Telefone maluco
Eram 19h45. A janela do messenger abriu-se e fez-se Dia. «Porra, não consigo acender o forno, tens fósforos?» Não tinha, mas corri ao café mais próximo para socorrer a donzela. Acendi o forno à primeira. «Ops, estava a rodar o botão errado. É melhor abrir as janelas que a casa cheira a gás.» Ok, vamos jantar.
Pitéu excelente, bacalhau com espinafres e a tal garrafa colheita de 2000. À segunda garrafa, ofereço-me para sacar a rolha. «Deixa estar, eu só não sei acender fornos». A rolha partiu-se. Acreditas na lei de Murphy?
A Magui ensinou-me a fazer béchamel pelo telemóvel: eu na cozinha centenária, semi-bordel, pintado de encarnado sangue, ela no seu ultra-moderno laboratório culinário, três ou quatro quilómetros a separar mãe e filha, loira e morena, e aqui, por debaixo da Fontes Pereira de Melo, o Toshiba deitadinho na bancada fria de mármore, a ponte entre o lava-loiças e o forno, e entre telefonemas - "Então ponho o leite antes da farinha? Tenho que tirar os grumos do molho antes ou depois de ir ao lume?" -, e nisto, um voyeur espreitava a minha fadisse do lar por uma webcam.
E a Magui foi o meu primeiro 112: "Ai, caralho, mãmã. O forno não liga. O bacalhau cheira tão bem e agora vou ter que mandar vir uma pizza. Ai foda-se, foda-se, mamã, claro que já vi se tenho gás na botija! Faço o quê? Uma vela? Eu acho que tenho uma vela...".
Angustiada pelo facto de o primeiro jantar cem por cento da minha autoria vir a ser condenado, sumariamente, à pena de fiasco, a Magui disponibilizou de imediato um mini-forno que está em casa dela a servir de suplente. Mas o Telescópio salvou a noite sem ser preciso ir à EUA buscar um forno eléctrico (vou trazê-lo, de qualquer forma, não confio mais neste forno nojento), eu telefonei logo à Magui e admiti ser uma sofrível "self made woman". "Analfabeta!", sentenciou ela, sem mesericórdia, da mesma forma que sempre que alguém lhe diz: "Ai dona Margarida, a sua filha é mesmo uma garota bonita", ela lança: "Com esta idade são todas bonitas". Eu já lhe disse que fico fodida, que conheço muitas gajas da minha idade que são umas aventesmas, mas ela nunca concorda com as velhas.
Eu estou a ser pressionada para passar a palavra, que já vai longo o meu discurso, apenas gostaria de vos dizer que segundos antes do Telescópio chegar e ressuscitar o forno, a pequena Ralha tinha despejado no chão meio quilo de sal ao qual juntou, com cuidado e requinte, cem gramas de pimenta branca.
Diz isto alguém que se define como fada do lar e do blog. Get real.
Um homem chega a casa - ok, a tua casa - e tu recebe-lo à porta com um pano da loiça na cabeça e um avental vermelho cheio de restos de espinafre? Parecias uma bandeira portuguesa...
Tudo bem, no fundo também vibro quando joga a Selecção Nacional. Sinto-me bem neste sofá, com vista para um armário de livros. Onde senão aqui iria eu encontrar raridades tão dispersas como: «A Lei do Amor»; «Amor», «Depois do amor» e três volumes encadernados da revista «Linhas & Pontos»? És um terror, Dia.
Também gosto da música de fundo. E gosto de ver-te com um pano de loiça na cabeça, dá-te um ar afro. E das meias do Benfica. Queres um bafo do cigarro? Vou-te salvar.
Eu não acredito que tu estiveste este tempo todo e só escreveste isto!
Na aparelhagem velhota estão os Sétima Legião, esses fachos, um amor musical com décadas: "Gabriel!", grita o Rui Pregal da Cunha, que hoje é médico, o senhor cantava muito mal, melhor salvar vidas, mas o acórdeão do Gabriel perseguiu-me vários anos, cheguei a pensar comprar a casa onde ele cresceu, na Gama Barros; a mãe do Gabriel Gomes tinha um Fiat 600 azul escuro e fazia bolinhos para todos os cafés das imediações da Avenida de Roma. Eu adorava as madalenas da mãe do Gabriel Gomes, apesar de nunca ter sabido o nome daquela velhota simpática que chegava às tascas com tabuleiros cheirosos de bolinhos acabados de sair do forno.
