segunda-feira, novembro 27, 2006

Alcagoitas

Parece que isto aconteceu na divisão criminal da Polícia de Segurança Pública, num barracão junto ao Tejo, onde vagueiam ainda milhares de almas de bacalhaus que ali foram salgados há décadas atrás.
Ela lembra-se da cena algures na Praça de Londres, mas esse cenário é absolutamente impossível, porque eles não estiveram na Praça de Londres, nem nesse dia, nem em dia nenhum.
Isto foi coisa mágica, e fiquemos, então, com a versão do barracão da PSP, e não nos banquinhos do jardim da Praça de Londres, com vista para a Igreja.
Ela devia estar a ler o já muito ultrapassado romance de Elsa Raposo com o professor de surf - a revista já tinha uma semana e a Elsa Raposo já estava a decorar o apartamento no Parque das Nações de um amigo de longa data que se tornou amante de um dia para o outro (ainda nem o laser tinha pagado o nome do professor de surf das suas costas) -, à espera de prestar declarações a propósito de uma notícia que escrevera sobre Óbidos.

A sua metade

pareciam gémeos siameses, onde estava um encontravam o outro, ela gostava de o ter sempre por perto, e à noite, em noites difíceis, já havia poucas noites dessas, mas de vez em quando voltavam a assombrá-la, isto foi um momento muito bonito, ela nem devia estar aqui a reproduzi-lo para a multidão silenciosa e para os brasucas ávidos de saber em que dia é que se monta a árvore de Natal (eu cá acho que é no dia 1 de Dezembro; este ano antecipei-me, mas sempre montámos a árvore no primeiro dia do último mês), ela estava com a cara enterrada na almofada, a chorar baixinho, e murmurou, dá-me a tua mão, não me largues a mão, e dormiram assim a noite toda, sim, tal e qual como siameses

matava a espera, brincando com os sinónimos e com as letras das palavras cruzadas, e perguntou, achou que, obviamente, ela não saberia, lançou: regionalismo algarvio ara amendoins.

Ela respondeu não sei (tinha a mente presa no Tallon, que apesar de ter três filhos com a Catarina Fortunato de Almeida, conseguiu anular o seu casamento), e na fracção de segundo a seguir disse alcagoitas.
Pôs a mão à boca, bateu-lhe, na boca, não ao gémeo siamês, e ele nem podia acreditar que ela tinha encontrado a solução, sem sequer lhe ter dado uma ajuda, que era uma palavra grande que tinha um t e um g.
A questão é que ela nunca ouviu falar em alcagoitas, até hoje, nunca tinha escrito a palavra alcagoita.
Isto saiu-lhe da boca para fora e ela tem quase a certeza que tudo se passou na Praça de Londres.

O pilinhas

Foi um golpe baixo: ele disse, gordura é formosura, era uma provocação e ele quis magoá-la, mas ela é gorda há 28 anos, já está habituada, e faz já tanto tempo que ela convive com as suas ancas largas e com um rabo que só cabe com uma grande angular, quanto aquele em que tem um dedo que adivinha - é o mindinho da mão direita, e foi a sua avó Zá que lho passou quando morreu -, que lhe sussurou ao ouvido, no instante em que o outro lhe chamou de gorda, que o administrador da empresa onde labuta e onde vai deixar de ser paga a 200 por cento nos feriados, não estava nada à espera de uma sindicalista de direita tão deslumbrante, no seu vestido colante de malha preta, e o dedo disse-lhe que ele não se lembra dela gorda, lembra-se de alguém com algum domínio assaz assustador da legislação de trabalho portuguesa, e com lata suficiente para, na primeira reunião, lhe dizer que, se no início da carreira lhe chamavam "the union man", isso era um ímpeto de juventude que, certamente, já lhe tinha passado.
Pois então, finalmente, o indivíduo achou o (t)ralha, e vai utilizá-lo em Tribunal para lhe tentar tirar a custódia da filha, alegando que ela é bipolar, ah, isso e porque ela não lhe corta as unhas e não lhe dá banho, que maravilha, às vezes, diverte-a, diverte-a mesmo muito, diverte-a tanto que até lhe voltou a voz que a reunião com o administrador lhe havia levado com as cheias, mas então, toma lá esta: ela podia ter-lhe respondido que constava no mercado que a sua namorada dava ares de vacalhona (estou a citar, alguém me disse) e que usava vestidos com folhos em casamentos pseudo-chiques onde não havia comida suficiente para os convidados. Mas não, utilizou o penúltimo trunfo, foi mesmo mesmo um golpe baixo, e, por isso, há-de haver alguém, neste preciso instante, que se mira escondido na casa-de-banho de um T3, com vista para a Calçada de Carriche, através de um espelhinho de aumento, daqueles de depilar as sobrancelhas. É que ela foi mesmo má, às vezes, era assustadoramente má, mas já lhe andaba para dizer isto há uns bons três anos, e era agora ou nunca: escreveu no teclado do seu novo Nokia, que já não era azul, mas sim da cor do petróleo e que, infelizmente, já não tinha a funcionalidade de lanterna, e isto, camandro, era quase escusado, era coisa que não se fazia nem ao pior inimigo, mas ela dedilhou e frase fez quase música: ela podia até ser gorda, e formosa, sim senhora (e mais segura do que algum dia esteve), mas ele tinha pilinha de chinês. Minúscula e fininha. E ele, agora, neste instante, ainda está na casa-de-banho, com a fita métrica caída no chão.

