domingo, outubro 16, 2005

Notícias de Santa Marta - histórias de 40 minutos a passar vestidinhos cagões a ferro

Este post foi aberto no sábado, no dia mais odiado (ainda bem que não sou a única).
Este sábado excedeu-se, porém. Tinha acabado de escrever o título do post quando o telefone tocou. Cinco minutos depois a minha homónima veio encher esta casa que é demasiado grande como a minha solidão. Foi tudo o que escrevi, o título e até tinha resolvido variar; não o escrevi no sofá laranja, virada para a janela de madeira pequenina, como é hábito, mas em cima da cama feita de lavado.
Tinha estado a passar a ferro antes de me sentar em cima da cama, antes de deitar o Toshiba confortavelmente em cima da minha almofada de sumaúma, antes de o telefone tocar.
Não tinha lençóis para me acalmar; apostei numa dose de vestidos cagões de bébé para me dar clarividência e paz nas desavenças.
Em 40 minutos passei 16 vestidos da minha filha. Por várias vezes disse a mim própria que sou uma abécula - tenho uma avença mensal na empresa da namorada ou que raio ela é do meu tio para me passarem a roupa a ferro (não é namorada não; como se chama a uma luso-brasileira com um nome impensável, casada e mãe de três filhos, que à pala do meu tio banana, e sem qualquer pagamento através de favores sexuais, tem uma casa mobilada e equipada e um negócio montado???).
Estive 40 minutos a tirar vincos da roupa em miniatura da Carolina, isto em cima da mesa de jantar, porque não tenho nem terei tábua, mas ao menos, assim, a mesa sente-se realizada, ganha alguma utilidade, porque servir refeições numa base diária nesta casa invulgar já sabe a mesita que não pode contar.
Estendi uma toalha turca azul cueca dobrada em dois sobre o vidro temperado - é bem bonita a mesa que o meu querido Pedro me ofereceu, a nossa mesa, comprada ao mesmo tempo que a chaise longue que arruinou o nosso casamento (coitada da chaise longue; diz-lhe que ela é linda, que sou eu que estou a exagerar e que ainda a amo como no primeiro dia em que a vi dengosa lá na nossa sala) -, pus água com cheirinho de colónia de bébé no reservatório e girei a roda para me dar o máximo de vapor - gosto de ouvir o barulho dos urros do vapor.
Um a um, fui emagrecendo a pilha de tecido amarrotado; e quando tenho que passar os "smokes" delicados dos vestidos caros da Carolina, ou vincar as pregas dos machos de alguns vestidos da burguesinha de olhos azuis, ponho a língua de fora, denunciando que estou com um trabalho meticuloso em mãos.
Seria eu feliz a passar a ferro doze horas por dia, como a namorada ou sei lá o que é que é aquela gaja que arruina a conta bancária do meu tio?
Para aí ao sétimo vestido, lembro-me de estar no escritório do avó Oliveira e de embrulhar compulsivamente tudo o que estava à mão com papel kraft (hoje em dia chama-se kraft, é ecológico e está na moda, na altura, há vinte e picos anos atrás não sei o que lhe chamavam, só sei que era papel de terceira categoria, que servia para acondicionar frutas e legumes - lá em casa pelo menos).
O avó Oliveira ralhou-me (olha que giro, o avô Ralha nunca me ralhou; que pena...) por eu ter embrulhado a lista telefónica (adorava ligar para o número de telefone das horas: pi, pi - ao segundo sinal serão xxx horas yyy minutos e www segundos), mas eu disse, em minha defesa, que estava a praticar, porque quando fosse grande queria ser embrulhadora de presentes de Natal. E ele, velhinho, com oitenta e muitos anos, suspirou e usou um dos verbos que eu mais gosto - "Ai Diana que me arrelias".
Poderia eu ser feliz a fazer embrulhos numa loja?
Pouco tempo mais tarde, seduziu-me a ideia de ser costureira. Passava os dias com tecidos, linhas, uma máquina de costura em miniatura que o meu avô Ralha tinha mandado vir do catálogo francês da La Redoute e os moldes que fazia em papel vegetal para as toilletes das minhas várias dezenas de Barbies e similares. Nos meus anos, a minha avó adoptiva, a Dona Ilda, vizinha do quinto esquerdo deu-me uma mala completa de costura; foi seguramente das prendas que mais marcaram a minha infância: anos e anos de diversão em que não chateei ninguém, em que não parti pernas a jogar a apanhada, apenas costurei. Riscava o molde, cortava, chuleava e cozia. Já na altura era viciada em compras e roupa e queimei vários anos de mesada em modelos de alta costura da Barbie (há um belíssimo que hei-de encontrar; custou-me quatro contos há coisa de 18 anos; uma saia pelissada dourada e um casaco Channel em acobreado). Mas gostava também de fazer as minhas roupas (a salientar, das minhas obras mais bem conseguidas, um top em tricot, feito com lã mohair branca).
Então, poderia eu ser feliz a fazer bainhas de calças de gosto duvidoso, com mau corte e tecidos mixurucas, durante 12 horas por dia?
Quando já era crescidinha e namorava com o "tontinho" (estive quase quatro anos da minha adolescência ao lado de um ser humano a quem chamava de "tontinho"; ele era bom rapaz, até deixava que o meu pai o beijasse - o Zé Ralha gosta de beijar os meus namorados; o Pedro sempre se conseguiu esquivar, mas lembro-me de uma situação embaraçosa em que o Zé Ralha foi insistindo à beira da piscina naquele cumprimento muito caloroso e meio abichanado que sempre limitou ao mínimo as minhas visitas lá para os lados dos Capuchos), servia copos a homens de aspecto decente, alguns com polos da Burberrys e porta-chaves com o emblema da Mercedes e da BMW, que atravessavam a ponte 25 de Abril para ver travestis de quinta categoria a fazer playbacks miseráveis, num bar de aspecto duvidoso que, outrora, tinha sido do Joel Branco. Servia copos e memorizava como os homens de aspecto decente engatavam os homens vestidos de mulher, com a cara cheia de betume baço e espesso, que apenas realçava a barba rija que prespontava debaixo de tanta maquilhagem. Às vezes, a noite ia longa e o barmen, heterossexual por sinal, com uma âncora de marinheiro tatuada no braço direito, confidenciava-me que as melhores mamadas da sua vida tinham sido feitas por paneleiros.
Podia eu ser feliz a servir copos a homens de aspecto decente?
As reflexões provocadas pelo acto de passar a ferro são sempre intensas e perturbadoras. Eu podia ser feliz como na sexta-feira, ao lusco fusco, com toda a cidade a ver de binóculos aquilo que eu não vos vou contar.

2 comentários:

fernando lucas disse...

como sempre o teu material literário é 5 estrelas.
o meu único momento de cóóóltura do dia é quando leio os teus post.

Anónimo disse...

Acho mal, q o dia em q invariavelmente jantas connosco, seja o dia mais odiado...