Fui ver a casa, três assoalhadas, 25 mil contos. O preço era bom, demorei-me no quarto do senhor Gabriel, ouvi o som do seu acórdeão, mas quem me veio mostrar a casa não foi o Gabriel, foi um amigo íntimo, com pinta, mas se tivesse sido o Gabriel eu teria comprado aquela casa horrível, com uma casa de banho rosa com uma barra de laçinhos e traseiras com vista para um quintal cheio de barracões de zinco. Ainda tenho o telemóvel do Gabriel no meu telemóvel; deu-mo a Dona Paquita, a velhinha espanhola deliciosa com quem bebo café quase todos os dias, no café das velhas.
Mas o Telescópio chegou cá a casa e não disse nada disso dos panos da loiça. Disse que eu estava linda e que parecia uma virgem Maria. Ri-me alto. Pela virgem, não pelo linda.
Gabriel é o nome do arcanjo que disse à virgem Maria que estava grávida do filho de Deus. História que, aliás, está mal contada. Qual é a gaja que diz ao marido que está grávida do Espírito Santo e o tipo acredita? Já viste a probabilidade de José ser o corno mais citado dos dois últimos milénios? Incrível.
Quanto à tua virgindade, nunca pensei.
Vocês lembram-se de jogar a isto? Chamava-se, pelo menos na Avenida de Roma, o "telefone maluco". Um grupo de putos, papel e caneta eram os ingredientes. O primeiro arrancava, escrevia uma linha, dobrava o papel escondendo o que acabara de cravar no papel com uma esferográfica azul da Bic (eu sempre fui diferente; morceguinha desde pequenina: na primária, no colégio, obrigavam-nos a escrever a azul, mas eu sempre gostei mais do preto. E a tinta permanente, para desenhar letras tão lindas como as que o meu avô Oliveira imprimia nas suas folhas), deixava a descoberto as últimas palavras, passando a palavra ao seguinte. Qual era a moral do jogo? No fim, desdobrava-se o leque que resultara da ronda literária pelos jogadores e lia-se alto o resultado hilariante.
Chamem-nos burgueses, chamem o que entenderem, mas tínhamos 14 anos, acabadinhos de entrar no armário, e em vez de fumarmos ganzas, e descobrirmos a nossa sexualidade nas traseiras do Rainha, passávamos horas a jogar ao "telefone maluco" numa mesa de 12 pessoas do Luanda.
Também jogava, por esses anos. Foi na época em que uma festa de anos era tudo. Jogávamos spectrum a tarde toda, às vezes também ao telefone maluko.
Quando começavam a desaparecer os phrimeiros adultos, o jogo do quarto escuro era passaporte para curtir com a prima do aniversariante. Pais, tios e padrinhos na sala, os putos (todos até aos 12) a brincar, longe de preferência.
Volto ao anjo. Perdi a virgindade com uma miúda chamada Gabriela, numa visita de estudo de dois dias a Conímbriga. A Gabi hoje está casada, tem dois filhos e é muito gorda. Naquela altura, era um anjo.
Muitos anos depois, empantanas-te-me a realidade.
Diz-me qual é a primeira memória que tens de mim?
Jantar de anos do teu irmão, tu chegaste atrasada e parecias um furacão quando entraste. Muitos braços, muitos risos, muito gira.
E tu?
O mano faz anos hoje. 33. Já viste que estamos há uma hora e 40 minutos a escrever este post?
Eu tenho memória de elefante, lembro-me de coisas que não lembram ao menino Jesus. Até sei o que tinha vestido e tudo. 20 anitos, não mais, um jantar do número zero da Focus, - e, caralho, o jantar era na rua de Santa Marta, duzentos metros abaixo do local onde nós estamos -, estava ao lado do meu "marido", e tu por lá andavas, no outro lado da mesa, palhaço de serviço.
Telescópio? Se não chamamos a este post a "quatro mãos", o que é que chamamos?