quinta-feira, novembro 23, 2006

Sanchas

Isto tem que ser dito, porque vale, certamente, 50 visitas por dia neste blogue, mais de metade do total deste canto semi-moribundo, largado à mercê das ervas daninhas: há muita gente neste mundo do Blogger e da Google (que, no fundo, são um só, mãe e filho) preocupada com ‘o dia de montar a árvore de Natal’.
São todos brasileiros – o meu vizinho do restaurante Andaluz garantia-me há uma hora atrás, que o Juliano, que não sai detrás do balcão, e por quem a Carolina tem uma paixão assolapada que me permite ter discussões acesas com o meu noivo sobre o referendo do aborto, é brasileiro, mas é um moço muito bom, como já não se encontra, o que significa que, então, para o vizinho, todos os brasileiros, à excepção do Juliano, são uns malandros pagodeiros -, e é nesta casa que saceiam todas as suas dúvidas natalícias inquietantes. Encantada por poder ajudar tanto brasileiro em apuros.
E, se alguém, por exemplo, se desse ao trabalho de pesquisar no Google por ‘sanchas’, este território também será uma espécie de santuário, um reservatório de conhecimentos inúteis. Ninguém sabe o que são ‘sanchas’, à excepção da Lúcia querida, que vive lá longe nas montanhas, e quando vou, armada em porco boletreiro farejá-las ao Mercado de Alvalade Norte, tenho que dizer que procuro 'míscaros', que são cogumelos distintos das ‘sanchas’, mas só se estivesse em Viseu é que alguém saberia o que são ‘sanchas’ e, nesta cidade, tenho que falar em código e dói-me misturar alhos com bugalhos, porque 'míscaros' é uma coisa e ‘sanchas’ é outra, completamente diferente (descobre o João, outro dia, que, na Finlândia, é um prato típico e que se colhem em Agosto – a fixar, esta informação inútil, pode valer outros três ou quatro leitores ávidos de informações idiotas que não lembram ao menino Jesus).
E depois de pedinchar pelas ‘sanchas’, com a voz afectada de quem nasceu e cresceu no Bairro de Alvalade, já sei, já conheço, já vi este filme de trás para a frente e da frente para trás, qual vai ser a resposta da feirante: que a chuva as apodreceu, que em cinco quilos dois se aproveitam, que nem vê-las no MARL, que os cabrões dos franceses nos levam as 'sanchas' de cá para fora para prepararem pratos minimalistas, decorados com raminhos de cebolinho.
Ainda há o Corte Inglés, temos sempre o Corte Inglés, é mesmo a última esperança, mas as 'sanchas' vêm ao cair da castanha, já não há nada a fazer, é um acto de fé inútil, um gasto de energia escusado, e isto é muito preocupante, é mesmo muito, porque no ano passado só comemos ‘sanchas’ uma vez, e este ano parecemos grávidas rabugentas com caprichos impossíveis de atender (Ambrósio, apetecia-me algo, e bardamerda para o Ferrero Rocher, eu quero ‘sanchas’, ‘sanchasssss’), e não tarda, para o ano, talvez, terei de apanhar uma low cost, e voar até Paris para buscar o raio dos cogumelos verdes cobertos de areia, para a Magui me ensinar a lavá-los e cozinhá-los com carne de porco, chouriças e toucinho.
