domingo, março 13, 2005

O Pacto

[Parabéns, João Cortesão. Gosto muito de ti.]

Eu devia ter desconfiado. Meia hora para estacionar é como um preto de cabeleira loira - não é natural. Pelo menos para mim.

Para os milhares de carros que se deslocam diariamente para o centro da cidade acredito que sim; dezenas e dezenas de voltas ao quarteirão devem fazer parte do castigo divino pela teimosia de trazer o carro para o Marquês de Pombal, os nervos devem ficar em franja com a procissão de fé do "pára-arranca" e a franja deve ficar em pé, com tanta electricidade estática acumulada pelas dezenas de lugares de estacionamento que são apanhados pelo carro que segue à frente do nosso.
Mas para mim não.
Sexta feira - e não era 13, verifiquei agora na agenda preta e laranja que uma agência de publicidade me enviou no início do ano -, quatro Lucky Strikes fumados religiosamente de cinco em cinco minutos, e depois de cantar 14 faixas do CD em coro com a Amy Lee ("Now I will tell you what I've done for you. 15 thousand tears I've cryed", em repeat one) arranjei um buraco em frente à Maternidade Alfredo da Costa (quem terá sido o senhor, assalta-me agora esta dúvida...), isto sem não antes ter que me degladiar com um indivíduo de meia idade, ao volante de um carro potente e no meio de uma crise aguda de andropausa, que teimava comigo que tinha visto o dito lugar de estacionamento primiero que eu e de ter resolvido o assunto com esta frase acutilante: "Só fica com o lugar porque é uma senhora..." O homem ainda devia ter bem presentes alguns resquícios do politicamente oito de Março - o dia internacional da mulher: terá o senhor levado rosas para a mulher e para a filha nesse dia?
Depositei um euro e meio nos cofres da EMEL, enquanto tirava as moedas da carteira pensei: "Não pode ser... Era bom demais". Nunca tinha desembolsado dinheiro para a EMEL com um sorriso nos lábios, com a sensação que tudo se resolveria a partir daquele momento, através de um talão de estacionamento me permitia ocupar aquela fracção do passeio até às 13h13 (devia ter prestado atenção a isto, também, mas estava concentrada num prédio de gaveto bonito, abandonado e assombrado, de certeza, na rua Andrade Corvo, e a pensar na maneira de roubar os azulejos arte nova com videiras que ainda persistem na sua fachada).
No início da semana passada, em plena ressaca do apaganço forçado do sr Andy da minha vida, estava a estacionar o meu Idea de estofos laranja à porta do jornal, num lugarzinho não pago e cobiçado por toda a redacção, quando ousei, nos dois micromilésimos de segundo que demorou este pensamento, fazer a seguinte prece: "Trocava de bom grado a sorte ao estacionamento, o pacto com a nossa senhora do estacionamento não pago (ou com o demónio do estacionomaneto não pago - não sei muito bem a quem é que vendi a alma), por boa ventura no amor". "Tolice, dá muito mais jeito lugarzinho à porta todos os dias, a qualquer hora", admiti à última da hora, com os meus botões, tentando-me convencer disto à força.
Entreguei o IRS pela Internet - o grande objectivo do dia -, estive meia dúzia de minutos com a Joana e com o Rui, almoçei no Laçinho - massada de Pampo, com o Madeira e Companhia - e o Xico dá-me ordem de soltura às 15h00. Diz: "Não há nada para fazer, vai ter com a tua filha, bom fim-de-semana". O queixo caiu-me, ainda tentei blogar (não consegui grande coisa) e às 15h30 (duas horas depois de o meu talão de estacionamento ter expirado), pus-me a caminho do Idea.
Lá estava, perto do prédio assombrado, decorado de fitas amarelas e pretas (que ficam muito bem com o cinzento chumbo da sua carroceria), com a roda da frente fechada a cadeado. Acabara de ser bloqueado por ocupação ilegal do lugar de estacionamento. Cinco minutos antes.
"Será? Será possível? Não é só nos filmes?", matutava eu, enquanto dizia à operadora da EMEL onde é que me encontrava. A espera foi curta, escrevi meia dúzia de linhas para o João Rocha, na Moleskine que comprei para lhe oferecer recheada com as minhas histórias, quando três rapazes vestidos de verde escuro bateram à minha janela.
Sorri, entreguei os documentos e o cartão Multibanco sem refilar, sem dizer nada, sem os tentar convencer de uma treta qualquer. Nada. Eles estavam atónitos, ganharam o dia: "Sabe?", dizia-me o loirinho, enquanto processava o pagamento - "Nós não estamos habituados às pessoas serem simpáticas e agradáveis... Até temos um colega que anda no psiquiatra por ser tão insultado na rua".
"Tenho só um pedido a fazer-vos", avançei, no momento em que me desbloqueavam a roda. "Queria ficar com a fita amarela, pode ser?". "Oh Morais, vai buscar um rolo de fita para a senhora". "É que essa está suja, a senhora merece um rolo de fita novinho", disse o loirinho, que acabou por se despedir lamentando o facto de me terem bloqueado o veículo. "Não é um carro que se veja muito, e com os estofos laranja muito menos", disse o outro dos olhos verdes. "Das próximas vezes, se virmos o seu carro por aqui não o bloqueamos, pode ter a certeza minha senhora", disse o terceiro, enquanto me enrolava uma boa dezena de metros de fita amarela (que fez as delícias da Carolina, dos cães e dos gatos da minha mãe e que vai decorar o meu frigorífico, o meu Aspes em segunda mão, que custou 50 euros, mas que continua a servir-me lealmente todos os dias).
Contente, pelo meu azar ao estacionamento, lá fui para casa sonhar alto.
Hoje cá me esperava o lugar à porta.

2 comentários:

Anónimo disse...

Para: a Melhor Amiga da Minha Melhor Amiga,

Ainda não te tinha dito como és uma sortuda por teres escolhido a Mónica como companheira dos teus sábados judiciais... Vale a pena, porque ela é mesmo fiel. E faz uma coisa como ninguém: ouve. É incrível, mas eu acho que ela às vezes não me fala da vida dela só para não interromper os meus monólogos em jeito de discurso. O engraçado é que quando tivemos uma coisa (quase) a vida toda não sabemos dar-lhe o devido valor.
Obrigada Diana Ralha por isso.


PS: trabalhamos quase paredes meias, que tal um cafézinho um dia destes?
Catarina Rocha

Goiaoia disse...

Liindú! (quase que)Dá vontade de chorar.