quinta-feira, março 17, 2005

A lista de Schindler

O elevador de que vos quero falar não é Schindler - é da marca Otis. Esta fatalidade estraga-me o 'gague' do título do post, mas não lhe resisti. Tontinha...
O elevador de que vos quero falar tem uma enorme superfície vidrada, do lado esquerdo de quem entra. À direita, é laranja - a cor favorita da pandilha - e nessa imensidão cromática, existe, centrada, a consola de botões prateados, que vão do menos quatro até ao sexto piso. O sistema de ventilação do elevador de que vos quero falar está marado há não sei quantos meses, faz um zumbido irritante, agudo e claustrofóbico.

Eu sei todas estas coisas sobre o elevador de que vos quero falar, porque, para mim, este espaço tornou-se um local de culto. O elevador de que vos quero falar mudou a minha vida.
Ele não sabe. Todos os dias o apanho - ora a ele, ora o seu vizinho da esquerda, que não zumbe como o elevador de que vos quero falar. Todos os dias partilho silêncios comprometedores com os demais passageiros. Olhamos para o espelho, para o chão, para as mãos, para os pés, eu não sei assobiar, mas, se soubesse, trauteava uma qualquer melodia "pan pipes", ao melhor estilo centro comercial do Belmiro de Azevedo.
Não sei dizer com precisão a data em que o elevador laranja mudou a minha existência. Eu não tenho psicopatias ou fixações com datas - as únicas manias com números são só mesmo as capicuas e os ímpares. Sei, porém, o que tinha vestido. E calçado, naturalmente - umas sandálias beige, lindas, da Fendi, que os passeios de Lisboa arruinaram pouco tempo depois deste episódio Otis.
Foi no Verão passado, depois dos meus anos, provavelmente em Agosto, porque tinha vestido o "cache coeur" salmão de tricot que a Catarina me ofereceu pelos meus 26 anos. É uma peça de vestuário interessante, com um decote até ao umbigo, e eu lembro-me que nessa tarde eu estava a sair bastante mais cedo porque já não aguentava das mamas, carregadas de leite - o lanchinho da minha filha Carolina. Mas a única coisa interessante em mim, nesse dia, era só mesmo o decote que transbordava (e pingava, tenho que vos confessar) com as minhas mamas de vaca leiteira tamanho 38.
Nesse dia não. Minto. Todos os dias. Não havia nada de interessante em mim para além do gigantesco peito firme. Porque eu não queria. Porque eu não me dava ao trabalho. Porque eu achava que não valia a pena. Porque estava gordíssima, porque a única coisa que me interessava era a minha filha Carolina, porque já não me pintava, porque o cabelo enorme e bonito estava sempre preso e escondido num rabo de cavalo. Porque estava fechada para balanço. Porque assim ninguém dava por mim. Porque assim ninguém me faria sofrer. Porque assim ninguém me desconcertaria.
É sempre assim. É sempre quando menos se espera.
Chamei o elevador: abriu as portas, vazio. Carreguei para o zero, rumo à saída. As portas abriram-se, eu disse-lhe 'Olha, o homem que eu andava à procura' (referia-me a um trabalho). Ele não me deixou sair. Chegou-se perto demais, desrespeitando todas as distâncias mínimas de segurança e disse: "Não passa desta". Empurrou-me para um canto do elevador, encostada ao espelho. Ficou tão perto que lhe senti, na respiração, a cerveja que tinha acabado de beber.
Este foi o momento mais erótico da minha vida.
Já fizemos uma boa meia dúzia de viagens de elevadores interessantes - as coincidências existem mesmo, não acreditem em quem vos quiser convencer que não, porque estou sempre a apanhar o sr Schindler sozinho no elevador que zumbe baixinho.
Ao senhor Schindler, que me acordou de uma transe, que me fez sentir bonita outra vez: um grande bem haja!

1 comentário:

Goiaoia disse...

Tu no teu melhor! (literariamente falando, e tudo...)