segunda-feira, janeiro 17, 2005

Os ensinamentos do Zé Ralha

O Zé Ralha é como o 25 de Abril lá em casa.
Sabemos que ambos existiram e sabemos também - apesar de ainda estarmos em fase de negação - que estes dois acontecimentos revolucionaram as nossas vidas, apesar de não falarmos muito sobre o assunto.
O 25 de Abril é conhecido, no seio da minha família fascista, como o 25 do 4. O Zé Ralha é conhecido, no seio da minha família monoparental, como Zé Ralha, ou, ainda mais frequentemente, como o "dador de esperma".
De qualquer forma, o Zé Ralha conseguiu ensinar-nos duas coisas na vida. Na verdade, a mim só me ensinou uma. O Leonardo, que pela condição de primogénito e de génio da família, sempre foi um privilegiado (a mim coube-me a sina de ser a mais protegida - nunca punha nem levantava a mesa porque, alegava a minha avó Tóia, eu não tinha pai e tinha que ser poupada...), teve direito ao primeiro ensinamento do Zé Ralha. Eu apropriei-me dele indevidamente, confesso.
Conta o Leonardo que, num dia (inédito) em que o Zé Ralha o foi buscar à escola, lhe perguntou, assim do nada, e com aquele ar teatral que Deus lhe deu: "Meu filho, quantos amigos tens?". O Leonardo, puto, nem seis anitos teria, começou, então, a enumerar todos os coleguinhas da escola e da pandilha lá do bairro. Então, e eu até consigo imaginar o Zé Ralha a parar no meio da estrada e erguer o olhar para o céu, disse: "Meu filho, esses não são teus amigos, são teus colegas. Amigos terás dois ou três durante toda a tua vida".
Fabuloso. Profundo. De fazer chorar as pedras da calçada. Imperceptível e traumatizante aos olhos de uma criança com menos de seis anos, por mais sobredotada que ela fosse.
O segundo ensinamento do Zé Ralha é a melhor recordação que eu tenho desse senhor.
Era o início de Agosto. Tinham desligado na véspera a máquina que mantinha o meu avô Oliveira "vivo". Ia a enterrar nesse dia. Ia para junto da minha avó Tóia, em São Félix.
Morreu de desgosto, o meu avô Oliveira. Porque não aceitou que a mulher, 25 anos mais nova, fizesse primeiro a travessia. Não estava certo. Por isso, deixou-se morrer. Em pouco mais de seis meses, deixou-se morrer.
O Zé Ralha reapareceu nas nossas vidas nesse dia. Eu não me lembro do Zé Ralha antes disto. Não deixa de ser estranho, porque me lembro da Marta e do André, da casa da Travessa do Noronha, lembro-me e tudo da Manuela, mas não me lembro do Zé Ralha.
Lembro-me da avó Zá me subornar com Sugus de morango para me levar para a casa do Zé Ralha e da Manuela no Bairro Alto, lembro-me de ela falar do Zé Ralha na casa da Praça Pasteur enquanto fazíamos mistelas na cozinha (ela tinha sempre uns biscoitos pré-preparados no forno e só soube disto há pouco tempo; se a Madalena não me tivesse contado continuaria a acreditar que era uma exímia cozinheira aos quatro anos).
Lembro-me de um recorte de jornal que ela mostrava às escondidas da minha mãe (tinha uma foto do Zé Ralha na inauguração da sua exposição), lembro-me de ela me pedir para fazer desenhos bonitos para o Zé Ralha (andava iludida, a avó Zá, também), lembro-me de ela vaticinar, perante o olhar de pânico do meu avô Ralha, que eu desenhava tão bem que, de certeza, me viria a tornar numa grande pintora como o Zé Ralha. Lembro-me de tudo isto, mas até ao dia 3 de agosto de 1985 não me lembro do Zé Ralha.
Eu não sei como é que o Zé Ralha reapareceu nesse dia triste. Apareceu do nada, do céu aos trambolhões.
Levou-nos para a Feira Popular (fomos de Táxi, apesar de vivermos na avenida dos Estados Unidos da América; o Zé Ralha é viciado em Táxis).
Pagou-nos as entradas para todos os divertimentos (menos os póneis, que me faziam chorar, disse-lhe que os póneis estavam tristes e que não queria andar). Joguei dezenas de vezes no Out Run (todos os anos, pedia ao Pai Natal - tenho lá uma carta ainda - um gato persa e um Ferrari Testarossa, e o protagonista do Out Run era um Testarossa) e outras tantas de Tetris (houve uma altura, quando a minha idade ainda não tinha dois dígitos, mas o vício já era tão grande que, para adormecer, em vez de contar carneiros, fechava os olhos e imaginava peças de Tetris a cair lentamente; aconteceu-me na adolescência a mesma coisa com as paciências).
Fomos almoçar numa espelunca. Fartámo-nos de rir.
A recordação é tão boa que até consigo ceder aqui e dizer que o meu pai (e não o Zé Ralha) esteve no seu melhor. E foi nessa poçilga que o Zé Ralha nos passou o segundo ensinamento para a vida. Disse-nos: "Filhos, nunca comam salada em restaurantes como este".
Amen.

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