quinta-feira, julho 13, 2006

As palavras do doutor Lopes Marcelo

Talvez o doutor Lopes Marcelo tenha razão em tudo o que declarou ser verdade, numa sala de audiência do Palácio da Justiça:

[apesar de terem sido duras, as minhas idas a um instituto com o nome do imposto mais odiado, sito nesse imponente edifício que, passados todos estes anos ainda não tenho a certeza se me agrada, não fiquei com stress pós-traumático, menos mal, já me basta a Relação de Lisboa e porque raio é que se chama Tribunal da Relação? Deverei eu interpor uma acção para a mudança do nome do Tribunal? É um caso a estudar, eu que já estou habituada à lide da alteração de um nome]

a Magui às vezes tem, realmente, uma voz irritante (sobretudo, quando quer ser amável tem voz de loira, e eu ao telefone também, irritam-me as minhas gargalhadas altas, é um martírio desgravar uma entrevista onde apareça a minha voz; recuso-me a acreditar que tenho aquela voz), e, vinte anos depois, confirmaram-se as piores expectativas do meu saudoso avô Oliveira – a sua prole não fez nada pela vida, nem sequer são felizes, não construíram nada, pelo contrário, a família desfez-se, foi cada um para o seu lado, os três herdeiros não compraram prédios a preço de saldo na Lisboa nova, provavelmente, já não aparecemos, sequer, no top 100 dos maiores senhorios de Lisboa, e tudo o que ele deixou está ao Deus dará, e, em vinte anos, a obra que se fez, a única que se vê, foi o desbaratar de uma parte (ínfima, é certo) daquela enorme herança feita do nada.
E ele deixou-nos muito, o suficiente para as próximas gerações não terem que se chatear, mas com a minha idade, ele já tinha chegado ao maior porto de África, Matadi, e também, acho eu, já tinha desistido de apanhar outro barco – onde viajaria no porão, a fazer companhia aos ratos – que o levaria à terra de todas as oportunidades. E, todos os dias, quando peço ao balcão do café, uma garrafa de um quarto de litro de água mineral, oiço-o a dizer-me, pequenina, nos passeios que fazíamos às traseiras do Arreiro, para comprar um garrafão de vinho tinto, numa adega insalubre e muito mal frequentada, “Às vezes, rouxinol (eu era o rouxinol), apetecia-me um refrigerante, quando estava em África, em Matadi. Era só tirá-lo da prateleira da minha loja, que se chamava Manga-Manga. Mas acabava sempre por beber um copo de água”.
As fortunas fazem-se assim, cêntimo a cêntimo, refrigerante a refrigerante. E, à excepção das cada vez mais raras extravagâncias cometidas em sapatarias de Lisboa, talvez eu vá no bom caminho, porque, já raramente bebo café no Lacinho a meio da tarde. Conformo-me com as bicas de borla que o patrão põe à descrição dos seus funcionários.
O dinheiro, sempre o dinheiro. A única coisa que me tira alguma alegria. Eu até suporto bem as dores incríveis nos joelhos, mas não suporto saldo negativo e aumento das taxas de juro a cada três meses. Parece manteiga em nariz de cão, o sacana do dinheiro.
Com 27 anos, a minha idade, o meu avô, Manuel Lourenço d’Oliveira trabalhava de sol a sol. Levantava-se muito cedo, mesmo antes das galinhas, quando os mochos se aconchegavam nos lençóis dos seus ninhos, e tenho a certeza de que a primeira coisa que fazia era ligar a telefonia (era assim que ele a chamava; e chamava geladeira ao frigorífico, e dizia “bem haja” por dá cá aquela palha), e todas as manhãs, bem cedo, ele sabia o que queria, sabia para onde ia, sabia que ia vencer.
Até tinha começado bem, façam-me a justiça e dêem-me palmadinhas nas costas, porque eu até comecei bem. Há dez anos punha os pés, pela primeira vez, no diário de referência. Nada se cumpriu, porém. Parece que o fabuloso destino de Diana Ralha não passa por aqui. No papel de má qualidade, ela não brilha no escuro.
Todos os dias, dias como este, em que passo as tardes fechada na câmara de Lisboa (Nota: este post foi escrito ontem, em papel), uma vontade enorme de mandar tudo às urtigas, de baralhar o destino bem baralhado e voltar a dar as cartas, sem batota, sem trunfos escondidos na manga da camisa. Pedir um aumento – um aumento chorudo -, e ver se pega. E se não pegar, fazer como antigamente, quando não havia filha ou contas para pagar. “Quero, então, fazer as minhas contas, por favor”. E abrir uma tabacaria, ou um press center, ou um bar sob o conceito “católico feérico” numa zona nobre da cidade, com muitos santos fluorescentes made in China, e com a maior selecção algum dia reunida, em Portugal, de doces e licores conventuais. Ser jardineira. Bater à porta do prémio Valmor Ventura Terra do António Prôa e apresentar-me ao serviço, disponível para plantar flores e bolbos nos logradouros, ou remendar os tapetes de calçada. Ser provedora dos jardins de Lisboa. Meter a mão à obra e na massa. Levantar-me às seis da manhã com um sorriso nos lábios. Regatear com freiras e abades preços simpáticos para o meu projecto de evangelização pelo estômago (teríamos que importar queijadas da Vila, de São Miguel, naturalmente; negociar com a Sata um transporte baratinho). Recuperar os prédios tristes de Lisboa. Devolver-lhes dignidade e beleza escondida por anos e anos de solidão. Declarar guerra feroz a todas as marquises. Inscrever-me em todas reuniões da Assembleia Municipal para contar o que está mal na cidade.
Mas, às dez da manhã, quando o horóscopo da Maya chega, por sms, ao meu telemóvel Nokia, despertando-me, só me ocorrem as palavras do doutor Lopes Marcelo.

