terça-feira, janeiro 11, 2005

Deus no armário dos sapatos

A nossa casa de Viseu é a casa mais bonita da cidade. Fica no centro da cidade, a um passinho do Rossio.
É uma casa cor-de-rosa, com a fachada repleta de símbolos maçónicos. Tem as janelas mais bonitas que eu já vi: em forma de estrela.
A nossa casa de Viseu tem um pé direito que nos permitia convertê-la num hotel para gigantes. Tem uma escadaria de mármore que parece a selva, povoada pelas "monsteras" gigantes que ali moram há muitas décadas. Cheira sempre a terra molhada naquelas escadas, apesar de as "monsteras" serem regadas apenas uma vez por ano.
A nossa casa de Viseu tem dois pisos e muitas assoalhadas. Tem uma sala, onde cabia todo o meu apartamento de Lisboa, só para o piano - o piano com o qual eu sonho muitas vezes sempre o mesmo sonho.
A nossa casa de Viseu fica no número 54 da rua Alberto Sampaio; em frente fica o Governo Civil. Tem corredores intermináveis, com passadeiras encarnadas, que eu e o Hugo usávamos como circuito de triciclos.
A nossa casa de Viseu tem um sótão poeirento e decorado com teias de aranha, tem uma adega gigante e sombria, tem garagens que guardam clássicos de outros tempos - um Wosley charmoso do início do século XX, dois Austin A40, um Cheverolet da década de 50 que gasta 30 litros de gasolina aos cem, um Volkswagen Carmen Guia descapotável (cujo único defeito é ser encarnado) e um Carocha da segunda Guerra Mundial.
A nossa casa de Viseu tem uma assoalhada à qual eu sempre chamei armário dos sapatos. Um dos corredores da nossa casa de Viseu termina aí, nessa arrecadação, onde tudo se guardava: os sapatos, um aspirador Electrolux da década de 50, bonito, azul metalizado, e uma "sabrina" cor-de-laranja (sabem o que é? é um híbrido entre a vassoura e aspirador...).
Eu sempre tive medo de dobrar essa esquina. Fechava sempre os olhos com força e só os abria quando já estava a meio do outro corredor.
Eu tenho uma foto da última viagem que fizemos até Viseu. Foi o Zé quem a tirou, lembro-me muito bem. Estamos parados na berma de uma estrada, o Simca verde está com a bagageira aberta, atafulhado até mais não - a minha avó levava sempre para Viseu mantimentos suficientes para sobreviver a uma catástrofe natural; ninguém lhe punha na cabeça que na terra do Viriato também havia mercearias e, até, um supermercado (um Pão de Açúcar, logótipo laranja inesquecível também).
Eu e o Leonardo estamos a comer pão com marmelada, eu estou agarrada à minha avó Tóia (Custódia), tenho o cabelo dividido em duas trançinhas enormes e a palhinha de um pacote de leite Mimosa de morango na boca (entretanto, há meia dúzia de anos, voltou a ser comercializado para satisfazer, de vez em quando, a minha memória gustativa; gostava que fizessem o mesmo com o Tódi e com a Carbosidral, lanço aqui este apelo...).

O meu avô Oliveira está, como sempre, impecável, de fato e chapéu. Mas está muito sério, como se previsse que aquela seria a última viagem até Viseu. Que seria a derradeira paragem no Buçaco. Que aquele ia ser o último enjoo do Leonardo (que entrava em simbiose com a cor do carro) nas mais de cinco horas de viagem que separavam Lisboa da nossa casa de Viseu.
Nesse último Verão em Viseu dei comigo a acreditar que Deus falava comigo no armário dos sapatos.

Ia para lá horas ao fio - a casa é tão grande que ninguém dava pela minha falta. Implorava por castigos implacáveis para o Leonardo - que me puxava as tranças e me dava estaladas a torto e a direito -, pedia umas fitinhas novas para o cabelo (era uma miúda muito Lolita, muito pindérica), mas, acima de tudo, reclamava ao Deus do armário dos sapatos que a minha mãe e o Hugo se juntassem a nós o mais rapidamente possível.
Quando chegaram, as minhas expedições ao armário dos sapatos tornaram-se menos frequentes. Era um segredo só meu e com o Hugo por lá eu tinha um amigo verdadeiro para brincar.

A minha mãe saía todas as noites e eu lembro-me de ficar deliciada a vê-la pintar um sinal preto em cima lábio — parecia uma branca de neve loira.
O Verão passou a voar e eu ia, de novo, ficar sozinha, com o Leonardo e com os meus avós na nossa casa de Viseu. A minha mãe tinha que voltar ao trabalho e a megera da minha tia (continua a ser uma megera, vinte anos depois) não deixou que o meu primo lá ficasse em Setembro.
Estava na altura de ir ao armário dos sapatos. Utilizar o número verde para o céu.
Naquela tarde, prometi que me portava bem para o resto da vida se fôssemos todos para Lisboa.

A casa estava vazia naquela tarde. Todos tinham ido a casa de um médico amigo da nossa família, por causa de uma tosse da minha avó.
Chegaram pouco tempo depois, sem grandes conversas.
Enfiaram-nos a nós, miúdos, no quarto do piano e incitaram-nos a tocar os vários instrumentos que lá estavam ao nosso dispôr. Disseram-nos para fazermos o barulho que quiséssemos. Não estranhámos. Nunca nos deixavam tocar a corneta, mas não estranhámos. Apesar da barulheira sinfónica da corneta, do acordeão e das marteladas no teclado de marfim do piano, ouviam-se gritos e choros. Portas a bater.
Naquela noite, a minha mãe não saiu com os amigos. Não a vi a pintar o sinal em cima do lábio com um lápis preto, nem a sair para a rua com cara de boneca de porcelana. Naquela noite ninguém falou ao jantar, a não ser para nos anunciar, a nós crianças, que vínhamos todos para Lisboa.
Não explodi de alegria, mas tive a confirmação de que a minha cabine telefónica funcionava. Vinha para Lisboa, como tinha pedido, e isso só podia ser obra de Deus que me havia ouvido no armário dos sapatos.
A minha avó morreu três meses depois. Viemos para Lisboa porque lhe detectaram, em Viseu, um cancro no pulmão em estado avançado.
Culpei-me, durante muito tempo, do sucedido.

Nunca falei disto a ninguém, mas, mais tarde, apercebi-me de que ninguém fala com Deus num armário onde se guardam sapatos e aspiradores velhos.
Mas nunca aceitei isto muito bem.
Por isso, desde então, quando vou a Viseu, nunca abro o armário dos sapatos.

3 comentários:

mac disse...

gosto do ar que passa pelas linhas curvas das palavras. mto bom.

Anónimo disse...

regressa, dizes. impossível naquele espaço, agora. ando à procura de cais conceptual, onde atraque outras angústias e receba outros sinais. ainda bem que estás atenta
a.c.

Carrie disse...

confirma-se! Amo este post