Foi assim desde sempre - mesmo antes de as minhas cordas vocais vibrarem da boca para fora cascatas de sons cheios de nexo e significado, ou de o meu sistema nervoso central processar pouco mais do que um mundo feito da água de colónia Bien Être da minha mãe muito loira, do Âmbar e as madeiras da roupa da minha avó muito morena, e da lixívia das mãos da minha outra avó, que me embalava todas as noites no seu regaço, ao compasso do seu batimento cardíaco, sentada no sofá de napa laranja: chegava Dezembro, a porta do Ford Cortina branco do meu avô Ralha abria-se, e da Praça Pasteur seguíamos em romaria para ver o Natal nas ruas de Lisboa.
O pinheiro comprava-se junto à linha de comboio do Arreeiro, e debulhávamos um pacote de algodão hidrófilo pelas fagulhas, colocando bolas de vidro coloridas nos ramos. A minha avó, que quando não cheirava a lixívia, trazia consigo o aroma de roupa lavada no tanque de betão com sabão azul e branco da Clarim, tirava do porta-moedas uma nota de cinco mil escudos dobrada em quatro, e ditava que o seu destino era para comprar presentes para os meninos. No chão dos bazares da Avenida da Igreja, eu comprava um estojo de canetas da Molin, e tinha ainda dinheiro suficiente para comprar um "Meu Pequeno Ponéi" (lá em cima, na Erasmus, o meu tio Zé já teria comprado a tão desejada Barbie Cintilante, descrita ao pormenor na carta escrita ao Pai Natal).
O cabelo muito branco da minha avó muito morena, sentada no banco da frente do Cortina, iluminava-se de muitas cores quando íamos ver o Natal, e quando ela olhava para o banco de trás, os seus olhos, eu não sei se eles não sorriam mais do que os meus, colados à janela esquerda do Ford Cortina, as mãos em pose de ventosa no vidro e a boca aberta de espanto, dos sinos, das estrelas e dos anjos e da alta voltagem do Natal.
Nascida e criada no Bairro de Alvalade, apenas uma vez ao ano eu descia com a minha avó muito morena a Avenida da Liberdade. Depois, subíamos o Chiado, voltávamos atrás para o Martim Moniz, seguíamos em frente pela Almirante Reis, torneando a João XXI, e voltávamos à Lisboa que eu conhecia, à Avenida de Roma e Avenida da Igreja, mas o Natal, as luzes mais bonitas, só as podia ver do lado de dentro do Ford Cortina.
Com três anos, a minha filha Carolina, nascida primeira semana de Dezembro, já domina conceitos abstractos tão complexos como cidade, país e região autónoma. Tem todos os sonhos deste mundo e sabe que quer ser “artista das tintas” quando for grande, e que, daqui a duas semanas, assim que soprar as quatro velas do seu bolo de aniversário do Noddy e da Ursa Teresa, a vida lhe reserva feitos notáveis, como aprender a andar de bicicleta, ou ir dançar na televisão (não sei como descalço esta bota da televisão).
Trauteia Mozart e Rodrigo Leão, mas sabe-se lá porquê, também vem para casa a cantar o jingle das Chiquititas, ou as canções carregadas de conotações sexuais das mini-Doce, a minha Carolina possui uma memória notável - sabe que comeu favas há um ano nos Açores, e já distingue algumas letras, nos anúncios da publicidade, entre as quais, as que compõem o nome do seu ídolo Noddy.
Mas não é só: a morte também se aprende em pequenino, e sempre que a minha Carolina vê um pombo esmigalhado na estrada (e nesta família, gostamos de pombos e também de eucaliptos - malfadados e mal-amadas criaturas do reino animal e vegetal), diz "esta pomba está estragada", ou mais recentemente, porque já é uma pessoa em miniatura e não um bebé, diz "esta pomba está morrida".
Sabe que o gato Artur está no céu, ao pé da Lua (ainda hoje não gosta de ir ao consultório do Veterinário porque sabe que, no ano passado, o Artur entrou e não voltou mais para casa), de vez em quando, se a vê muito cheia no alto de um céu límpido, jura que avistou o nosso gato laranja lá em cima ao pé das estrelas.
Não pergunta pelo avô Ralha, o motivo pelo qual, supomos nós, ela quer, quando for grande, ser "artista das tintas". Apesar de não lhe termos dito que ele morreu, que ele partiu, que foi para o céu dos artistas, ou qualquer outra desculpa esfrangalhada; sabe-se lá porquê, ela sabe que ele não volta mais, mesmo que ninguém lho tenha dito ou explicado o seu súbito desaparecimento da face da terra, portanto, concentra a sua atenção e fixa os seus olhos muito azuis nos quadros que ele pintou e que nos deixou, e o seu preferido é um retrato de Fernando Pessoa, que diz ser "aquele senhor muito simpático".
No seu pequenito cérebro em constante ampliação, a Carolina sabe que a Câmara de Lisboa caiu quando estávamos de férias nos Açores (eu sosseguei-lhe o espírito aflito garantindo que a Câmara nao se tinha aleijado), e repete a lenga-lenga, sempre que lhe perguntam o que é que a mãe faz na vida: "A mamã trabalhava no Público, depois foi para a Câmara Municipal, mas a Câmara caiu (e não se aleijou), e depois foi para a casa cor-de-laranja (sede de campanha do PSD, onde confraternizou com as mais altas figuras do partido) e agora está na Cunha Vaz".
A sua percepção do mundo não é muito diferente do que ele é, apesar de visto à altura de um metro e dez centímetros, e de as fadas terem sempre um papel importante em tudo o que acontece.