11 comentários:

Carrie disse...

Se abrires uma livraria com direito a cafetaria conta comigo. Esqueço as letras que me pagam as contas ao final do mês, a vontade de trocar de carro, o desejo de passar férias no estrangeiro uma vez por ano, e vou contigo. Mando tudo às urtigas e junto-me a ti.

Carrie disse...

PS: Mas também podemos ir plantar tomates para o Alentejo! Que dizes.

Lcego disse...

pode até ser um diário de referência...e quê...Sr.ª Dona Diana está na hora de fazer o que lhe der na telha, tornar-se uma escritora de inspiração bloguista a tempo inteiro e de várias páginas cosidas a linha e de capa dura...depois se for preciso um marketing agressivo como o das muitas margaridas que para aí andam, eu ajudo... Sem horários, sem obrigações maiores poder trabalhar num dia soalheiro numa varanda com vista para a costa de arquipélagos...
e só fazer disto...tedinites umas atrás das outras... que lhe parece?
Para o risco ser controlado, tentar coadonar uma vida dupla e editar já qualquer coisinha enquanto não se larga o referenciado.
Pronto uma livraria também não é mau...

[ t ] disse...

Amigas plantar tomates dá cabo das costas, e as unhas? e as unhas?!?! meu deus! naaa. feérico sim, com direito a livraria e fotografia e a amiga carrie fica encarregue ;) (e a quiqui, onde anda a quiqui?)

Dia disse...

A Qui Qui está de férias na Finlândia, a falar Suomi. Ai, madrinha, as minhas unhas estão uma vergonha vergonhosa.
Lúcia, querida, tendinites atrás de tendinites é muito bom :)

Carrie disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Carrie disse...

As unhas preservam-se com luvas! As costas com meia dúzia de escravos que plantarão os tomates enquanto nos deliciamos com caipirinhas e afins. Pode ser?

[O comment em cima era meu. Tinha uma calinada tão grande que eu vou ali pintar a cara de preto e já volto]

Dia disse...

Olha, amor, não dei pela calinada...

[ t ] disse...

Sim sim sim Escravos por catálogo! ;)

[eu também não dei pela calinada.:p]

Goiaoia disse...

[t]... Parabéns! Ganda saldo. 3 sins para um só num. An Crói Áble! Je suis parvo. Ce vraiment absoluteman un effort!

Anónimo disse...

O Sr Oliveira foi uma pessoa IM PECÁVEL... conheci-o quando eu era criança... e de facto a sua loja era, por via de duas mangueiras plantadas perto da entrada, conhecvida por manga-manga...

xpto2u@2die4.com