quarta-feira, março 02, 2005

XANAX (ou a história da D. Domingas)

XANAX - lê-se de trás para a frente e da frente para trás, por isso, imediatamente, é uma palavra fetiche, daquelas que eu amo.
O Xanax, na realidade, não é mais do que Alprazolan. Os senhores da Pfizer, gúrus do "branding" farmacêutico, é que o baptizaram com este nome perfeito, simétrico (o genérico da Rathiopharm custa menos de metade, para quem queira saber).
O Xanax é a invenção farmacêutica do milénio - qual Aspirina, qual Prozac, qual Viagra, qual carapuça! X-A-N-A-X -
"Um por dia e nem sabe o bem que lhe fazia" era um slogan de um iogurte com bactérias (mais conhecidos pelo nome pedante de bifidus) que nos põem a cagar regularmente (o momento "all bran" do dia, como dizia outro anúncio idiota), mas eu cá acho que, se não houvesse as restrições absurdas à publicidade a fármacos, podia ser, muito bem, o mote do Xanax.
Não há melhor droga que o sr. Alprazolan (talvez a sra Sertralina, baptizada pela Pfizer de Zolofot - a bomba russa -, mas essa fica para outra história): é legal, comparticipada pelo Estado e, ainda por cima, dedutível no IRS.
Com o Xanax, caminha-se numa alcatifa de algodão doce cor-de-rosa ao som de Pizzicato 5 (gostaste, João?). As coisas más não nos atingem, são repelidas por um escudo invisível, e as emoções boas também são meramente indiferentes. Vive-se num mundo onde a serenidade reina despoticamente.
A D. Domingas era o ser mais bem disposto cá da rua. Distribuía sorrisos e beijinhos repenicados por toda a gente. Até a minha mãe - a pessoa mais avessa a demonstrações públicas de afecto - conseguia ela beijocar.

Besuntava o rosto com uma base muito mais escura do que o seu tom de pele, o que lhe conferia uma tez de aspecto de argamassa; abusava do "blush"; pintava os olhos de um característico "verde velha" e era fã de um baton laranja que teimava em trespassar os contornos dos seus lábios carnudos.
Saía sempre à rua muito aprumadinha, de tailleur, só lavava o cabelo no cabeleireiro, tresandava a laca, mas o seu traço mais marcante e que tantas saudades ainda me traz, era um sorriso aberto constante.
Tinha um casamento de meio século feliz. Ela e o marido, cujo nome não sei, bebiam a bica juntos, diariamente, no café do Sr. Zé Manuel e, embora ele não fosse tão extravagante e bem disposto como ela (gostava de usar pólos "piquet" da Lacoste, lembro-me agora dessa característica), ficava à vista de todos que, as bodas de ouro, não tinham criado aquele azedume amargo de um casamento longo demais.
No café das velhas (como eu carinhosamente apelido a tasca de seis lugares sentados do Sr. Zé Manuel), a D.Domingas beliscava-me as bochechas — "que linda covinha que ela faz na bochechinha, Guidinha", dizia ela para a minha mãe e a minha mãe até lhe perdoava o facto de a chamar de Guida (que ela detesta) e não de Magui — , dava-me beijinhos, xi-corações (usava Chanel nº5) e propagandeava os meus feitos jornalísticos às outras velhotas — "é jornalista do Público, Celestinha (a D. Celeste tem 90 anos, mas todos, inclusive eu, a tratamos por Celestinha: sempre que a encontro digo-lhe que não a quero na rua a namorar até tarde e ela derrete-se toda, fica mais nova 20 anos e até lhe passa, momentaneamente, o raio do reumático). “É aquele jornal muito conhecido”, dizia ela às velhotas, que não faziam a mínima ideia do que é que ela estava a falar (a sua leitura resume-se a revistas de esquemas de crochet), mas que devia ser, pelas suas palavras, uma coisa importante.
O ritual diário da D. Domingas, no café, passava pela biquinha, o bolo mais doce que pudesse haver na vitrine e 100 mg de Xanax. [Nunca fui até aos 100 mg. O meu máximo ficou-se pelos 50 mg e foi uma viagem surpreendentemente agradável].

A D. Domingas morreu subitamente de diabetes. Ninguém sabia que ela sofria da doença, entre nós, assíduos clientes do Sr. Zé Manuel. O marido, de luto ainda recente, explicou-me que ela não era dada a restrições, que preferia viver poucos anos feliz, do que muitos anos de penitência conventual. Daí se alambuzar todos os dias em doces, a sua perdição.
Tenho muitas saudades da D.Domingas, mas nunca consegui chorar a morte dela, desde que descobri o seu sublime lema de vida. Grande mulher, muito sorridente, talvez por causa do Xanax, mas qual é o mal de uma batotazinha?

1 comentário:

BB disse...

Brilhante!