
Até tinha começado bem, façam-me a justiça e dêem-me palmadinhas nas costas, porque eu até comecei bem. Há dez anos punha os pés, pela primeira vez, no diário de referência. Nada se cumpriu, porém. Parece que o fabuloso destino de Diana Ralha não passa por aqui. No papel de má qualidade, ela não brilha no escuro.
Todos os dias, dias como este, em que passo as tardes fechada na câmara de Lisboa (Nota: este post foi escrito ontem, em papel), uma vontade enorme de mandar tudo às urtigas, de baralhar o destino bem baralhado e voltar a dar as cartas, sem batota, sem trunfos escondidos na manga da camisa. Pedir um aumento – um aumento chorudo -, e ver se pega. E se não pegar, fazer como antigamente, quando não havia filha ou contas para pagar. “Quero, então, fazer as minhas contas, por favor”. E abrir uma tabacaria, ou um press center, ou um bar sob o conceito “católico feérico” numa zona nobre da cidade, com muitos santos fluorescentes made in China, e com a maior selecção algum dia reunida, em Portugal, de doces e licores conventuais. Ser jardineira. Bater à porta do prémio Valmor Ventura Terra do António Prôa e apresentar-me ao serviço, disponível para plantar flores e bolbos nos logradouros, ou remendar os tapetes de calçada. Ser provedora dos jardins de Lisboa. Meter a mão à obra e na massa. Levantar-me às seis da manhã com um sorriso nos lábios. Regatear com freiras e abades preços simpáticos para o meu projecto de evangelização pelo estômago (teríamos que importar queijadas da Vila, de São Miguel, naturalmente; negociar com a Sata um transporte baratinho). Recuperar os prédios tristes de Lisboa. Devolver-lhes dignidade e beleza escondida por anos e anos de solidão. Declarar guerra feroz a todas as marquises. Inscrever-me em todas reuniões da Assembleia Municipal para contar o que está mal na cidade.
Mas, às dez da manhã, quando o horóscopo da Maya chega, por sms, ao meu telemóvel Nokia, despertando-me, só me ocorrem as palavras do doutor Lopes Marcelo.

sábado, julho 08, 2006

Jotapêagá (ou a alegria no trabalho, ou o post da besta: o temido 665+1)

É como se ele ainda não tivesse ido embora. Como se eu estivesse para aqui sentada, de headphones nas orelhas a ouvir a Valsa quase anti-depressiva, do Quinteto Tati, à espera do momento em que a porta que dá para a secção Internacional se abra, e depois de feche, com um estrondo, e espero, espero em vão, mas é mesmo como se ele ainda não se tivesse ido embora, espero que uma voz que dobre essa esquina – nunca percebi porque vinha ele por essa porta e não pela que fica mesmo aqui à minha esquerda – e me pergunte assim: “Novidades da alta política?”
Estou sempre à espera desse momento, e à minha frente já está uma estagiária adorável, uma repetente do ano passado, mas é como se ele não tivesse ido embora ainda e não tarda, está quase a chegar de um fim-de-semana entediante de piquete, ou um almoço prolongado com os amigos da blogoesfera da primeira divisão, na Lusitana, mesmo aqui ao lado, no Picoas Plaza, ou, talvez, talvez ele ande para os lados do Campo Grande, afogado na burocracia dos serviços camarários à espera de um dossier qualquer amarelado do arquivo que esconde uma grande história de urbanismo que mais nenhum jornal tem, ou terá, aposto que é mais um arranha-céus prestes a germinar no terreno fértil para mamarraxos da Fontes Pereira de Melo. Não tarda, pois claro, vai pôr a estagiária a andar e vai-me perguntar pelas “novidades da alta política”.
Se calhar, andamos só desencontrados, e, às segundas, quartas e sextas há reuniões chatas e demoradas da Assembleia Municipal – com surreais intervenções dos munícipes a queixarem-se dos saltos partidos nos buracos da calçada, ou a pedirem o abate de uma dezena de plátanos seculares para arranjar meia dúzia de lugares de estacionamento (ele havia de gostar desta; tenho a certeza que a noticiaria, que a traria para o lead; nunca vi ninguém tão hábil no ódio botânico) -, e às terças e quintas, na reunião do executivo camarário, ninguém cala o Sá Fernandes, como já é costume, que aproveita para fazer a pré-publicação dos seus guias ilustrados passo-a passo, de como roubar azulejos pombalinos no património camarário deixado à sua sorte e à companhia das urtigas (é fácil, é mesmo brincadeira de criança e ele está-se a cagar para o património e para a reabilitação; ele gosta mesmo é de arranha-céus).
Não, ele ainda está cá. Foi de férias, é isso. Estamos em Julho, e o miúdo já não tem o colégio, não têm onde o deixar, é isso, foram de férias. É que à minha frente, não tenho já os arquivadores azuis comprados no Stapples Office Center, que muito me irritaram, que me fizeram protestar em vão, e ameaçar que nunca mais lhe preencheria as declarações atrasadas do IRS, por erguerem uma muralha de papel entre as nossas duas secretárias, mas ainda cá está tudo. Intocado. À excepção dos baldes azuis do Office Center. É como se ele ainda não se tivesse ido embora. Eu juro que emagreço, passo fome se for preciso, e me contorço toda para caber num caixote de mudanças de cartão amarelado – é só até lá abaixo, eu aguento-me (e não me venhas com tretas que estás mesmo ali em baixo, que podemos almoçar no Andaluz, aos pés da minha casa centenária, porque isso não vai acontecer; a senhora dona Ana, a das botas de estilo militar que já não palmilham o chão cinzento escuro de vinil desta redacção, arranjou-me, sem saber, um husband to be, e ela também está lá em baixo, a um passinho da rua de Santa Marta, mas eu alguma vez tive oportunidade de a ver e de lhe agradecer? Não... Mas o convite para o casório há-de seguir, e tu não te livras de ser o meu padrinho).
Não fumo menos, julgava que ele me fazia mal aos pulmões, mas, agora sou eu que, sozinha, tento enfiar o cigarro na boca, com malabarismos dignos de pouddle amestrado do circo Cardinalli. De vez em quando, até vou à varanda fumar, para não estar despudoradamente a poluir a redacção, e o ritual é sempre o mesmo: tento acertar no tubo do sinal de trânsito que assinala os dois lugares de estacionamento reservados ao pasquim, e claro está que nunca acerto, mas mantenho o nosso pacto que, se por algum milagre, a beata lá entre, subo um piso (vou de elevador, porque me doem os joelhos), e peço a demissão. Não bebo menos café por ele não estar, de hora a hora a dizer: Maria Diana Fonseca e Burnay Burbon & Aristides (todos os dias me arranjava nomes nobres, mas geralmente eu era sempre Maria Diana), não te apetece um cafezinho? Quero tirar bicas manhosas, preencher declarações de IRS, quero repetir: “grande pensão de alimentos…" com orgulho.
É mesmo como se ele não tivesse ido embora e às vezes parece-me, de relance, que a estagiária está a cofiar a barba de cinco em cinco minutos, barba que só é cortada no barbeiro, de mês a mês, e se ele não se tivesse mesmo ido embora, porque ele é uma besta (e não foi de propósito o post da alegria no trabalho ser o da besta, mas ainda bem que foi), eu já teria uma colecção de pacotes de açúcar amachucados no decote indecente, até ao umbigo, que hoje trago.

sexta-feira, julho 07, 2006

Principezinho

Se eu fosse o principezinho neste deserto, talvez tu sejas a minha raposinha amiga.

O avô Leopoldo, eu não sei o que ele fazia – imagino-o bacharel, de boas famílias, com um cargo relevante no ministério das Finanças.