E isto é um pesadelo, é coisa para ataque de pânico e para respiração para dentro de um saco de papel: se a Magui morresse hoje, eu nunca mais comeria 'sanchas', da mesma forma que a Magui nunca mais comeu filhós de abóbora de forma no Natal, porque a avó Tóia não chegou a perder dez minutos e ensinar-lhe a fazer e fritar os doces de Natal (claro que, em matéria de ensinamentos, já decidi que vai ser a Dona Beatriz, do tasco aqui de baixo, que me vai ensinar a fazer rosetas de crochet, porque com a Magui é mesmo impossível, tenho a autoestima em baixo, peso quase oitenta quilos, e a educadora da minha filha mandou uma ficha a dizer que a minha loira não tem o domínio da língua portuguesa que seria desejável para a idade, portanto, não suporto a rejeição de não conseguir aprender por artes mágicas – porque ela não ensina, limita-se a executar a velocidade suprasónica à frente dos meus olhos – a fazer rosetas de crochet; e aqui para nós que ninguém nos ouve, não sei porque me dou ao trabalho: as crianças chinesas têm imenso jeito e vendem-se rosetas de todas as cores nas lojas chinesas a um euro cada dez).
As coisas perturbadoras não param por aqui. Nem sei bem por onde começar. A Polícia Municipal de Lisboa rebocou o meu carro, que estava estacionado em frente a uma garagem abandonada e, por isso, estou 120 euros mais pobre. E, também, pela mesma razão, e porque ainda falta uma semana para o dia de São Receber, amanhã já não vou à despedida de solteira da Joana e, calma, calma que isto ainda piora, não posso comprar um vestido novo, nem ir ao cabeleireiro para chegar mais ou menos deslumbrante à boda da minha querida amiga.
Amanhã, não sou gaja, não sou nada, se não tratar, dois anos depois do que seria previsto e lúcido, do selo de residente do Marquês de Pombal, na EMEL, lá para o lado da rua dos Douradores.
Mas, de vez em quando, volto ao Statcounter, não tal febrilmente como nos dias em que escrevia 1,3 posts por dia, com uma extensão mínima de oito mil caracteres e, assim, descubro que sou a primeira dos links de um blogue coqueluche de esquerda (continuo a não linkar ninguém; continuo a achar que é o low profile que me impede do despedimento por justa causa), e que, noutro, de direita, também estou na molhada de blogs que para lá estão pregados com cuspo. Pela parte que me toca, os links aqui apresentados à direita estão todos ou quase todos semi-mortos, mas vossemecês não perdiam nada se dessem um pulo ao novo blogue do Telescópio .
À noite, porém, apesar de já ter ultrapassado a ‘ressaca’, e de te aprendido que mais vale viver do que escrever, continuo a sonhar com templates. Hoje sonhei com um bem branquinho, onde as palavras se encavalitavam em linhas tortas, desenhadas em Garamond.
O mundo é um local injusto, a sério que é, e não me lembro nada de ter escrito neste quintal que corria na máquina do café que o meu chefe era 'roto', mas tenho, na outra janela, atrás desta, 250 páginas de (t)ralha para cortar para metade, são mais ou menos dois anos de abismo, e quase já não me lembrava que tinha escrito tanta merda, o preocupante é que me parece tudo mau, ou sofrível, pois parece, e para além de despedida, vou ser, também, deserdada, mas, talvez, em Garamond fique mais apresentável e com uma capa bonitita talvez venda mais do que cem exemplares.
Corro para o meu sono de beleza. Amanhã, é bem provável, que seja ainda um dia bem pior que este. Menos mal, porém, pagam-me amanhã para escrever sobre as luzes de Natal.

