Jaime
Jaime é um pianista trágico, com uma higiene capilar duvidosa.
Tem uma vozinha de falsete e muitos tiques nervosos: pisca os olhos freneticamente e faz ginástica com os dedos, no ar, nas mesas, onde quer que esteja, como quem acaricia um piano imaginário.
Encontrei o Jaime, por acaso. O camarada Cerejo mandou-me para a rua: "Vai encontrar uma história, coisinha!". O Cerejo chama-me coisinha. Talvez saiba o meu nome, acredito que, pelo menos, conhecerá o meu estranho apelido, mas insiste no "coisinha".
Aceitei o repto sem hesitar, não me apetecia estar no bunker da rua Viriato, a carregar no "refresh" do Gmail compulsivamente, à espera de notícias de um pombo, que suspeito que anda de asa ferida.
Assessorizei um pouco - que é o verbo que eu inventei quando vou tomar café com um determinado assessor da praça -, e depois de ter bebido uma água Campilho (foi a primeira vez que bebi uma água Campilho, por isso é que a menciono), fui à procura de uma história.
Senti-me turista no centro da cidade. Gostei de ver a cidade assim. Como se fosse pela primeira vez. Abençoei o Cerejo várias vezes por me ter mandado para a rua - no meu peito uma angústia terrível, e eu impotente, sem saber nada, sem poder fazer nada, andava nisto, coração apertado, quando esbarrei com a primeira potencial história: um sapateiro que parou no início da revolução industrial. Achei que aquela era a história - sapatos, um dos meus temas favoritos, mas o velhinho que tresandava a cola de contacto, não se sentiu atraído pela ideia de aparecer num jornal.
Vagabundei entre a Estefânea e o Saldanha, a tentar forçar o destino, e, quando já tinha desistido, encontrei o Jaime, a tocar Nick Cave e Tom Waits num Centro Comercial. A tocar, a tocar bem, por sinal, sem ninguém se dar ao trabalho de ouvir. Já nem digo aplaudir, pelo menos parar um bocadinho e ouvir.
Lá tenho que dar o braço a torcer e revelar-vos mais um ensinamento do Zé Ralha - fónix, o senhor, afinal, ainda me ensinou meia dúzia de coisas, não muito úteis, ensinamentos profundos, apenas, de um homem que diz ser um reservatório de conhecimentos inúteis.
Um dia, fomos à Baixa, e de dez em dez metros, o Zé Ralha insistia em parar, escutar ou observar e, no fim, aplaudir, a arte de rua de todos os mendigos - cegos, amputados, velhinhos, ou apenas vagabundos. À primeira, uma criança ainda acha piada, ao sétimo já não há cú.
E nisto, quando a minha cara de tédio e inquietude já não enganava ninguém, ele sai-se com esta, que me acompanha até hoje: "não dês só a esmola aos ceguinhos. Perde cinco minutos a ouvi-los também." E ali ficámos, mais de dez minutos, a ouvir o velhinho que tocava guitarra clássica e que, salvo erro, ainda actua por aquelas bandas.
Alguns poucos anos mais tarde, andava eu a cantar músicas bonitas nos túneis das estações de metro de Roma e Alvalade para ter dinheiro para comprar um bilhete para os Madredeus no CCB, e percebi a importância de alguém se dar ao trabalho de ouvir o que estamos para ali a fazer. O dinheiro, claro, a esmolinha, era muito benvinda, mas eu ficava bem mais contente quando alguém despejava o porta-moedas - houve um tipo que me deu mil escudos e há doze anos atrás isso era muito dinheiro - e perdia dois minutos a ouvir.
Por isso, sentei-me numa mesinha do dito centro comercial e ouvi. E bati palmas no fim. O Jaime agradeceu com aquilo que sabe fazer; perguntou se havia alguma que eu quisesse que ele tocasse. No meu cérebro passou de raspão a frase batida - play it again, sam -, mas soltei um inesperado Bach. Bach a um tipo que estava a tocar Nick Cave. Só eu. Surpreendentemente, ele tocava Bach.
Foi nesse momento que soube que estava ali a minha história.