O avô Leopoldo, bom, se calhar nem se chamava Leopoldo e eu já estou a baralhar os avós todos do Miguel. É que eles são mais que as tias, mas assim é que deve ser, e o Natal em casa da avó Nela faz mais sentido, não são quatro gatos pintados como na Estados Unidos da América: casa de 300 metros quadrados irrepreensivelmente decorada pela Gracinha Viterbo – pessoalmente, gosto dos dálmatas de porcelana da sala de jantar e do papel de parede com flamingos da casa de banho das visitas –, cheia de filhos, netos e bisnetos, todos a falarem uns por cima dos outros, gargalhadas altas, cinismos vários, e claro que há discussões, e copos a mais, ovelhas negras, favoritos e preteridos, e dizem-se, inclusive, caralhadas à frente da Nelita, coisa que eu acho mal, porque é uma senhora octogenária distinta e elegante, com o mesmo penteado ripado e armado com a ajuda de laca Elnette há trinta anos, uma senhora que admiro porque não hesitou em casar-se com o seu padrinho de baptismo, quarenta anos mais velho e seu primo direito, porque o amor não tem idade, e ainda hoje, a Nelita chora todos os dias pelo marido, esse sim, é que se calhar se chamava Leopoldo e não o outro, aquela família tem lindas histórias de amor, e é graças à avó Nela que a minha Carolina, bisneta de adopção, conseguiu vaga no colégio finório que eu não terei hipótese de pagar nos próximos dez anos com a miséria que me pagam, passando, de mansinho, a factura à senhora minha mãe.

A meio da história, eu sei que o avô Leopoldo esteve em África, mas não estou certa que tenha sido em Moçambique – se calhar, foi Angola e eu não sei nada desta história, realmente. No Verão, passavam férias na Figueira e decerto que se cruzaram com os meus avós e a minha mãe pré-adolescente muito desengonçada, com pernas de Bambi, ou no casino ou na praia. Só sei, com certeza que, nos tempos livres, o avô Leopoldo, ou como raio é que o senhor se chamava (tentei ligar para o Dubai a confirmar a graça do senhor, mas não consegui a ligação), filmava pequenos enredos complexos por si escritos e, quando não estava nisso, de câmara de oito milímetros em punho a captar uma realidade por si imaginada, pegava num lápis sépia alaranjado e desenhava caras de palhaços ricos e de palhaços pobres sobre papel de aguarela, e que levava perfeitos estranhos andrajosos, mendigos, pedintes, às dúzias, e depois, mandava as criadas servirem o jantar com a melhor porcelana e com os talheres de prata.

Há pessoas cujos apelidos moldam, à partida, toda a sua existência. Sei do que falo. Leopoldo, tal como eu, tinha a mesma sina, estava predestinado desde o assento de nascimento. Leopoldo era Garrido. Eu sou Ralha.

Nunca se deu mal. Nunca me contaram um episódio em que a generosidade de Leopoldo tenha sido posta em causa, que o tiro tenha saído pela culatra. Sim, era louco.

A Raquel, que agora é Briz, mas devia ter continuado Garrido, porque lhe assenta como uma luva nas mãos rechonchudas, é uma grande contadora de histórias, sobretudo as que metem ruídos corporais desagradáveis e de que ninguém fala, apesar de todos, sem excepção, os emitirem. Recorda, muitas vezes, noites de Consoada à mesa com pedintes de Lisboa, e também o dia em que Leopoldo a encontrou a ela, pequeno diabrete loiro, pela mão da sua mãe que parecia uma estrela de Hollywood dos anos 50, algures pelo Chiado, e não as reconheceu, tendo, porém, cumprimentado gentilmente. Chegou a casa, algumas horas depois, sem nenhum vagabundo a seu lado, e desabafou, à mesa, que tinha encontrado uma senhora muito bonita com a filha, mas que não fazia ideia quem seriam.