quarta-feira, novembro 22, 2006

Princesar


É um verbo inventado por uma Ralha, a Isaura.
Devia passar de mãe para filha, a partir de agora, passa de mãe para filha. Consiste, logicamente, no acto de embonecamento de meninas muito pindéricas, que adoram pinturas, ganchinhos, colares e brincos.

terça-feira, novembro 21, 2006

O professor de Filosofia (fim)

O professor de filosofia chorou. E ninguém estava à espera disso, houve um silêncio constrangedor quando ele irrompeu em lágrimas, apertando o embrulho que eu lhe entregava, à altura do seu peito, em nome de toda a turma.

O professor de Filosofia, cujo nome não era Carlos Pedro, mas, para o efeito desta série de posts, era quanto baste e até resultava bem, ia casar-se. E os seus alunos troçavam, conjecturavam nos intervalos passados na fila do pré-pagamento da cantina para comprar a senha do almoço, ou uma bola de Berlim ainda quentinha para quebrar o jejum da manhã, quem seria a aberração que se submeteria a viver sem televisão, no meio do silêncio e dos livros do professor de Filosofia, mas no fundo, o professor de Filosofia era estimado e muito respeitado.

Sabe-se lá de quem foi a ideia. Provavelmente foi minha, é bem capaz de ter sido. O professor de Filosofia foi um grande mentor, uma pessoa importante para o desenvolvimento da minha personalidade, apesar de não me conseguir recordar do nome dele. Fez-se uma vaquinha. Cada um deu o que pôde, e até as Ameixoeiras, que o odiavam, contribuíram. Não era muito dinheiro, mas deu para comprar uma caneta Parker, de tinta permanente.

O professor de Filosofia não estava à espera, suponho que tenha sido a beleza do simbólico e do ridículo de uma caneta Parker azul-escura que o tenham comovido. Há-de haver muito boa gente que ainda se lembra disto, quero acreditar que não sou só eu, há-de haver muito boa gente que até se lembra do nome do professor de Filosofia e que, de vez em quando, chega a casa com um presente inesperado, só porque se lembra das lágrimas do professor espartano, cuja face, toda ela parecia que lutava contra aquela emoção enquanto eu lhe estendia o embrulho à altura do peito.

Não há mais nada a dizer sobre o professor de Filosofia.

O retrato

Foi uma pergunta desnecessária, no fundo, o telefonema da véspera, à hora do almoço, a pedir-lhe que levasse consigo a máquina fotográfica digital fez antever o filme todo, tim tim por tim tim. A pergunta deveria ter sido outra, mas as perguntas são como as respostas, as melhores chegam sempre tarde demais.

Deveria ter perguntado porquê eu, porque é que me coube a mim, que não sou nem nunca fui a favorita, a fazer-lhe o retrato, e não para que é queria ele a fotografia. O meu avô Ralha, que nunca me ralhou, vestiu-se a rigor, com o fraque, colocou ao peito todas as condecorações de mérito que o Estado português lhe deu, e concedeu-me 20 disparos, em pouco mais de dois minutos.

“É para os meus netos se lembrarem sempre de mim assim”.

É terrivelmente fotogénico, aliás, como todos os Ralhas.

