Família - um post que ganhou inesperada vida própria
O meu irmão mais velho fez 33 anos, 33 - um número mágico, e no jantar de família, no chinês que nos alimenta há mais de um quarto de século, éramos cinco - eu, a jovem Ralha, a mama siciliana-beirã, o aniversariante e a minha cunhadinha dos cabelos lindos e encaracolados.
Cinco.
A Carolina brinca com os bébés chineses de nomes próprios bem portugueses e uma bicha heterossexual (aprendi esta expressão hoje no cubículo onde os fumadores ostensivos desta redacção estão confinados a cultivar em estufa o seu cancro no pulmão; aplica-se a indivíduos do sexo masculino efeminados tipo Cláudio Ramos - um esécime não identificado que é bem capaz de ter a esposa e filha de fachada mais feias de Portugal) fica incomodada pela alegria contagiante das crianças que correm entre as mesas do restaurante, e pede silêncio na sala. Eu espanco-o com o meu olhar, gosto de fixar os meus olhos nos olhos de quem não gosto, cronometro silenciosamente, para dentro, quantos segundos levam os meus inimigos até começarem a sentir-se incomodados, violados, geralmente chegam aos dez (Qui Qui, temos que ir jogar ao sério na Bicaense, lembrei-me agora), não mais, e, cobardemente, desviam o olhar para baixo.
A bichinha nem coisa de cinco segundos aguentou, é um rapaz bem bonito. a bicha, menos um, está acompanhado de outros dois com um ar mais másculo e que se envergonharam da cena troglodita que o homem de pele de bébé e cabelos aloirados impecavelmente cortados e tratados fez, ao censurar o riso de três crianças - uma loira e duas chinesinhas (não devia ser crime, impedir uma criança de rir à gargalhada?)
Cinco. Tantos quanto os dedos das mãos que escrevem estas linhas.
Eu tinha-a visto quando entrámos.
Vinha ainda quase cega pela visão de uma pessoa do meu sangue, que é mais que irmão, é quase metade de mim, a chorar num elevador velho de madeira de um prédio de dez andares, abraçado com força ao meu peito, a dizer-me ao ouvido "não há saída", mas apesar de transtornada, pálida, e vestida dos pés à cabeça de preto, tenho memória de elefante, memória à prova de bala, e se bem que nunca me dei ao trabalho de reter o nome dela, olho-lhe para a tromba cínica e sei que mora com os pais e com a irmã mais nova no rés-do-chão em frente à escola onde aprendi a ler e a escrever, a sala cinco, que tinha um quadro preto e amanteigado de ardósia, e no estrado uma velhinha de cabelos cinzentos chumbo que pintava os olhos de sombra verde-velha, a senhora professora Gertrudes Maria.
Eu lembrava-me ainda dela dela, vi-a e accionei o "search files" do meu cérebro assim que abri a porta asquerosa de alumínio do restaurante - e o Hua Sheng já não tem o a tela electrónica, junto à mesa redonda do fundo, com cascatas de água e vegetação luxuriante; agora tem um plasma que passa filmes chineses legendados com bonitos caracteres, e às vezes também põem o Festival da Canção lá do sítio -, bastou um segundo, aquela é a ex-namorada do Elvis, o Elvis que se chamava Nuno, que vestia blusão de cabedal preto e no cabelo empolava, com gel, uma poupa à rei do Rock, o Elvis que era o guitarrista da minha banda, da banda que ensaiava no Ramiro José.
Eu não lhe disse boa noite, na mesa não está o Elvis, mas está um tipo do mesmo género, é estranho como o miúdo que me convidou a cantar a Vaca de Fogo nas escadaria do Liceu, que me chama "Madredeusa", o tipo é mais feio que o Elvis, provavelmente menos talentoso, o Nuno Elvis não era da minha turma, estava na área de Economia e eu tinha escolhido Música, mas o Elvis soube que eu cantava bem e, num intervalo, num corredor do Rainha, convidou-me para ser vocalista de uma banda.
E eu aceitei. O Gonçalo era o mais talentoso de todos nós, tocava Bach, na guitarra clássica. Pediu-me para eu aprender o Bad Wisdom da Suzanne Vega, era um betinho, um tótó, um nerd, nunca mais o vi, mora ao pé do Santo António, quase que aposto que é economista do Banco de Portugal, não sei como é que ele gostava tanto daquela música que ainda hoje, nos dias mais difíceis, trauteio:
Mother, the doctor knows something is wrong
Cause my body has strange information
He's looked in my eyes and knows I'm not a child
But he doesn't dare ask the right question
Mother, my friends are no longer my friends
And the games we once played have no meaning
I've gone serious and shy and they can't figure why
So they've left me to my own daydreaming
Mother, you've taught me the laws are so fine
If I'm good that I will be protected
I've fallen through the crack and there's no getting back
And I'll never trust whoever gets elected
Mother, your eyes have gone suddenly cold
And it wasn't what I was expecting
Once I did think that I'd find comfort there
And instead you've gone hard and suspecting
Mother, I'm cut at the root like a weed
Cause there's no one to hear my small story
Just like a woman who walks in the street
I will pay for my life with my body
What price to pay
For bad wisdom
Too young to know
Too much too soon
Bad wisdom
O teclista, o Carlos, chegou mais tarde (havia um outro guitarrista, mas não me lembro do seu nome; sei que namorava com a Paula, que lia a matéria dos livros nas aulas como a Manuela MouraGuedes lê o noticiário da TVI, a Paula tinha sido minha colega de secretária nas aulas de Ciências Naturais do professor Palma Borges, nos barracões pré-fabricados de madeira da Preparatória Gago Coutinho, mas não me lembro do nome do rapaz, que tinha uns lindos olhos verdes e morava no Bairro de São Miguel), foi humilhado num concerto no Ramiro José pela actual estrela da música pimba, Romana (na altura chamava-se Carla), ela puxou-o para o palco e cantou: "Tu és um amor, tu és um anjo. E melhor que tu eu não arranjo".
No meu primeiro concerto, para angariar dinheiro para um velhote que tinha um cancro pesado e uma reforma leve, ninguém da minha família foi assistir. Neste, que era também para operar uma criançinha, esteve lá o Leonardo, o Manuel Ricardo, o "tontinho" e o Valdemar. A Magui penso que não foi, achava que eu estava grávida porque não me vinha o período há mais de seis meses, quando, na realidade, a menstruação só tinha desaparecido porque eu deixei de comer carne e peixe, aliás, deixei de comer ponto; ficava-me bem dizer que era por convicção, mas não foi, lá em casa passaram-se momentos maus, sem dinheiro pasta de dentes ou os livros da escola.
A moça faz avaliações nutricionais (será a Herbalife?), tinha dentes de mentirosa mas já não tem - eu também tinha dentes encavalitados e já não tenho -, não faço ideia como se chama, mas ela demora-se na conversa, insinua que eu tenho uns quilos a perder, quer saber o que foi feito de mim, sabe o meu nome, vê-se que é vendedora, que é das boas até, mas assim que abri a porta de alumínio do restaurante e vi as cadeiras de pau rosa trabalhadas, alinhadas, com almofadas de veludo encarnado imperial, olhei para ela, alta, espadaúda, na mesa um tipo troglodita com gorro na cabeça, e esta imagem esteve comigo o tempo todo do jantar de aniversário do meu irmão mais velho: tu és aquela que eu apanhei a fazer um broche junto à casa do lixo de um prédio da Estados Unidos da América.
Amanhã continuo o post sobre a família.