Esta família adoptou-me, eu nem hesitei, e as suas histórias são, também, minhas. Um dia quero ser como eles, quero ter um casamento de trinta anos e ainda beijar o meu marido em frente aos filhos, primos, cunhadas e sogras, e aprender a fazer uma família feliz (eu sei que dá trabalho).

Por enquanto, vou sendo como o avô Leopoldo (mais uma vez, relembro que este nome está sujeito a confirmação; tenho quase a certeza que está errado), dando a mão aos estranhos que me entram pelo blogue e pela vida a dentro, sem medo que me mordam a mão como cães raivosos e ingratos, é que há tanta gente bonita por aí, principezinhos e fadinhas, e nunca deixei de parar para perguntar se podia ajudar quando vi mulheres a chorarem nos seus carros, parados no semáforo encarnado das Forças Armadas, e no Metro também já aconteceu, isto sem falar das velhinhas abandonadas à soleira das portas, nos cafés e nos salões de cabeleireiro de bairro, a quem ouvi todas as memórias, alegrias tristezas e queixumes dos ossos – como é possível alguém ficar indiferente? Eu já chorei em toda a parte e ninguém me deu sequer um lenço da Renova para eu me assoar? Sou eu que estou mal? Sou eu que sou doida, ou, no mínimo, excêntrica?

Perde-se muito, nem sabem quanto, os que têm medo dos estranhos. Vou fazendo de fada madrinha, de raposa de principezinhos perdidos no deserto, e vou ser assim para o resto dos dias, a convidar estranhos, perfeitos estranhos para virem a Santa Marta comer pataniscas de bacalhau no meu serviço arabesco de dez euros no Carrefour, e só espero nunca deixar de reconhecer o João e a Carolina na rua.

quarta-feira, julho 05, 2006

Carta (aberta, não gosto de lamber a cola do envelope) ao meu "cunhado"

Caro cunhado (epero que perdoes esta do "cunhado", e a da carta aberta também, mas fica sabendo que "cunhado" é um termo tão carinhoso como os ursinhos do DVD que a minha filha está a ver - não há nada como substituir um vício por outro: achei que a fixação no Noddy estava a ultrapassar todos os limites e vai na volta troquei as cores primárias e fortes do pequeno duende e o seu carro amarelo, pelas cores pastel e coraçõezinhos dos ursinhos carinhosos - e que eu chamo toda a gente de "amor" - e às vezes "amori", com um petit accent alentejano -, e quanto à carta aberta, é lixado, realmente, onde é que fica a privacidade e tal, mas, como diria a mulher cujas botas de estilo militar que, sem saber, me chutou, com a biqueira de aço, um amor servido em bandeja de prata, através de um post sem link de um blogue de referência, eu cá escrevo com liberdade extrema, demasiada até, mas se ainda não me lixei até agora pode ser que passe, a sorte protege os audazes é o meu lema desde sempre e, se calhar, o Flocas tem mesmo razão no seu comentário: a (T)ralha voltou nos moldes de antigamente, sem tento nenhum na ponta dos dedos.),

