quarta-feira, março 16, 2005

José Lourenço (ou a minha primeira Barbie)

[O Blogger anda cheio de fome - comeu este post, tive que o reescrever e não ficou tão bom como o original: merda!]

Quem oferece a primeira Barbie a uma menina marca para sempre o seu destino - tenham isto bem presente.
Quem me ofereceu a minha primeira Barbie foi o meu tio, José Lourenço. Eu tinha seis anos, estava desdentada, e as Barbies tinham acabado de chegar a Portugal.
Todas as meninas tinham uma Barbie Tropical - a mais barata e mixuruca delas todas: vinha vestida apenas com um fato de banho e um pareo amarelo de poliester. Todas as meninas é uma forma de expressão. Aprendi as primeiras letras na sala cinco de uma escola pública no Bairro das Estacas, com a professora Gertrudes Maria.
Olho para as fotos daquela altura - as fotos da praxe, em grupo, para mais tarde recordar - e tínhamos todos um aspecto miserável: a Minashri, muito pequenina, de sahri indiano e pintinha encarnada na testa, o Rahim e o Caim com calças de bombazine à boca de sino castanhas e verde floresta, respectivamente, e camisolas de gola alta coçadas adornadas com cotoveleiras de napa, a Alexandra muito mal amanhada, com as suas orelhas de dumbo e olhos azuis semi-cerrados, o André - o menino muito moreno e de pestanas compridas e encaracoladas que me roubou clandestinamente, no ginásio, o meu primeiro beijo e que me enviou, um ano depois, na segunda classe, quando já sabia escrever qualquer coisa, um bilhetinho a pedir-me em namoro -, com uma camisola de lã grossa azul da prússia tricotada pela mãe e umas calças de ganga muito escura também também com joelheiras de napa, os gémeos falsos Carlos e Carla, miseráveis, rotos, com as caritas sujas e já marcadas com cicatrizes da varicela, e eu, no meio da pandilha multi-étnica esfarrapada, ao lado da senhora professora Gertrudes Maria, ou não fosse a mais bonita e a mais inteligente, de camisola turquesa de gola alta e saia de fazenda, com peitilho cor-de-rosa, duas enormes trançinhas com laçinhos de veludo azul escuro, um sorriso lindo desdentado e uma covinha profunda na bochecha direita (ainda cá está, a covinha). Portanto, na turma da senhora professora Gertrudes Maria, três ou quatro meninas tinham a Barbie Tropical. A Alexandra tinha (tinha, também, o Ken e a Skipper Tropicais).
Hoje em dia, há Barbies de todos os feitios: brancas, pretas, asiáticas, loiras, morenas, ruivas, cabelos curtos e compridos, lisos ou encaracolados, com franja ou sem ela. Na altura, havia meia dúzia. De qualquer forma, notem bem, hoje, como há duas décadas atrás, há Barbies de primeira e de segunda categoria. Uma Barbie de primeira tem os braços dobrados a 90 graus e consegue movê-los em dois sentidos - para trás e para a frente e para os lados. As Barbies de luxo têm, geralmente, brincos e anéis. As parentes pobres (nem se deviam chamar Barbies) têm os braços esticados, hirtos, só os movem para trás e para a frente. A Barbie Tropical tinha os braços assim e vinha descalça. Era mesmo pobrezita, mas custava dois contos e quinhentos. Uma dinheirama!
O José Lourenço era, há vinte anos atrás, um professor do ensino técnico em início de carreira, que tinha que se sujeitar às colocações loucas do ministério da Educação. Dava aulas em Ponte de Sôr, vinha a Lisboa só aos fins-de-semana.
Comprámos a minha primeira Barbie - era a Barbie Cintilante, o vestido rosa com saia de tule e corpete de veludo rosa velho brilhava no escuro - na papelaria Erasmus, no cimo da Avenida da Igreja. Há mais de uma década que a Erasmus já não existe, é uma MultiÓpticas, mas para mim há-de ser sempre a Erasmus, o toldo tinha uma tartaruga e tenho uma cicatriz no dedo mindinho da minha mão esquerda que fiz num Domingo, nas grades de alumínio que protegiam a montra da Erasmus dos larápios, que não me faz esquecer a papelaria que vendia de tudo um pouco.
A Barbie cintilante custou seis contos e fez-me a menina mais feliz do mundo. O José Lourenço ganhava pouco mais de trinta contos na altura.
O Zé Ralha subornou-me três ou quatro anos depois, quando finalmente o conheci, com dezenas de Barbies (nunca quis Ken's, isso já deveria querer dizer qualquer coisa...), comprou-me até a Barbie 6º Aniversário, vestida pelo Augustus (custou 12 contos), mas se eu tiver um filho, ele vai-se chamar José Lourenço. Como o avô. Como o único pai que eu tive.

[Saiu hoje o divórcio do Zé - estás livre!]

Sem comentários: