segunda-feira, julho 24, 2006

Os pássaros quando morrem caem no céu*

E eu tinha medo de Deus desde que ele me concedeu o desejo no armário dos sapatos.
Desde então, a Magui perdia muito tempo a entrançar-me o cabelo, sempre na casa-de-banho, com a escova azul petróleo, que se perdeu nos entretantos - uma pena; a escova não arrepanhava o meu cabelo de um metro de comprimento, e nunca mais tive uma escova tão boa.
Eu sentava-me, pacientemente e em silêncio sepulcral, com o estojo dos elásticos e dos ganchinhos ao colo - era amarelo e tinha um coelhinho e, infelizmente, também se perdeu nos entretantos -, ainda hoje vi uma fotografia dessa época, os ténis comprados na Angolana, perto do mercado de Alvalade, uma saia de peitilho e uma camisa de quadrados amarelos com mangas de balão que não apertavam, porque os meus braços já eram gordos, eu deitada, e a trança gigante pousada na pista de tartan do Estádio da FNAT (lamento, mas para mim, e a bem das minhas memórias, ele chama-se assim e não primeiro de Maio), e já tinha olhos tristes e a ruga de preocupação a meio das sobrancelhas, e a minha mãe escovava-me o cabelo com cuidado e vestida de preto, sempre de preto, por respeito, e estava tão magra e eu, num banco branco, igual a outro que, há tão pouco tempo, tinha partido três andares acima, sem me acusar, mas quando eu o parti avó Tóia ainda estava viva e obrigava-me a dormir a sesta no quarto da empregada, e depois de dormir, ou de fingir que tinha dormido, ela entrançava-me o cabelo nesse banco idêntico ao de tantas outras casas-de-banho, não usava a escova azul petróleo, mas um pente de dentes finos de tartaruga, e o truque era uma bacia de água com sabão para me fazer canudos de anjo, que eram enrolados no seu dedo indicador, mas eu sempre fui uma boa menina, não arranjava problemas, nunca comi sabão como o Hugo, era sonhadora demais, talvez, e, por isso, ela só me ralhou um bocadinho e foi só por eu não ter contado de imediato que tinha partido o banco (tinha ido ao armário da casa-de-banho buscar um bocadinho de mentolato para uma queimadura da alcatifa no meu joelho direito) e, pior, ter negado veemente a minha culpa (acho que não me deixou comer morangos à sobremesa; acho que foi esse o castigo).
Isto foi antes de o Leonardo me queimar a bochecha esquerda com o secador de cabelo Braun (passados estes anos todos, eu sei que ele continua a negá-lo. E o que dói mais, mais até do que ele me ter feito crer que eu tinha sido encontrada num caixote do lixo do Casal Ventoso, foi a Magui ter visto tudo e não ter feito nada, nem sequer confirmar que ele me queimou a bochecha esquerda com o secador Braun). Eu saí do meu silêncio, quando a Magui estava já a fazer os laçarotes das tranças com fitas de cetim azuis, confessei que tinha morto a minha avó através do pedido feito a Deus no armário dos sapatos, e contra todas as minhas expectativas, ela não me entregou à Polícia; pelo contrário, explicou-me que não, que isso era a minha imaginação e sossegou-me um pouco e ainda disse que a avó estava numa nuvem a fazer limpezas: vai à janela ver se não está a chover, disse ela, mas eu continuei a ter medo de Deus e as nossas conversas sérias, diálogos constantes a qualquer hora do dia ou da noite, acabaram por muitos anos, quase tantos como estes últimos em que lhe virei as costas por não perceber qual é que era a ideia.
Ele fez-me muito mal. Eu acho que ele nem sabe, nem se lembra o mal que me fez. São coisas que fazemos por esquecer, que só nos aparecem nas profundezas dos pesadelos que não recordamos ao acordar a gritar, a nadar em poços de suor. De vez em quando, suponho, ele também acorda a gritar. Ou talvez não. Há quem durma descansado. Eu faço por esquecer. Eu quase já esqueco
Mas reconciliou-me com Deus. Por causa dele, demos um aperto de mãos tímido, demorou muito tempo a voltar a ser o que era, mas foi ele que nos chamou à razão, que colocou alguma água na fervura.
Numa gaiola muito pequenina, com algodão a forrar-lhe o chão, estava um pardalito penugento, que tínhamos encontrado à tarde, no jardim. A Magui não nos deu esperança, preparou-nos para o pior. Era muito pequeno e frágil. Não abria o bico para comer a papa. Ela inisitia, mas ele não abria o bico.
No escuro do quarto da Magui, onde eu dormia desde que me tinha convencido que tinha sentenciado a minha querida avó à morte, por causa de uma conversa tola com Deus, dentro do armário dos sapatos - apenas pedi para regressarmos a Lisboa não queria mais passear-me pelos corredores enormes de Viseu -, havia sombras das persianas da janela na parede da cabeceira. E eu chorava pela vida frágil que estava na gaiola: nesses anos que se seguiram, a morte aterrorizou-me e fez-me vincar a ruga a meio das sobrancelhas, e não é por acaso que ela está tão marcada aos 28.
Passámos por muito. Ele nem se deve recordar. Deitou-se comigo, nos lençóis cor-de-rosa de flanela, e eu soluçava e dizia ele vai morrer, ele vai morrer, e ele sossegou-me, fez-me rir até e ensinou-me a rezar - eu não sei porquê, agora sei, mas na altura não sabia, porque é que lá em casa não se rezava. Entrei para a primeira classe e não sabia o que era jurar, nem tão pouco que prática era essa de imolar carneiros - isto estava num texto de leitura e eu fui gozada por não saber e ainda mais ostracizada no recreio, quando me insurgi contra o sacrifício do pobre animal. Às escuras, ele disse: "Se pedirmos a Deus com força, de olhos e mão fechadas, o passarito não vai morrer". Eu não lhe expliquei que tinha medo de Deus, não queria mais ser gozada, ele ia dizer-me que era tudo um mal-entendido, que ninguém fala com Deus no armário dos sapatos, que foi coincidência (ele era pouco mais velho do que eu, nem saberia o que queria dizer a palavra coincidência).
Já não falávamos há uns meses, mas eu sou banana, tem sido sempre assim, acredito na bondade alheia, que ninguém é perfeito, que a nossa condição é de errantes compulsivos, que toda a gente merece uma segunda, terceira ou milésima oportunidade, e dei-lhe uma hipótese de se redimir aos olhos de uma menina de sete anos, de provar que também dava vida, que podia fazer um milagre por debaixo dos lençóis.
Essa noite não acordei a chorar.
O pardal não morreu.