Mas que gaita é esta? Achas isto razoável?
Andas para aqui há meses a ler, pela calada, o quintal, sem tecer comentários, sem deixar marcas do crime, nem o CSI Miami te apanhava, vai na volta, lês a pandilha de desembestados toda, de fio a pavio, e quando é que a gente te conhece? Quando é que sais da casca? É que, assim, só temos a versão do Trafuncas, que deu a entender, num jantar cá em casa, que tu aparentas ter 25 anos (não tenhas medo: o João parece ter 18).
Não. Não pode ser, és um segredo demasiadamente bem guardado, e cá entre nós, amigas esquizos (um dia, num post, explicarei o que é isto da amizade esquizo, dá pano para vestidos de noiva), não há cá amigos mistério, namorados anónimos e/ ou sociopatas, portanto, não tens escapatória: estás arrolado, acariado, convocado, obrigado a comparecer, em regime de voluntariado amarrado, numa brutal sardinhada, que se há-de marcar para a semana que vem (isto com os constrangimentos absurdos dos jogos do mundial - sim, não vi nenhum, infelizmente, agora telefonam-me a dizer se Portugal ganhou ou não, como se eu não viesse a descobrir minutos depois, eu sofro na pele - literalmente, com surtos de urticária - a maldição de viver debaixo dos pés do senhor Marquês, mas não sei quem passou à final, se a Alemanha, se a Itália, o que é que isso importa? Hoje a Coreia do Norte andou a brincar aos mísseis e isso foi a quinta notícia do alinhamento do jornal da tarde, e eu não tenho bandeiras à janela, nem estou a ver o jogo, mas armei-me em verdadeira patriota e fui dar sangue, enquanto todos vós despacharam o serviço e trouxeram o carrinho para Lisboa para ficarem coladinhos ao plasma lá de casa. Saiu-me o tiro pela culatra, porém, e fiquei chouriça, sem forças, com os braços picados, tive que vir para casa com uma dor de cabeça tão grande que não era compatível com o trabalho, e, graças a Deus, todos no jornal sabem que eu não ligo à bola, senão pensariam que era uma grande balda e a pior desculpa de sempre, mas, para a próxima, já sei que é má ideia fazer análises de rotina no braço esquerdo e, quinze minutos depois, decidir ir ao Júlio de Matos, tirar um litro de sangue do braço direito, isto tudo em jejum, ao meio-dia e meia, mas foi uma aventura daquelas que só se fazem com as amigas esquizo (a primeira e mais esquizo é a tua namorada), a madrinha T passou a ser irmã de doação de sangue, e o amor ia acontecendo com uma agulha que não queria espetar a veia muito verde do braço leitoso da T, o amor fugiu, mas como recordação de como esteve tão próximo, o enfermeiro Patrício deixou-lhe um hematoma no braço direito para mais tarde recordar, e ainda se esforçou por deixar mais marcas de amor, colando um penso pessonhento no braço esquerdo da minha madrinha e irmã de sangue (tão querida, a minha esquizo, fez a veia de difícil só para ficar com os dois braços furados como eu; amanhã passamos por drogadas, pior para ela que tem que andar no Satu e eu vou no ar condicionado do meu Idea).
Cá em casa, enquanto vocês sofrem pela mais que provável derrota da selecção, a loira toma banho e cantarola ao som do João Sebastião Bach: concerto para dois oboés aldrabado, diz-me o João, porque o que sai das colunas é um arranjo doido com um oboé e com um violino, e o bacalhau coze em água que borbulha, e o candeeiro que esperava há um ano para dar à luz já dá, e isto é uma espécie de privilégio, seres o primeiro a receber alguma coisa escrita debaixo do candeeiro que é temperamental, que tem um reóstato que gosta de festinhas, e que dá mais luz consoante as carícias que se lhe fazem no lombo, e, caro cunhado, isto já me está a parecer um post, comecei a escrevê-lo na noite de quarta e acabei na noite de quinta, por isso, porque isto já vai longo e já me doem os joelhos de estar sentada na mesma posição (a loira, agora, brinca às casinhas, com umas mobílias de madeira em miniatura que comprei para ela, quando ainda nem sonhava tudo o que já me aconteceu), porque o jantar já não é bacalhau, mas sim, tortilha, porque já não escrevo debaixo do candeeiro esquizo, mas no sofá laranja, porque a loira hoje não tomou banho, porque levaste com uma posta de pesacada que nunca mais acaba (e ainda tenho que ouvir a ciumenta da tua namorada a dizer-me que eu nunca lhe escrevi um post; logo ela que foi a única que disse que me comprava um conto a um euro: eu não pretso mesmo e ainda não o escrevi - talvez se ela me dissesse que fazia anos no dia em que eu fiz figura de parva ao telefone a perguntar se vocês estavam a "mandar uma"), não podes mesmo continuar escondido, dizer que não à sardinhada que se há-de marcar no rescaldo da esquizofrenia do Mundial.