O jogo.
Nessa noite pedi a actual mulher do teu irmão em casamento e subi a um banco para fazer um brinde. Brutal, tinha 22 anos. Mas siga, é só isso que tens para dizer? Eu a armar-me em D. Juan, a mandar aquelas provocações, subtis enough, e tu sem contestares à altura? Strange.
É na minha segunda recordação que surjes com força. Para sempre. Nessa primeira, eu estava demasiado deslumbrante para te dar atenção, sei tão bem o que vestia... Estava bem mais magra, um fato cor de rato, com corpete com renda de bilros. O cabelo estava apanhado com uma "banana", alisado impecavelmente com brilhantina.
Na segunda, estávamos no BBC, a reboque de um broche amigo que estávamos a fazer ao Manuel Jesus, no jantar dos Portuguese Marketing Awards. Recordas-te? Na nossa mesa, um canastrão que era dono das clínicas de estética Persona.... Tu e a Cate tinham acabado de chegar da Polónia, também sei o que tinha vestido nessa noite, saia preta com umas flores azuis, top branco que me descobria as costas, e, lembro-me, estava muito cansada, o Código do Trabalho fazia-me olheiras. Tu fizeste a Cate chorar, acabámos a noite na rua da Rosa, num apartamento da idade da minha Martinha, com uma mala de cartão na sala a pegar fogo às primeiras horas da manhã.
As coisas foram um pouco onfire desde o início...
Há muitas histórias que não cabe aqui contar. Uns brincos esquecidos, um telefonema com anestesia, a sedução constante, o ritual de quarta-feira e um segredo para sempre.
Vamos sair daqui?
Um segredo o caralho! Apressaste-te a contar o segredo a um homónimo teu...
Podes cá dormir à vontade. Eu não tenho a depilação feita. Dormes como irmão. Aliás, este sofá faz cama.
És má.
Eu fiz caipirinhas e pipocas. Sou ou não sou uma fada do lar?
O que é me vale dizer que és?
Nada, mesmo nada. Eu estou sempre a dar-te foras.
Sim, mas eu já me vinguei uma vez, naquela de manter o ar de tough. Com que então não fizeste a depilação... É muito mais pós-moderno do que «dói-me a cabeça».
É melhor não entrares por aí, porque eu tenho em minha mão, informações que destruíriam a tua reputação. Queres que eu recorde a temática abordada num livro que me ofereceste no meu 25º aniversário, quando já estava barriguda, com a Carolina lá dentro a viver?
Truque baixo. Mas eu esquivo-me, porque mesmo que ponhas essa questão, existe ad eternum a questão de teres ficado barriguda.
Diz-me, Telescópio, algum dia julgaste que eu escrevesse assim?
Sim, já calculava. O desiquilíbrio mental não podia senão traduzir-se nisto, numa irónica câmara sobre o mundo dos afectos.
Eu preferia que o post se chamasse telefone maluco. Concordas? Não tens que concordar... O blogue é meu...
O q é q te faz pensar q vamos publicar isto?
Temos que. Eu tenho pelo menos uma centena de visitantes por dia. Tenho que os alimentar... Ficarão com azia, decerto
E eu tenho quinje, dos quais metade são gajas com quem eu já me enrolei. Topas? I rest my case.
I have no more questions, your honour. Login and publish?
Não.
Sim.
Sim.
Published by Dia and Telescópio
7 comentários:
a azia ainda aqui não chegou. gostei deste telefone maluco, nos subúrbios também existia disso.
thê
Já percebi. Perdi uma grande noite... Quatro mãos como as vossas, soltas num teclado só podia dar nisto.
Muito bom!
depois de varias horas em leitura, (sim porque sou gajo mais da 9ª arte). ainda vão chamar ao telefone maluco? tadito do telefone...
Eheheh! Que espectáculo! Ficou lindo. Também jogava isso e hoje em dia o meu grupinho tem a alcunha de "Telefone estragado", só dizemos parvoíces e ninguém entende...
Muito bom este post. Parabéns aos dois... :)
A perfeiçao pode ser assim! Lindo de morrer e esperar por mais!
Mary
entao? tá de folgas?
Lei de Murphy!? Então nao...
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