segunda-feira, março 07, 2005

Astride

A Mónica é a minha "babysitter".
Sim, a minha "babysitter" - também cuida da minha filha, vela-lhe pelo sono quando eu quero ir beber um copo com a Pandilha ao Bicaense, mas, essencialmente, a Mónica cuida de mim. Cuida de mim, quando eu fico pequenina e frágil, todas as semanas, todos os sábados em que a Carolina me é arrancada por ordem judicial.
Nesse dia, que passou a ser o mais odiado da semana, a Mónica passeia-me pela cidade, arrasta-me para matinés de cinema no Alvaláxia, seduz-me com sessões de consumismo desenfreado (é louca por sapatos, por vestidos cai-cai e por casacos "cache-coeur" como eu) e sacieia-me a gula com sundaes (com dose dupla de molho), no mais curioso Mc Donalds da rede nacional - o da Avenida de Roma, onde velhinhas de cabelo armado arejam os seus visons bolorentos, bebericam meias de leite, exercitam as suas dentaduras postiças dando trincas gulosas nos "brownies" da cadeia de "fast food", coxixam sobre a vida alheia e lêm a "!Ola!" espanhola, com a mesma naturalidade com que o fizeram, durante décadas a fio, quando aquele espaço não estava decorado com cores berrantes - era escuro, datado, parado nos anos 70 - e se chamava pastelaria Roma.

Eu, injustamente, não agradeço à Mónica, pela sua paciência e amizade, tantas vezes como devia. Acho que não agradeço de todo. Sou parva e ela fica a achar que não é importante para nós. Porque teimo em nunca me referir à Mónica como a minha melhor amiga, magoando-a de morte quando dou esse estatuto à senhora editora Catarina. Tu não és a melhor amiga, és a amiga, a minha irmãzita mais velha (não refiles: és mais velha - dois meses e meio mais velha).

No dia em que a minha mãe saiu da Clínica de São Miguel comigo ao colo, seguiu a pé com a tia Lena até à Guerra Junqueiro para me registar. Foi o cabo dos trabalhos: A lady Di ainda não era lady em Inglaterra e Diana era nome de cão (de caça).
A conservadora estribuxou, refilou, insultou a Magui de dar um nome de cão à filha, mas a minha mãe, rebelde sem causa, em tom provocatório disse: "É nome de cão sim senhora! Tive uma cadela que gostava muito e é em honra dela que o dou à minha filha... E quer saber uma coisa? O meu filho mais velho chama-se Leonardo, porque eu tive um gato com esse nome de quem gostava muito...".
Escandalizada até à ponta dos seus burocráticos cabelos, a funcionária não teve outra hipótese: todos os nomes de divindades são permitidos em Portugal, e, por isso, a contra-gosto, lá colocou no assento de nascimento o "Diana".
Mas a minha mãe, naquele dia, estava bestialmente inspirada, ou então, foi só mesmo para pôr a pobre da mulher à beira de um ataque de nervos (não me espantava: conseguiu enlouquecer uma freira no Colégio do Sardão, a Madre Silva, levando consigo, para todas as aulas, um raminho de madressilva, que colocava estrategicamente em cima da carteira e sempre que a pedagoga da língua de Camões fazia uma pergunta à turma, a Magui agitava a ervinha cheirosa no ar, como quem diz: "Aqui, Madre Silva, eu sei a resposta!) e, então, sentenciou, segundos depois de vencer a batalha do meu nome próprio: "o segundo nome é Astrid" (a Magui sempre teve um estranho gosto para nomes próprios: o Leonardo se fosse menina seria Penélope).
A cinzenta funcionária tramou-a (ainda bem...) com essa, pesquisou nos registos dos nomes aceites em Portugal e saiu um veredicto: impossível! É a ainda utilizada regra dos registos civis nacionais, segundo a qual o nome próprio deve definir género. Ou seja, o mais parecido com Astrid que aquela conservatória aceitaria registar uma criança do sexo feminino era Astrida.

A Magui passou-se, "blá, blá, blá, sua ignorante: Astrid é nome de rainha, blá, blá, blá", mas a mulherzita lá permaneceu sentada, impávida e serena, sem reacção. Foi então, que a minha progenitora, com fumo a sair pelo nariz, muito cansada e já a começar uma grandessíssima depressão pós-parto se rendeu e, sem pachorra, me escolheu um segundo nome próprio também começado por "A". Foi assim que eu acabei a por me chamar Alexandra.
Mas um par de meses antes, numa outra Conservatória do Registo Civil, aposto, a Diná e o Zé, registavam a sua primeira filha com o nome de Mónica Astride. A Diná também é fresca como a Magui - é mulher para mandar para trás todos os bilhetes de identidade que lhe inscrevam o seu invulgar nome como Dina, vulgarizando-o -, e teria armado um pé de vento se lhe viessem com o "Astrida". Mas ninguém levantou ondas (o Astrid teve que levar com o "e" no final apenas) - devia haver, na altura, uma regra informal nas conservatórias, de só permitir o registo de um nome estranho a um bébé. Ora, eu tive direito ao Diana (dois ou três anos mais tarde, houve um "boom" de Dianas, quando a princesa lá deu o nó com o cara-de-cavalo do Carlos) e já não pude levar com o Astrid(e), mas a Mónica lá conseguiu a façanha (e ainda para mais gosta do nome, confessou-mo este fim-de-semana).
Logo por isto - e bastava só isto -, eu devia ter sentido, no primeiro instante em que nos cruzámos, que estávamos destinadas a ser grandes amigas. Mas não: andámos às turras, porque temos ambas mau feitio, porque eu não digeria muito bem o facto de ela ser melhor a matemática e em gestão do que eu e ela, por sua vez, não suportava o facto de eu ser melhor nas raras divagações criativas que o nosso curso de Publicidade nos possibilitou.

Já passámos por coisas do arco-da-velha: chorámos juntas, deslumbrantes, na passagem de ano do milénio, chorámos juntas, este Natal (na passagem de ano já não tínhamos mais lágrimas), pelo amor que tarda em aparecer. Lembras-te do teu Renault velhinho a arrastar consigo uma cauda de balões da BP pela via rápida da Caparica? Ou do dia em que a Carolina nasceu?
Nunca mais me digas que não fazes falta a ninguém.

2 comentários:

Anónimo disse...

Chorei e ri. Como em quase todos os teus textos. Mas este tem um saborzinho especial.
Eu tb gosto mto de ti, do teu mau feitio, mas sobretudo do teu bom coração em bruto. M., tb conhecida, em alguns círculos mais restritos, por Astride.

Anónimo disse...

Adorei.
o tributo é delicioso, de tão justo, e angustiou apenas um pouquito a ausência apesar de implícita na intenção. ao filho pródigo, faz-se a recepção real, e por isso, "Que dama, senhora Diana. Well done!"
nunca serão demais as palavras amáveis e os carinhos que tiveres para a tua amiga. arrisco que não te será fácil equilibrar a balança que guarda a dedicação, amizade e alerta que tem em permanência por ti e pela tua filha.
felizarda tu, por a teres a ela, e ela por ter a quem dar, que gosta de receber.
para ter um final ainda mais feliz, só faltaria reconhecer o quanto aquece a declaração aberta, que pula a cerca do implícito e vem gritar o que é e como é, para o meio da rua.