terça-feira, julho 04, 2006

Amor no Satu

As ideias mais extraordinárias ocorrem-me:

1) Quando estou a tomar banho (agora nem tanto, porque a banheira tornou-se pequena, ainda mais pequena que o seu metro e dez de comprimento real, para grandes ideias);

2) Nas escassas fracções de segundo imediatamente antes de tropeçar no primeiro sono da noite (é quando eu sonho mais, complexas narrativas e aventuras começam, desenvolvem-se e acabam em menos de cinco minutos; já o comprovei, com o relógio do Nokia jurássico, e esqueço-me sempre de dormir com um caderno à cabeceira, para materializar o algodão doce dos sonhos em linhas tortas no papel, escritas às escuras, antes que se esfumem nos caracóis dourados da minha mioleira);

3) Com os éteres destilados algumas espécies vegetais (nunca fico em condições para escrever as ideias vaporosas dos éteres, mas lamento sempre, mais uma vez, a ausência de uma folha de papel e caneta pousados, à mão de semear, na mesa de cabeceira);

4) Na janela do Talk, do Gmail, ou do Blogger.

E se o amor não acontecesse só na improbabilidade, mas, também, no meio da fealdade?

Eu gostava que ele te aparecesse na curta viagem do Satu. Uma igual a tantas outras, de manhã bem cedo, com os olhos ainda inchados da noite mal dormida, e os cabelos húmidos e rebeldes a encaracolarem ao sabor do sereno da manhã. Assim, o mamarracho de Oeiras, que liga não sei o quê, a não sei que mais, teria cumprido o seu objectivo.

O pobre Satu, que ninguém utiliza, “só tu” (perceberam a piada? O trocadilho? Não é da minha autoria… é de um menino da catequese da minha madrinha com nome de santa e de rosa), vive uma existência triste, é mal-amado e vilipendiado por todos os que se arrepiam com a sua imponente estrutura de betão. Que é caro, escusado, que é feio como o raio, que polui mais do que uma fábrica na Cimpor colada ao Oeiras Shopping. O pobrezito lá se anima quando eu lhe gabo a existência. O Satu é a minha estrela do Norte, seguindo-o eu sei que vou ter a casa da madrinha, é só seguir o mamarracho, não tem nada que enganar – devia haver Satus por todo o lado, assim já não precisava do GPS para nada, só para andar à caça de tesouros (e que tal esconder um tesouro no Satu, Maria Teresa? E registar as suas coordenadas no geocaching.pt? Lá estou eu com ideias extraordinárias outra vez, isto hoje está demais, e não devia ser assim, num dia em que me volta a apetecer picotar os pulsos e praticar actos de contorcionismo para caber num caixote de mudanças que me leve uns metros mais abaixo, da rua Viriato, para a avenida da Liberdade, mas esta patologia que me afectou hoje, e vai continuar a abalar o meu sistema imunitário nos próximos dias, merecerá honras de post, por mais que isso vá chatear o visado, que não gosta de dramalhões, mas eu assinalei neste blogue, há coisa de um ano, a sua chegada, por isso, terei que assinalar, com bastantes mais caracteres, é certo, a sua saída, num texto que espero que saia bonito, plantado com carinho e com afecto neste quintal).

Se Deus estiver a dormir e a câmara de Lisboa continuar entregue às urtigas, vai nascer na Fontes Pereira de Melo, mesmo em frente ao Sheraton, o edifício mais alto de Lisboa, 105 metros de altura, da autoria do catalão Ricardo Bofill. Nessa fracção de terreno, mesmo ao lado de um prémio Valmor com dois andares, ainda mora, em estado de coma profundo, um edifício a cair aos bocados onde, conta-me a Magui, em tempos, existia um hotel, onde o meu avô Oliveira ficava hospedado quando vinha aos “saldos” comprar prédios nas avenidas novas de Lisboa.