terça-feira, novembro 14, 2006

A Viriato irisada

Cada um descomprime como bem entende e lhe apetece, quem gosta não olha e se acham que eu tenho um pirolito a menos, pois bem, isso afecta-me tanto como um stiletto de biqueira afiada pelo Blahnik, ou seja, nada, mesmo nada, é que a gente já sabe que faz parte do pacote, a dor e os bichanados dos outros a dizerem que devia morar na avenida do Brasil – e eu aí tenho que dar a mão à palmatória e à menina dos sete olhos, ameaças comuns da avó Tóia na minha primeira infância, e concordar com essa teoria: a Magui tem na avenida do Brasil um apartamento devoluto de seis assoalhadas, uma casa onde a mãe da Cristina se penteou durante décadas pelas mãos de um cabeleireiro chamado Florindo, e a casa tem um belo logradouro onde eu podia encaixar todos os meus amigos à volta de uma mesa rasca de plástico comprada nalguma sucursal de hipermercados do patrão, e a Carolina podia rir com todos os seus dentes de mentirosa à mostra, para a fotografia, num vaivém frenético de um baloiço, ou na vertigem da descida de um escorrega; a felicidade cabia toda naquele quintal da Avenida do Brasil -, e é claro que a Isabel soube, quando saía do táxi da Retalis, à porta do número 13, que só havia uma pessoa capaz de estar a soprar bolas de sabão da janela. Eu.
Há quem faça de escriba o dia todo sem pensar na coitada do terceiro piso a quem tiraram o computador e o posto de trabalho. Nada disto me espanta já. Penso, repenso nos últimos dois meses, geralmente, não chego a nenhuma conclusão, e então, estendo a palma da minha mão direita amiúde para ver se adivinho quando é que me oferecem 1,5 salários para que eu deixe de me queixar na Internet, para quem quiser ler, que ganho 4,54 euros à hora e que chega ao dia 15 e eu tenho dez euros para me governar. E perco-me, também, em labirintos psicadélicos com espelhos mágicos que me emagrecem num segundo os quinze quilos que devia perder, a magicar qual será o requinte de malvadez com que me hão-de dar a notícia e dizer-me que a porta da rua é serventia da casa – adianto desde já que arrancar as unhas já não vale a pena porque, deve ser castigo divino por algum dos meus imperdoáveis pecados, e esta semana parti a três unhas praticamente a meio do sabugo (adoro esta palavra). Eu gostava que amestrassem dois grand danois arlequins com problemas de identidade, que se julgassem São Bernardos, e que me trouxessem ao pescoço um cantil proposta lá dentro enroladita. Ou mudando a conversa da água para o vinho, ou neste caso, dos cães para os gatos, gostava que contratassem os felinos que se dizem fedorentos para fazerem um stunt só para mim, à entrada do primeiro piso, que envolvesse a máquina do café, já agora, electroméstico laboral que eu tão bem domino. Nesse dia, se calhar nem regateio 1,7 salários por cada ano de vida, e crio o blogue (T)ralho.
Cada um descomprime como pode.
E quando a hora de fecho se antecipa duas horas, como se de uma directiva comunitária se tratasse para acertar todos os fusos horários dos 25, tenta-se de tudo: vasculha-se o ebay à procura de santas Martas kitsch, recortam-se imagens naifs dos lenços de namorados minhotos para parir um original convite de casamento, mas a mala de uma mãe é como um ovo kinder, uma surpresa, e um brinquedo (ainda não é um chocolate, mas lá havemos de chegar um dia), e acabou por salvar a tarde: quando pus a mão lá dentro e tacteei, sem medo que esta fosse engolida por um monsro, à procura de um maço de cigarros finos, acabei por encontrar um frasquinho de plástico com água e sabão, corri logo para a janela – é a dois passos, não foi grande o exercício, mas vá lá, dêem-me o esconto -, o cenário era o mesmo de todos os inícios de tarde, uma fila interminável de carros e de luzes encarnadas do pé que não sai do pedal do travão, e com um sorriso tolo na cara, que hoje me dei ao trabalho de ensopar com base e blush, soprei. Soprei com requintes de mestre vidreiro as mais belas bolas irisadas que a Viriato já viu.
O Afonso, que nos arruma os carros e que tem mau vinho logo ao início da tarde, lançou lá debaixo os braços aos céus e gritou com a voz já muito arrastada pelos vapores etílicos: A minha rua está tão lindaaaaa. E com os olhos erguidos ao céu encoberto, abençoou os criativos; abençoou-me a mim. O Zé, que estava na janela de cima, a dar de comer ao seu cancro de pulmão com um Ventil original, dos que vêm em maços molinhos e não em caixas de cartão, pediu-me em casamento. A Isabel estava bonita, mesmo muito, e só olhou para a varanda para confirmar que era eu a doida.
Cada um faz o que pode, pelo menos enquanto não se deixa alhear pela realidade. A Viriato parou de sangrar naquele instante e todas as tristezas voaram para longe e rebentaram no chão, como as bolas de sabão.

