Post a três tempos mais um - a filha da Corina
O post vai passar a ser a quatro tempos, e a minha produtividade neste blogue não aumentou por eu ter feito o que não devia, mesmo com os avanços na medicina blogoesférica: partir as narrativas que nascem na minha cabeça agarradas umas às outras, como gémeas siamesas, impossíveis de separar sem pôr em causa a vida de pelo menos uma.
A filha da Corina não era para aqui chamada, francamente, eu nem sei como ela me chegou, penso que por andar a pensar muito em casamentos, no meu casamento no jardim da Estrela, mas, segundo o planeado há dois dias, eu devia estar a escrever sobre iscas, e sobre a pedra que a minha mãe às vezes parece que traz no lugar do coração (a Magui devia ser operada à coluna vertebral, disse-lhe um cirurgião que tem um apelido muito doce - "Passarinho" -; ela vive num mundo em que todos os dias são um martírio de dor por causa daquele pilar frágil que a sustenta, mas optou por deixar o cartaz a dizer "frágil" e não mexer em nada, ela tem é medo, são 14 horas adormecida, pulmões para um lado, placas de titânio para o outro, mas nunca o admitirá: para nós, para os que se faz passar por mulher com poderes sobrenaturais, a Magui diz que se recusa ir à faca porque iria ficar com duas enormes cicatrizes, nas costas e no abdómen, num corpo muito branco e imaculado de pontos cirúrgicos. Não sei como ela fez a substituição do órgão vital por uma pedra de granito, eu realmente não vejo costuras, mas às vezes sim, sou capaz de jurar que o coração que já ameaçou parar não sei quantas vezes ficou algures pelo caminho de uma vida que não foi o que devia ter sido).
É incrível como passam tantas pessoas pela nossa vida que apagamos com os anos. Como a filha da Corina. Como a própria Corina, senhora roliça e cheia de couperose nas bochechas, de quem me lembro apenas por ter um nome impensável (nunca me esquecerei, também, da minha vizinha Anália).
Não foi assim há tanto tempo. Há menos de dez anos e digo isto com certeza, porque sei o que trazia vestido, tenho saudades desse vestido que comprei no meu 18º aniversário. E nessa manhã, o São João da Pesqueira livrou-me de uma morte estúpida dentro de uma banheira demasiado nova e escorregadia.
O pai da dona Cândida, que em tempos foi minha sogra, ou projecto de sogra, e que é a irmã mais velha da Corina, tinha ordens, há cinquenta e muitos anos atrás, para ir registar, a São João da Pesqueira, a mais nova das suas filhas com a graça de Maria Albertina. Como na canção. Sem desvios e sem estadas prolongadas na taberna, disse-lhe a mulher que sempre vestiu as calças naquela casa e lá está, cujo nome não me recordo, apesar de ter passado consigo tardes imensas de um Verão no corredor da morte de Oncologia do Santa Maria (era uma boa mulher, gostava muito dela, e estou mesmo triste de não me lembrar o seu nome e apenas os seus bigodes cinzentos).
O caminho entre Mogadouro (seria Mogadouro?) e a Pesqueira era longo, não havia carros e a carroça era para os ricos. O rechonchudo senhor contava sempre esta história. Que no caminho passou por uma procissão que levava a braços uma imagem de Santa Corina (vou googalizar a ver se existe; não encontrei). Lá em casa, uma casa de xisto muito bonita, com camas de ferro com florões pintados à mão, a Maria Albertina dormia sossegada no berço, sem saber que poucas horas depois se chamaria Corina.
A mulher nunca perdoou ao marido a desfeita e o bafo a bagaço barato com que chegou a casa. A filha também não.
Lembro-me pouco da filha da Corina. Tinha um cabelo enorme entrançado e um peito copa C acima do tamanho 40. Não tinha as bochechas cor-de-rosa como a mãe, mas não era fininha como o pai, o pai cujo sonho era comprar uma carrinha Bedford e cuja a aparência física o transportava para o século XIX, em plena revolução Industrial.
A filha da Corina quis casar um dia. Na aldeia não havia muito mais que fazer a não ser casar. A Corina comprou-lhe um trem da Ideia Casa por 80 contos. Na manhã da boda, eu maquilhei a filha da Corina. Ela nunca tinha posto base na sua pele, muito menos uma sombra. Eram coisas da cidade grande. Fiz um bom trabalho, numa paleta de rosada: a noiva ia linda, com o buço depilado e com pequenas pérolas espetadas no cabelo bonito.
Eu dancei música pimba num barracão de tijolo colado com cimento, no copo de água do casamento da filha da Corina, que durou pouco mais de seis meses. A filha da Corina batia no marido. Ele saiu de casa.
É isto que guardo da filha da Corina, que me assaltou o espírito esta manhã, deixando-me imensas dúvidas onde farei eu o meu copo de água e quem me maquilhará...
6 comentários:
Eu até te maquilhava, mas não me parece boa ideia... tendo em conta que não tenho jeito nenhum! ;-) Quanto ao local do copo de água, posso dar-te uma ajuda na escolha... bem como do vestido!
Desde que não batas no marido...
Eu sei o que é conviver com 26 anos de dores constantes na coluna...
belo texto mais uma x. bjs
Encontrei teu blog ao acaso. stei do que li e vi. Muito bom mesmo. Parabéns. Sempre que possível voltarei. Abraços. Caracteres
Volta sempre, caracteres. Há muitos por estas bandas.
Enviar um comentário