Stress pós-traumático
Na próxima terça-feira, meu irmão, como já não tens problemas e traumas que te valham, depois de mais de cinco anos semanais de terapia com o doutor Morais, leva-lhe este, eu não tenho dinheiro para sentar o rabo grande no divã, mas acho que podemos fazer a coisa à distância, por correspondência e, como já é hábito levares, às terças, o granel da nossa família, acho que ele não se importa de me diagnosticar à distância, e já agora de me tratar, também, sem eu meter lá os coutos. É que eu acho que estou mesmo doente, e não consegui ver grande coisa sobre este distúrbio da personalidade no Google, falta-me o Larousse Medical do avô Oliveira, onde todas as semanas podíamos escolher uma doença nova, mas estou em crer que sofro de stress pós-traumático agudo.
Não estive na guerra – quando tenho estas crises, dou graças a Deus não ter a Beretta com mira de infravermelhos escondida na gaveta das cuecas, da cómoda barata do Ikea que se está a desfazer aos poucos –, não fui violada, sequestrada, torturada com penas de ganso, ou impedida de dormir durante dias a fio para confessar um crime que não cometi. Por acaso, tive um acidente de carro que só tu e muito poucas pessoas sabem, mas o problema não está aí, não está, não está, como diz o Noddy, repetindo três vezes para frisar bem a coisa: passo há onze anos na Rotunda do Relógio, vinda de Chelas (ainda ontem passei), e quase nunca me recordo de um Rover desportivo (ontem lembrei-me), meio bimbo, encarnado, do talhante da avenida de Roma (eu namorei com o filho do talhante e fiz-lhe grande parte do seu curso superior de arquitectura), estofos de pele clarinha e interiores de nogueira, o Rover a diminuir drasticamente de tamanho, como uma lata de refresco vazia, a cada embate, 2500 centímetros cúbicos de cilindrada aos tombos pelas três faixas de rodagem, já me esqueci dos dois embates contra o separador central de betão, isto tudo à roda, como num carrossel, lembro-me vagamente da mão dos anjos a desviarem o dito carro desportivo do outros carros e, se me esforçar um pouco, consigo ainda ver o filme da minha vida toda a passar-me à frente dos olhos (não era muita, a vida, eu tinha apenas 16 anos e ainda achava que ia ser cantora), e à frente dos olhos a passaram, também, à velocidade da luz, estilhaços de vários vidros, o da frente, o do lado, os airbags a dispararem, o namorado da altura a querer voar, mas a ser retido pelo cinto de segurança, e dez segundos depois, finalmente, o poste de iluminação pública a substituir o ABS que não disparou, e um pára-choques perdido na estrada. Consigo até reviver o alívio com o misto de estupefacção de estar viva e sem um arranhão – apenas com um vestido feito de vidros entre as pernas.
Estaciono o carro no Parque da Praça do Município e quando o motor pára, estafado, começam os suores frios (e eu não suo nunca, nem que corresse a maratona), e as pernas a tremerem como gelatina Royal, a negarem-se a seguir as ordens da espinal-medula para se porem a caminho: direita, esquerda, direita, esquerda, pareço um bebé que dá os seus primeiros passos a medo, e eu praticamente incapaz de subir as escadas, sem vontade, sem coragem de subir as escadas, com tonturas, e pontinhos amarelos à frente dos olhos, e um zumbido infernal que é o alarme de que estou prestes a desmaiar. E se subo, quando subo, às vezes tenho que subir mesmo, porque tenho que ir ouvir o senhor presidente da câmara de Lisboa amiúde - mas já houve dias em que não fui capaz, por isso é que eu digo que estou doente -, tenho um truque, como os burros: ponho entrolhos do lado direito, pode ser um jornal, ou a mala, tanto faz, eu é que não consigo olhar para a porta do Tribunal da Relação de Lisboa, e mais uma vez agradeço não ter a Beretta quando alguém, muito poderoso, me mandou ter filhos por inseminação artificial a Espanha.
Sempre que o telefone toca e é a advogada, a competente, não a outra que só me ficou com uns belos milhares de euros sem ter feito nenhum, e me lê um qualquer documento, um recurso, alegações, acórdãos, qualquer coisa que me faça reviver um milésimo do que aconteceu na Relação, volta a acontecer: não me aguento nas pernas, atrapalha-se-me a fala, tenho que me sentar, o coração pula, chega até ao nível da taquicardia cavalgante, qualquer dia tenho um treco, não consigo respirar, mesmo quando são boas notícias, e depois não durmo nos dois dias seguintes, estrago o meu aniversário de dois meses de namoro a recordar os piores dias da minha vida, em que emagrecia dois quilos a cada 24 horas, em que não me conseguia arrastar para fora de casa, dias em que senti uma angústia nunca antes sentida, beco sem saída, e Berettas, sempre Berettas na cabeça, e que bonita que eu ficava com a gabardine de pele preta, cabelo apanhado, e uma Beretta em punho, e ele já me acompanhava do outro lado do monitor, e dava-me o seu apoio, contrariando o acórdão que me chama de “caprichosa” e “egoísta”, e agora até diz que adopta o meu nome quando nos casarmos, e que todos os nossos filhos podem ser Ralha. E as duas esquizo, lembro-me sempre delas quando o oxigénio tarda em chegar ao cérebro, e não consigo coordenar movimentos: da que também treme das mãos a torto e a direito, a que me salvou naquele final de manhã, que me ligou e me obrigou a almoçar nas freirinhas do Chiado que têm a melhor vista de Lisboa (o Carvalho da Silva deve ter a segunda melhor vista, do seu gabinete), que me trouxe à realidade, eu não chorei durante o almoço, só na Basílica dos Mártires, a fazer uma promessa louca aos pés do Santo Expedito e, nos dias seguintes, a madrinha, a dizer-me para não desistir, que acreditava em mim e na minha causa doida, que eu não era louca, que peço apenas o que está escrito na lei, e como eu me consumi, estiquei a reserva do depósito de combustível, e o meu motor é a diesel e gripou, ela deu-me um bocadinho da sua força sobrenatural (força de fada, de fada madrinha) e eu sobrevivi, consegui sobreviver nos dias seguintes, mesmo que sem dormir. E uma semana depois, as senhoras da Comissão para a Igualdade e para os Direitos da Mulher e um magistrado do Ministério Público a contactarem-me, caídos dos céus, e então, não me senti tão sozinha e má mãe como me acusou o desembargador, e depois, dois homens, dois inomináveis, que não me fizeram lá muito bem, que me fizeram chorar entre imperiais e cigarros espetados num cinzeiro malcheiroso, mesmo aqui ao lado, no Lacinho.
E eu só sei que não fui à guerra, não fui assaltada, sequestrada ou torturada. Mas algo terrível aconteceu naquele Tribunal, algo que eu não consigo ultrapassar ou racionalizar, que me impede de estacionar o carro na Praça do Município. E, se calhar, tenho que viver com isto para sempre, como uma doença crónica que não mata mas mói, para lá da sentença que há-de sair, daqui a muitos anos, do Tribunal Constitucional, e que me há-de sossegar, e que eu espero que seja histórica, para me dar um pouco de paz, porque, pelo menos, entre mortos e feridos, e feridas que não fecham nunca e pioram em dias de humidade, fui até ao fim.