sábado, novembro 11, 2006

O vereador dos espaços verdes

Ele era o vereador dos Espaços Verdes e ela desconfiava que o til do seu apelido era uma personalização subtil para efeitos de marketing, e sempre que pensava nisto – era geralmente o Word que a punha a matutar sobre o assunto, porque insistia em não deixar que o senhor se chamasse Prôa – dava-lhe ganas de alterar o nome na carteira jornalista para Raglia, porque ela queria ser uma mama siciliana, de formas generosas e cabelos lustrosos ondulados sobre todo o comprimento das costas (para efeitos do personagem, ela queria também um rubi no anelar da mão direita e cem miligramas de silicone em cada mama).
Era quase perturbadora esta revelação, mas ela estava convicta que ele gostava de ser o vereador dos Espaços Verdes – o restolho do bolo do poder autárquico. Mas esta assunção vinha de uma alma que escrevia sobre os passeios esburacados e sobre os jardins em desalinho na rubrica do jornal de referência, cujo nome era um trocadilho linguístico fácil mas até feliz. E ela, tal como o vereador, também gostava de ser a tipa dos mil e quinhentos caracteres do InfelizCidades. Mudara ligeiramente a cidade com mil e quinhentos caracteres paginados a duas colunas em negrito. Era o seu espaço (T)ralha, mal impresso em papel que esborratava as mãos e que, pensava ela, poderia ser lido, não pelos seus cem leitores diários do Blogger, mas sim, no limite, por 35 mil pessoas por dia – que isto, já se sabe, só o Correio da Manhã é que vende 110 mil exemplares.
Sem saber, o vereador dos Espaços Verdes tornou-se uma peça fundamental da história extraordinária que se segue.
Para comemorar a Primavera, e porque ainda não estava afectado pela rinite alérgica que lhe traziam os choupos, ordenou à empresa subcontratada pela autarquia, que plantasse, na véspera de dia 21 de Março, 50 mil flores na avenida que, em tempos, foi o passeio público e que, hoje em dia, apesar dos bonitos desenhos de calçada portuguesa, tinha o epíteto da mais poluída via da cidade.
Andavam os jardineiros com o cú virado para a lua que estava quase cheia, a plantar ciclames coloridos, sob o olhar assustador do marquês e do seu leão, quando às quatro da manhã, o jardineiro chefe disse um palavrão porque só tinham trazido 49.998 vasos. Mas a aprendiz sabia que naquela noite tinham que ser mesmo cinquenta mil, por isso, dividiu dois ciclames brancos, os mais repolhudos, em quatro, e sorriu, apesar da dor nas cruzes, ao cobrir as duas últimas covas com terra húmida.
Quarenta e seis segundos depois das quatro badaladas que os carrilhões da Basílica da Estrela entoaram, fazendo guinchar os pavões do Jardim Guerra Junqueiro, a Avenida da Liberdade estava mais bonita do que com as iluminações de Natal. Nesse segundo, um homem escreveu um ponto de exclamação no seu teclado.
Era o leitor 50.000.

(Continua. Esta história é para a minha filha Carolina. Para ela acreditar em contos de fadas)