Um dia destes, no autocarro, zangou-se do alto dos seus três anos com um grupo de púberes estudantes de arquitectura, que desfilavam baboseiras sobre a cidade, e que apontavam e se riam para uma empena cega tapada por uma tela publicitária do Cristiano Ronaldo. Reza a lenda, contada pelo meu marido, porque não a presenciei, que pontapeou um dos jovens que anunciava que o que era bom era uma cidade cheia de arranha-céus, e que o mandou calar, porque a mamã é que trabalhava na Câmara Municipal.
Sei lá eu se é de eu lhe contar histórias sobre um grande arquitecto chamado Ventura Terra, ou um outro, o Keil do Amaral, de lhe estar sempre a apontar as casas bonitas, muito antigas como aquela onde vivemos e que é mais velhinha que o bisavô Ralha, para que ela guarde tudo, porque antes de ela chegar à idade adulta já não existirão, apenas na memória de quem as guardou.
No mês do seu aniversário, dia da Padroeira de Portugal, a Carolina já sabe que entramos em romaria no Fiat Idea cinzento escuro, e que vamos ver o Natal. É sempre assim. Foi sempre assim, graças à minha avó muito morena que me morreu cedo demais. Todos os anos, eu tenho a minha avó comigo quando desço a Avenida da Liberdade e vejo o Natal pendurado nos Plátanos centenários do Boulevard da minha cidade.
Moramos no Marquês, mas a volta é a mesma de há vinte nove anos atrás (sem o Cortina, sem a minha avó muito morena). Porque foi sempre assim.
Descemos a Avenida da Liberdade, subimos o Chiado e, como numa Montanha Russa, voltamos a descer para ver a árvore de Natal Gigante do Terreiro do Paço (em tempos, quando a convencia a comer a sopa toda para ficar enorme como a árvore de Natal do Millenium BCP, ela assustou-se porque não queria ter uma estrela luminosa no cimo da cabeça), subimos depois o Martim Moniz, se calhar, ainda paramos na Verbena de Natal da Alameda e, com uma nota de cinco euros, temos meia hora garantida de luz, cor e música, de um carrossel à moda antiga, depois, se ainda sobrarem dois euros, trazemos um pauzinho com algodão doce cor-de-rosa, e vamos ver o resto do Natal, João XXI, Praça de Londres (antes, uma voltinha só à Praça Pasteur para eu me lembrar do Cortina e da minha avó muito morena), Avenida de Roma, Avenida da Igreja, e depois marcha-atrás para o Marquês.
Ontem, a Carolina pediu para ir ver o Natal. E saímos, chave na ignição, travão-de-mão desengatado, à procura dele pelas ruas de Lisboa, já o vimos nos Centros Comerciais, nos anúncios do Intermarché, e da Pópota e Leopoldina, mas nas ruas não o encontrámos.
Procurámo-lo em Alvalade, e nada, seguimos pela Almirante Reis, tudo às escuras. No Rossio tínhamos que o encontrar, pensámos. Não. Timidamente lá o conseguimos vislumbrar na Rua do Ouro e no Chiado. Os olhos e as mãos da Carolina não se colaram ao vidro. Não deu pulinhos e risinhos de felicidade absurda. Pelo contrário, lançou:
"A Lisboa está feia, não está, mamã?", e esta pergunta doeu-me mais do que um parto sem epidural.
Não se mente às crianças, não se deve mentir às crianças, está feia sim, filha - no meio, um suspiro, uma pausa, para a voz se recompor. As mães não choram pelas luzes de Natal que não se acenderam, que este ano não se vão acender.
Depois do passeio de ontem, a minha Carolina acha que o Natal não vai chegar a Lisboa. Só aos centros comerciais. Que a cidade está feia e sem magia pelo ar. Tem razão: à porta de nossa casa, em pleno Marquês de Pombal, há lixo, há folhas mortas amontoadas nas sarjetas e por debaixo das rodas dos carros estacionados, há obras, passeios esburacados, carros em segunda e terceira fila, apesar de estarmos a 20 metros da Divisão de Trânsito da PSP, e da propaganda barata da Tolerância Zero.
Ontem, colocámos luzes de Natal no quarto da Carolina para ela não adormecer de coração murcho. Porque a cidade não tem luz, porque este ano nenhuma VW pagou as iluminações, prometemos ir à loja chinesa mais próxima e comprar luzes para as janelas da nossa casa no Marquês. Em tempos, um treinador de futebol pediu aos portugueses para colocarem a verde rúbea nas janelas, numa febre patriótica como não se via desde os tempos da ditadura. Este ano, eu peço aos lisboetas que acendam luzes pelo Natal.
Hoje, porque a minha Carolina tem todos os sonhos do mundo, porque um sorriso de uma criança vale mais do que ordenados milionários de assessores e adjuntos, vamos a Oeiras ver o Natal, onde me dizem que o espaço público ainda não morreu.
Declaração de interesses - De Maio de 1997 a Março de 2007, fui Jornalista do diário Público, sete anos na secção de Economia, os últimos três na secção Local Lisboa. De Abril de 2007 a Maio de 2007, fui Assessora de Imprensa do Vereador António Prôa, responsável pelo Pelouro do Espaço Público e Espaços Verdes de Lisboa. A Carolina, essa, não percebe nada de política. Nesta foto, em 2005, fotografada por Diana Quintela, para o Diário de Notícias, junto à árvore de Natal do Millennium BCP, no Terreiro do Paço, para uma peça jornalística sobre as iluminações de Natal em Lisboa.