*É o mais belo instrumental escrito pelo Pedro Ayres Magalhães. Está no álbum os Dias da Madredeus, EMI, 1986

4 comentários:

Isa disse...

e este é um dos teus textos mais belos. juro.

um bom terapeuta chamava-te um figo!
bjs

Anónimo disse...

Eu também me zanguei com Deus um dia destes. Mas depois foi ele que me deu colo. E se não deu eu achei que sim. No outro dia escrevi la isso. Dos pássaros. Gosto tanto, é tão bonito Madredeus. Mas eu falava de gaivotas em particular. Um dia deixo a gaivota que trago sempre comigo e arranjo uma borboleta ou um amor-perfeito para me representar. Digo eu. Mas eu digo muita coisa que acabo por não fazer. Não ligues. Não tem nada a ver com o teu post. Nem parece um comentário. Mas vou dizer-te o quê? Gosto da tua escrita ja te o tinha dito. E por isso tenho vezes que nem digo nada. Para não parecer um disco riscado sem nada de interessante para dizer. Acho que tambem pedia desejos dentro do ármário. Mas já não me lembro quais. Talvez um dia me lembre. Quando voltar (das ferias..) passo por cá certamente.

Mary Mary disse...

Ui, ui, fiquei toda arrepiada. Safa!

Deixei de acreditar há muito em tal existência superior, se calhar nunca acreditei. Acredito naquilo que vejo todos os dias.

BOM DIA! :P

AnadoCastelo disse...

As coisas de que te lembras de pequenina. Engraçado, mas há mts coisas que já se me varreram. E continuas a escrever mt bem.
Isso já tu sabes de sobra. Mas sei que tb é bom saber isso dos outros.
Jokinhas