terça-feira, novembro 07, 2006

Árvore de Natal

Foi em Novembro, no início, depois das bruxas e do dia de todos os santos, eu sei porque nessa noite, ao luar, deitei sete gotas de cera num prato de água e a letra que me apareceu não era um P, e com a raiva, e porque eu sempre acreditei em magia, deitei a água pela janela e lamentei ter testado o nosso destino na primeira noite do penúltimo mês do último ano antes da passagem do milénio.
Lembras-te, a nossa primeira árvore de Natal, com anjos de todas as cores, de três pelo menos, eu sei que sou exagerada, perdoa, mas havia encarnados, verdes, prateados, dourados, e também havia azuis se não estou em erro, e bolas de vidro, comprei-as num saldo no Carrefour, nessa altura eu fazia alegremente o meu enxoval, a vida era tão simples quanto isso, arrastava-me, contrariada, a um curso que desprezava, trabalhava à tarde no diário de referência, um trabalho meramente maquinal, que fazia em dezassete minutos úteis e que me rendia quarenta contos, a segunda década da minha vida tinha acabado de começar, não riscava anos na parede, e a primeira peça do enxoval que comprei foi um tabuleiro e um relógio de cozinha do Marks and Spencer e depois a Magui deu-me os lençóis que ela bordou no colégio das Doroteias no Sardão, e a árvore de Natal, em Novembro, na primeira semana de Novembro, um disparate, parecíamos crianças na véspera de Natal, a um canto de uma casa vazia, sem móveis, a nossa primeira casa, que visitávamos de semana a semana só para ver as luzes a piscar, sentados no chão às escuras, e eu não sei o que te passava pela cabeça, mas eu sonhava com uma casa no campo, uma lareira, um rebanho de filhos e de cães.
Hoje é sete de Novembro. Provavelmente, há sete anos atrás, já estava no chão, contigo, a ver a árvore dos anjos, das bolas de vidro que fazem um barulho lindo quando caem no chão, e dos laços de fita de organza dourada que eu própria fiz.
Precisava de fazer hoje a árvore de Natal. Sabes, acho que perdi um amigo, o amigo, aquele que está gravado no telemóvel há dez anos como alma gémea, não sei como foi, há amigos que deixamos ir em silêncio, ainda agora o telefone tocou e eu não atendo números privados, não sei que me deu, e estive a falar ao telefone com aquele, que, outrora, foi a minha alegria no trabalho, o outro Pedro - e depois há a segunda alegria no trabalho, que também é Pedro, e que eu já estou a ver o filme todo, vamo-nos falar de ano fiscal em ano fiscal, isto, pelo menos, se ele não aprender a declarar ele próprio o seu IRS pela Internet, e Deus queira que não, ou pelo menos que se faça de parvo, que finja que não sabe -, e ainda bem que já tinha feito a árvore de Natal e que o chão já estava cheio de purpurinas vermelhas que vão andar a voar, como plumas, durante meses pelas assoalhadas tortas da minha casa centenária, a minha primeira casa, porque dois amigos, ter a revelação diante dos nossos olhos, ouvidos e de todos os outros sentidos que a distância nos levou de mansinho, sem avisar, sem chatices, ou discussões, dois amigos, é uma dor que trespassa, coisa que só deixa de arder como uma boca cheia de piripiri, com uma árvore de Natal ao pé da janela.
Quantos mais amigos vou eu perder?

segunda-feira, novembro 06, 2006

Emergência

Gosto de escrever Estefânea. À moda antiga.
Era uma menina, veio de Sigmaringen para casar com D. Pedro V, o Esperançoso, e quando cá chegou indignou-se com a javardagem que por aqui se passava, ao ver crianças e adultos coléricos amontoados indiscriminadamente nas enfermarias nauseabundas. E, então, como era pequenina e franzina, mas não era de modos, pegou no seu dote de casamento e disse ao maridinho com o seu sotaque germânico: toca lá a fazer-me o gostinho e construir um hospital pediátrico.
A pobre Estefânea morreu pouco depois, ainda criança, não chegou a ver o seu hospital de pé.
Eu visitei-o pela primeira vez na passada sexta-feira. Passei lá 18 horas. Não me quero armar em Jack Bauer, no genérico do 24, mas foram, talvez, as horas mais difíceis da minha vida. Foi a primeira vez, em quase três anos, que entrei numa urgência.
Encheu-me de orgulho, a pequenina. Não chorou quando a picaram, esteve sempre muito serena. No fim, disse, aos enfermeiros so SO, "Obrigada a todos" e despediu-se da cama onde esteve a soro um dia inteiro com um "adeus caminha".
No rápido caminho até casa, descobriu os semáforos: os meninos vermelhos, os meninos verdes, mas gosta sobretudo dos intermitentes, que ainda não decidiu se são amarelos ou cor-de-laranja. Mas, no Fiat, no semáforo do Largo do Andaluz, houve uma emergência, a minha, saí daquele pesadelo de mais de 24 horas quando ela cantou, muito pálida, com olheiras até ao queixo, roxas: "ser amigo dos animais é fácil".
Agora, estou eu doente. É mais que justo.