terça-feira, novembro 14, 2006

A Viriato irisada

Cada um descomprime como bem entende e lhe apetece, quem gosta não olha e se acham que eu tenho um pirolito a menos, pois bem, isso afecta-me tanto como um stiletto de biqueira afiada pelo Blahnik, ou seja, nada, mesmo nada, é que a gente já sabe que faz parte do pacote, a dor e os bichanados dos outros a dizerem que devia morar na avenida do Brasil – e eu aí tenho que dar a mão à palmatória e à menina dos sete olhos, ameaças comuns da avó Tóia na minha primeira infância, e concordar com essa teoria: a Magui tem na avenida do Brasil um apartamento devoluto de seis assoalhadas, uma casa onde a mãe da Cristina se penteou durante décadas pelas mãos de um cabeleireiro chamado Florindo, e a casa tem um belo logradouro onde eu podia encaixar todos os meus amigos à volta de uma mesa rasca de plástico comprada nalguma sucursal de hipermercados do patrão, e a Carolina podia rir com todos os seus dentes de mentirosa à mostra, para a fotografia, num vaivém frenético de um baloiço, ou na vertigem da descida de um escorrega; a felicidade cabia toda naquele quintal da Avenida do Brasil -, e é claro que a Isabel soube, quando saía do táxi da Retalis, à porta do número 13, que só havia uma pessoa capaz de estar a soprar bolas de sabão da janela. Eu.
Há quem faça de escriba o dia todo sem pensar na coitada do terceiro piso a quem tiraram o computador e o posto de trabalho. Nada disto me espanta já. Penso, repenso nos últimos dois meses, geralmente, não chego a nenhuma conclusão, e então, estendo a palma da minha mão direita amiúde para ver se adivinho quando é que me oferecem 1,5 salários para que eu deixe de me queixar na Internet, para quem quiser ler, que ganho 4,54 euros à hora e que chega ao dia 15 e eu tenho dez euros para me governar. E perco-me, também, em labirintos psicadélicos com espelhos mágicos que me emagrecem num segundo os quinze quilos que devia perder, a magicar qual será o requinte de malvadez com que me hão-de dar a notícia e dizer-me que a porta da rua é serventia da casa – adianto desde já que arrancar as unhas já não vale a pena porque, deve ser castigo divino por algum dos meus imperdoáveis pecados, e esta semana parti a três unhas praticamente a meio do sabugo (adoro esta palavra). Eu gostava que amestrassem dois grand danois arlequins com problemas de identidade, que se julgassem São Bernardos, e que me trouxessem ao pescoço um cantil proposta lá dentro enroladita. Ou mudando a conversa da água para o vinho, ou neste caso, dos cães para os gatos, gostava que contratassem os felinos que se dizem fedorentos para fazerem um stunt só para mim, à entrada do primeiro piso, que envolvesse a máquina do café, já agora, electroméstico laboral que eu tão bem domino. Nesse dia, se calhar nem regateio 1,7 salários por cada ano de vida, e crio o blogue (T)ralho.
Cada um descomprime como pode.
E quando a hora de fecho se antecipa duas horas, como se de uma directiva comunitária se tratasse para acertar todos os fusos horários dos 25, tenta-se de tudo: vasculha-se o ebay à procura de santas Martas kitsch, recortam-se imagens naifs dos lenços de namorados minhotos para parir um original convite de casamento, mas a mala de uma mãe é como um ovo kinder, uma surpresa, e um brinquedo (ainda não é um chocolate, mas lá havemos de chegar um dia), e acabou por salvar a tarde: quando pus a mão lá dentro e tacteei, sem medo que esta fosse engolida por um monsro, à procura de um maço de cigarros finos, acabei por encontrar um frasquinho de plástico com água e sabão, corri logo para a janela – é a dois passos, não foi grande o exercício, mas vá lá, dêem-me o esconto -, o cenário era o mesmo de todos os inícios de tarde, uma fila interminável de carros e de luzes encarnadas do pé que não sai do pedal do travão, e com um sorriso tolo na cara, que hoje me dei ao trabalho de ensopar com base e blush, soprei. Soprei com requintes de mestre vidreiro as mais belas bolas irisadas que a Viriato já viu.
O Afonso, que nos arruma os carros e que tem mau vinho logo ao início da tarde, lançou lá debaixo os braços aos céus e gritou com a voz já muito arrastada pelos vapores etílicos: A minha rua está tão lindaaaaa. E com os olhos erguidos ao céu encoberto, abençoou os criativos; abençoou-me a mim. O Zé, que estava na janela de cima, a dar de comer ao seu cancro de pulmão com um Ventil original, dos que vêm em maços molinhos e não em caixas de cartão, pediu-me em casamento. A Isabel estava bonita, mesmo muito, e só olhou para a varanda para confirmar que era eu a doida.
Cada um faz o que pode, pelo menos enquanto não se deixa alhear pela realidade. A Viriato parou de sangrar naquele instante e todas as tristezas voaram para longe e rebentaram no chão, como as bolas de sabão.

7 comentários:

Carrie disse...

Eu até ia escrever um post... depois cheguei aqui e as palvras ficaram envergonhadas... Amei!

[ t ] disse...

Mim também gostou muito desta tua prosa :)
impressão ou escorrido leve leve já aqui faltava? eu gostava de ter soprado uma :)

[ t ] disse...

que engraçado, atão não é que agora no teu blog me mudam o nome e tudo sem a minha autorização?? xi! isto é coisa de centro do mundo meeessmooo... ai medo muito medo

só pa ti madrinha passa a red!

Isa disse...

tão lindo... bjs

Anónimo disse...

já viu este post no lisboalisboa em que falam mal de sim...eu não me ficava
http://lisboalisboa.blogspot.com/2006/11/blog-post_116371579149804139.html

Dia disse...

Caro anónimo, obrigada, mas eu já sabia da existência do post do senhor do PCP.
Eu fico-me porque não dou audiências a esse indivíduo (e cá para mim, é ele próprio que escreve todos os seus comments ;) )

A todas as outras queridas um beijão. A ver se escrevo quelque chose escorrida neste blogue escuro escuro.

musalia disse...

passei, li e gostei muito.
parabéns pela forma como transmites emoções, reflexões, sentires.
voltarei.