sábado, julho 08, 2006

Jotapêagá (ou a alegria no trabalho, ou o post da besta: o temido 665+1)

É como se ele ainda não tivesse ido embora. Como se eu estivesse para aqui sentada, de headphones nas orelhas a ouvir a Valsa quase anti-depressiva, do Quinteto Tati, à espera do momento em que a porta que dá para a secção Internacional se abra, e depois de feche, com um estrondo, e espero, espero em vão, mas é mesmo como se ele ainda não se tivesse ido embora, espero que uma voz que dobre essa esquina – nunca percebi porque vinha ele por essa porta e não pela que fica mesmo aqui à minha esquerda – e me pergunte assim: “Novidades da alta política?”
Estou sempre à espera desse momento, e à minha frente já está uma estagiária adorável, uma repetente do ano passado, mas é como se ele não tivesse ido embora ainda e não tarda, está quase a chegar de um fim-de-semana entediante de piquete, ou um almoço prolongado com os amigos da blogoesfera da primeira divisão, na Lusitana, mesmo aqui ao lado, no Picoas Plaza, ou, talvez, talvez ele ande para os lados do Campo Grande, afogado na burocracia dos serviços camarários à espera de um dossier qualquer amarelado do arquivo que esconde uma grande história de urbanismo que mais nenhum jornal tem, ou terá, aposto que é mais um arranha-céus prestes a germinar no terreno fértil para mamarraxos da Fontes Pereira de Melo. Não tarda, pois claro, vai pôr a estagiária a andar e vai-me perguntar pelas “novidades da alta política”.
Se calhar, andamos só desencontrados, e, às segundas, quartas e sextas há reuniões chatas e demoradas da Assembleia Municipal – com surreais intervenções dos munícipes a queixarem-se dos saltos partidos nos buracos da calçada, ou a pedirem o abate de uma dezena de plátanos seculares para arranjar meia dúzia de lugares de estacionamento (ele havia de gostar desta; tenho a certeza que a noticiaria, que a traria para o lead; nunca vi ninguém tão hábil no ódio botânico) -, e às terças e quintas, na reunião do executivo camarário, ninguém cala o Sá Fernandes, como já é costume, que aproveita para fazer a pré-publicação dos seus guias ilustrados passo-a passo, de como roubar azulejos pombalinos no património camarário deixado à sua sorte e à companhia das urtigas (é fácil, é mesmo brincadeira de criança e ele está-se a cagar para o património e para a reabilitação; ele gosta mesmo é de arranha-céus).
Não, ele ainda está cá. Foi de férias, é isso. Estamos em Julho, e o miúdo já não tem o colégio, não têm onde o deixar, é isso, foram de férias. É que à minha frente, não tenho já os arquivadores azuis comprados no Stapples Office Center, que muito me irritaram, que me fizeram protestar em vão, e ameaçar que nunca mais lhe preencheria as declarações atrasadas do IRS, por erguerem uma muralha de papel entre as nossas duas secretárias, mas ainda cá está tudo. Intocado. À excepção dos baldes azuis do Office Center. É como se ele ainda não se tivesse ido embora. Eu juro que emagreço, passo fome se for preciso, e me contorço toda para caber num caixote de mudanças de cartão amarelado – é só até lá abaixo, eu aguento-me (e não me venhas com tretas que estás mesmo ali em baixo, que podemos almoçar no Andaluz, aos pés da minha casa centenária, porque isso não vai acontecer; a senhora dona Ana, a das botas de estilo militar que já não palmilham o chão cinzento escuro de vinil desta redacção, arranjou-me, sem saber, um husband to be, e ela também está lá em baixo, a um passinho da rua de Santa Marta, mas eu alguma vez tive oportunidade de a ver e de lhe agradecer? Não... Mas o convite para o casório há-de seguir, e tu não te livras de ser o meu padrinho).
Não fumo menos, julgava que ele me fazia mal aos pulmões, mas, agora sou eu que, sozinha, tento enfiar o cigarro na boca, com malabarismos dignos de pouddle amestrado do circo Cardinalli. De vez em quando, até vou à varanda fumar, para não estar despudoradamente a poluir a redacção, e o ritual é sempre o mesmo: tento acertar no tubo do sinal de trânsito que assinala os dois lugares de estacionamento reservados ao pasquim, e claro está que nunca acerto, mas mantenho o nosso pacto que, se por algum milagre, a beata lá entre, subo um piso (vou de elevador, porque me doem os joelhos), e peço a demissão. Não bebo menos café por ele não estar, de hora a hora a dizer: Maria Diana Fonseca e Burnay Burbon & Aristides (todos os dias me arranjava nomes nobres, mas geralmente eu era sempre Maria Diana), não te apetece um cafezinho? Quero tirar bicas manhosas, preencher declarações de IRS, quero repetir: “grande pensão de alimentos…" com orgulho.
É mesmo como se ele não tivesse ido embora e às vezes parece-me, de relance, que a estagiária está a cofiar a barba de cinco em cinco minutos, barba que só é cortada no barbeiro, de mês a mês, e se ele não se tivesse mesmo ido embora, porque ele é uma besta (e não foi de propósito o post da alegria no trabalho ser o da besta, mas ainda bem que foi), eu já teria uma colecção de pacotes de açúcar amachucados no decote indecente, até ao umbigo, que hoje trago.

3 comentários:

Anónimo disse...

passeios das quatro da manhã.

[ t ] disse...

Gostei muito deste afilhadamiga (ou amigafilhada?) :) - pela história do 'senhor besta'

Unknown disse...

lol