Uma única satisfação me enche o coração com o projecto da torre Compave. Não, aliás, duas: o mamarracho do Sheraton ganha um amigo, fica menos sozinho na sua imponência e fealdade, um irmão mais novo mas mais alto, com adubo nos pés, e, talvez, então, seguindo a minha lógica do Satu, o amor brote a torto e a direito, ao longo dos 105 metros de altura do arranha-céus (quando eu era pequena, imaginava o céu de Nova Iorque cheio de Hansaplast, daqueles para crianças, com bonequinhos).

Quem sabe se duas almas não se encontram na longa viagem de elevador, do rés-do-chão, até ao 22º andar, e, com vista soberba para a fábrica amarelinha dos bebés de São Sebastião da Pedreira, para o restaurante do Sheraton e para a outra margem, se apaixonem com uma seta de um cupido feio mas doce, escondido por uma verruga no nariz. Quem sabe se isso, depois, não se repete 105 vezes num ano?

É uma bela ideia, é uma imagem deliciosa e só por isso, hoje não vou suspirar muito quando passar pelas marquises de Alvalade e São João de Brito.

segunda-feira, julho 03, 2006

Amor de pantufas

A minha amiga esquizo chama-lhe um amor de pantufas.
Nesta casa não há pantufas: há um chinelo de praia, comprado na loja dos 340,8 escudos, tresmalhado, algures no chão do quarto (a última vez que o vi estava debaixo da cama), não sei que é feito do par, e esta casa, como todas, tem buracos negros (estalou um na aduela da porta da casa-de-banho, e multiplicam-se as teorias para a cratera: sem o ver, a minha mãe fala em infiltração do andar de cima, onde moram os travecas que atacam no Conde Redondo; eu prefiro pensar que é a vingança das formigas que exterminei fora d'horas, num dia frio de Inverno, passados três dias de um ultimato, um tratado de paz pacifíco ao qual os pequenos seres não ligaram patavina; o Mário, que esteve cá ontem com a Mónica, a comer o meu primeiro bacalhau à Gomes de Sá - estava incrivelmente bom; pena que não houvesse o suficiente para repetirmos - diz que foi do calor; aceitam-se mais sugestões para a crise da aduela), mas, apesar de estarmos os dois descalços - ele, de peúgas, encurvado a rever um romance tolo sobre decoradores, e eu, de pé descalço e braguilha ligeiramente aberta a acusar os quilos extra da felicidade -, cá em casa há um amor de pantufas.
Não é pejorativo (espero ter escrito esta palavra como deve de ser). A esquizo, quando fala em amor de pantufas, é com desdém, é pejorativo (sim, estava bem escrito, fui ver ao Google, apesar de ter três dicionários à distância do meu braço esquerdo, em cima do sofá laranja - e que saudades incríveis de escrever no sofá laranja, apesar de ele estar a rever onde, antigamente, eu escrevia todas as noites, religiosamente, para queimar o tempo e as pestanas -, e pejorativo é mesmo a palavra adequada, diz-me um site qualquer que quer dizer "sem graça; desmazelado").
Raios, tenho apenas 27 por cento de autonomia da bateria para escrever este post, porque não me apetece mesmo cortar o ritmo e ir ao quarto buscar os cabos de alimentação e, como quem não quer a coisa, espreitar para debaixo da cama, para ver se está lá o chinelo solitário.
