A noiva de preto
[este post demorou um pouco mais a parir, sobretudo porque o blogger comeu, de um dia para o outro, mais de metade do texto... Censura, naturalmente...]
A Magui explicou ao Zé Ralha, momentos após o ataque sanguinário, que os dois teriam que casar, corrumpida que estava a honra do seu pescoço.
O Zé Ralha ignorou a Magui e o seu ultimato, mas ela sempre teve um dedinho que adivinha e, pouquíssimo tempo depois, lá estava o Zé Ralha a ser emancipado (a maioridade era aos 21 anos), para poder dar o nó com a Magui, na 5ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa - que ficava, até pouco tempo (a minha filha ainda lá foi registada, no final de 2003), na avenida Guerra Junqueiro.
Na véspera do casamento, o meu avô Oliveira deixou uma caçadeira no quarto da Magui. Suponho que se fez isto à própria filha, deve ter arranjado, também, uma maneira de colocar, sorrateiramente, uma cabeça de cavalo por entre dos lençóis da cama do Zé Ralha.
A família Oliveira estava de luto.
A Magui apercebeu-se disso, ficou triste, revoltada e, já sob as más influências do Zé Ralha - tenho a certeza disto -, vingou-se, partindo o coração à minha avó Tóia, cujo sonho sempre foi fazer um bom casamento para a sua filha. Fazer o casamento a que ela não teve direito. Com toda a pompa e circunstância.
O exemplar que arrebatou o coração da Magui era, de facto, invulgar, mas até provinha de boas famílias. Menos mal, portanto. Urgia, por isso, fazer uma festa de arromba, uma festa que camuflasse as excentricidades do Zé Ralha. Impunha-se, então, uma boda no Buçaco Palace, 500 convidados no mínimo, um folclórico vestido branco, cheio de bordados e rendinhas, de preferência, comprado no Tito Noivas, na Baixa.
Mas não foi assim. A Magui bateu o pé, informou que não haveria casamento se não a deixassem ir vestida de preto. Ela costuma dizer que foi premonição, mas eu sei que foi, de certeza, maluqueira directamente regurgitada da cabeçita maquievélica do Zé Ralha. Reza a lenda que a Magui não se recusou a casar pela igreja - apesar do ódio acumulado em doze anos de colégios de freiras em regime de internato -, movida apenas pelo gozo que de se ajoelhar perante Deus vestida de luto.
Logicamente, a união do Zé Ralha com a Magui não foi selada por Deus. Não houve centenas de convidados, apenas uma dezena de presentes, os familiares mais próximos: pais e irmãos. Não houve banquete no Palace do Buçaco, almoçaram na Mexicana e, saídos dali, seguiram com as suas vidinhas.
O Zé Ralha não cortou o cabelo nesse dia de Setembro (julgo que foi o dia 2), mas os pais não se importaram; já estavam habituados a piores excentricidades do seu primogénito. Suponho que o meu avô Ralha terá corado e engolido em seco quando viu o seu varão a casar de fato azul bébé, camisa roxa e flor de antúrio encarnada à lapela, mas isso, são só suposições minhas, porque não existe nenhum registo fotográfico.
Nada. Como se não tivesse acontecido.
Procurei, procurei nos muitos caixotes e caixotes e albuns de fotografias atafulhados de pessoas e sítios que eu não sei quem são, nem onde ficam, vi dezenas de fotos de casórios, gente feia, gente assim assim e gente até bonita, trigueira, mas bonita, mas não encontrei nenhuma foto da Magui vestida de preto e o Zé Ralha de antúrio à lapela.
Eu não perdoo à Magui e ao Zé Ralha de não terem descido a Guerra Junqueiro de mãos dadas, de não terem deslizado aos pulinhos histéricos as escadas do metro da Alameda (já existia, com certeza, a estação, em 1971), de não terem corrido as cortininhas de veludo verde do "photomaton" entre olhares de cumplicidade, de não terem colocado meia dúzia de tostões na ranhura da máquina, de não se terem beijado, iluminados por um fogo-de-artifício de "flashs".
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