Eu lembro-me de umas pantufas especiais. Eram de pele, daquelas que se compram na serra da Estrela, forradas a pelo de cordeirinho. Essas pantufas tiveram o mesmo destino do chinelo tresmalhado. Foi uma para cada lado. Deliberadamente. Dei uma das adoradas pantufas a uma cachorra pastor alemão, filhota da Cléo (não tenho bateria suficiente para contar as imensas histórias da fiel e perigosa cadela Cléo, que justificou a placa ao lado do portão a advertir: "Cuidado com o cão" - como esta é uma sociedade machista, até no reino animal, o avô Ralha fartou-se de procurar uma placa de azulejos que dissesse "cuidado com a cadela", mas foi uma demanda vã, sem glória). Não posso escrever isto com demasiada convicção, porque esta é uma memória muito longínqua, daquelas que, às vezes, não sei distinguir de um sonho, mas quase que aposto que a cadelita se chamava Melanie. E sei que eu chorei quando ela se foi embora. Nesses tempos, o segundo andar de um prédio da avenida Estados Unidos da América não era povoado por animais: não havia dezenas de gatos, pássaros, e três canídeos. Nada disso. A mãe, a nossa mãe, trabalhava de sol a sol e criava, sozinha, dois filhos. E acho esse nem era o buzilis. Os avós não a deixavam ter animais de estimação. Sabiam da sua propensão para o exagero e actuavam como o super-ego da Magui. E isto é capaz de ser verdade, porque a nossa primeira gata, a siamesa e matriarca Íris, minha prenda de anos, só pôde por as suas almofadas cor-de-rosa no chão de alcatifa encaracolada de cor acinzentada como o pelo dos ratos, quando a avó Tóia morreu. E quando o avô Oliveira se seguiu, aí foi o descalabro e, na década de 90, os cento e poucos metros quadrados dessa fracção urbana, chegaram a ser o lar de mais de 60 felinos.
De volta às pantufas, que a bateria não admite desvios por trilhos estranhíssimos, nunca antes desbravados, por onde só passeiam os lobos solitários de que fala o fantástico livro do meu amigo Ricardo. A minha pantufa, a mais longínqua pantufa de que me recordo (lembro-me de outras, até sei a marca, eram DeFonseca, que eram uns colehos gigantes, e foram compradas no centro comercial ACS da avenida da Igreja), era um tesouro tão importante, que deixei a pequena cadelita levá-lo com ela no dia em que se foi embora. Para ela se sentir melhor. Para eu sentir que deixei uma marca na vida daquela bola peluda que viveu duas ou três noites no segundo andar da Estados Unidos da América.
Este é um amor de pantufas, mesmo que os pés andem descalços sobre as tábuas centenárias do soalho.
É um amor confortável e quente. E pouco importa que ele não passe a roupa a ferro e que a tee-shirt que pede reforma há, pelo menos três anos, tenha um buraquinho a meio do peito. Ou que esteja um frasco de fazer bolas de sabão, na prateleira da estante, ao lado da televisão e de um quadro do Zé Ralha que tem uma menina de cabelos de fogo que sou eu. E que ao lado dos três volumes do Houaiss esteja uma vaca que é um suporte de cinco lápis de cor da Carolina. Aliás, não importam as birras insuportáveis da menina loira que hoje não quis juntar-se ao seu amigo Pestana e desligar as pilhas sem alarido, birras que me consomem e me fazem perder a cabeça no trânsito, quando um otário qualquer me buzina, só porque não arranquei na fracção de segundo imediatamente a seguir à luz do semáforo ter passado do encarnado para o verde. Nem que o jantar, desta vez, não tivesse ficado tão bom como o de ontem.
Ai, 22 por cento de bateria e isto já está a apitar.
No amor de pantufas, vejam lá para o que me havia de dar, eu bordo mais uma libelinha de uma barra de quadrillé que há-de ser aplicada nos lençóis do enxoval da minha próxima filha, já que não vai a tempo, não foi a tempo de ser aplicada nos lençóis da Carolina. E nem eu aqui posso explicar a importância de eu ter voltado a bordar, de ter voltado àquela barra de quadrillé. Não posso mesmo, sob pena de ter mais uma crise de stress pós-traumático. Mas, como uma pantufa, aquela pequena que seguiu com a cadelita para a sua nova casa, eu sigo sem medos, pronta para o que quer que seja o amanhã.