Santa Marta
Quando iamos em procissão àquele restaurante, descíamos a rua de São Sebastião da Pedreira, eu em bicos dos pés por causa dos stilletos bicudos que se prendiam na calçada esventrada pelos automóveis que a ocupam e nas juntas do macadame da estrada, remendado aqui e acolá com alcatrão, iamos a esse restaurante quando era uma honrada jornalista semi-freak de Economia, que dizia caralhadas apenas na redacção, mas também já tinha fama de dormir com alguns assessores do Governo, iamos lá quando nem sonhava poder vir a ser emprateleirada -
nunca na vida pensei que me empacotassem o computador, as pastas, as agendas, a caneca onde coloco as canetas, os piaçabas que ganhei no Festival do Cano, não achei que fosse possível fazerem-me isso quando estivesse a completar o oitavo mês de uma gravidez de risco, juro que pensei que isso nunca pudesse vir a acontecer, tive que vir à redacção ver com os meus próprios olhos, abri o guarda-roupa e escolhi um vestido de veludo verde esmeralda, 25 quilos a mais, uma barriga descida, contracções fininhas às quais já me tinha habitaudo desde o quinto mês de gestação, cheguei cá e a Isabel tinha arrumado tudo com amor, em três ou quatro caixotes da empresa "Transportes Urbanos", tinha arrumado tudo porque a minha secretária ia ser ocupada por outra pessoa, uma pessoa que tinha um telefone fixo portátil; eu juro que não acreditei, franzi o sobrolho, semi-cerrei os olhos como que num esforço míope de tentar focar a realidade desfocada pelas diopetrias e permaneci de boca aberta, não consegui fechar a boca de espanto, o meu telemóvel tinha tocado um dia antes, ligaram-me de um outro jornal a dizer-me que tinha sido expulsa da Economia, mas eu não acreditei, tive que vestir o vestido bonito da Benetton, calçar umas botas castanhas de cunha de sete centímetros, sei que entrançei o cabelo e usei uma sombra nos olhos irisada, verde pavão; não, não era possível fazerem-me isso, porque eu sempre fui esforçada e dedicada, desde os 18 anos, a esta entidade patronal -,
mas quando ainda nem sonhava ser mãe, quando os animais ainda falavam e ocupavam cargos de chefia, iamos àquele restaurante quase todas as semanas e eu não sonhava que iria viver nesse prédio, quatro andares acima.
E quando passava por baixo do túnel escuro do Metro e entrava na Rua de Santa Marta, pensava sempre, quem será esta Santa que dá abrigo à divisão de Trânsito da PSP?. E sempre que estava a deliciar o meu paladar com o bacalhau à braz ou com as lulas grelhadas com bacon - nunca experimentei outro petisco no meu vizinho restaurante -, resmungava para dentro: "Quando chegares ao jornal googaliza a Santa Marta".
Nunca googalizei, entre telefonemas e conversas no messenger, varria-se-me o meu fervor pela santinha (e sempre que vou ao Robalo ponho uma flor na Sant'ana que a avó Zá mandou eregir, porque sei que a mãe de Maria está sempre a olhar por mim, porque tu tens uma cunha com a Sant'ana; talvez por isso eu não tenha perdido a Carolina, quero acreditar que foi por isso, que vocês olham por mim numa nuvem bonita qualquer).
Achei a minha casa, a velhota Martinha, no início do Verão do ano passado, no site da Remax. Andava já cansada de ver espeluncas, com divisões bafientas sem janelas, pelas quais pediam os valores mais exorbitantes. Vi casas na Graça, vi em Santa Catarina, Bairro Alto, Ajuda, sei lá quantas vi. A que mais gostei era no Beato, dois pisos, vista para o Tejo, tectos trabalhados e lembro-me que a recusei porque era um quarto andar sem elevador: "Eu tenho um bébe, as compras e tal". O facto de custar 30 mil contos também ajudou, sejamos claros.
A Martinha estava habitável, mas um bocadinho escavacada, duas infiltrações nas paredes da actual sala de jantar e quarto da Carolina. Uma casa de banho horrível, uma alcatifa inenarrável. Mas eu gostei desta menina centenária, entrei no hall e disse ao mediador, o senhor José Manuel, "Acho que é esta". E disse isto apesar de ser um quarto andar sem elevador e de as escadas parecerem ter sido visitadas por um terramato ou por uma guerra civil. Não pensei no estacionamento, nem no trânsito, a Marta enfeitiçou-me logo e eu sei que ninguém acreditou que ela pudesse ficar bonita - lembro-me do olhar de terror da Mónica e do Mário quando a viram pela primeira vez.
E assim que a minha mãe reservou a Martinha com um cheque de 500 euros, voltei a pensar: "Agora é que tenho que saber quem é o raio da santa!"
Estávamos em Julho de 2004. Ontem, finalmente, googalizei a senhora. Googalizei porque passei na ex-papelaria Expresso, que agora se chama Portal da Amestista e vende artigos esotéricos. Não me é fácil ver a mutação transgénica da papelaria que marca todo o meu imaginário infantil - Dona Fátina, preciso de um lápis HB, pincel nº 5 da Pelikan, uma caixa de guaches, um estojo de canetas de feltro da Molin, um transferirdor, e um bloco de papel cavalinho. Mamã, posso levar uns lápis de cor aguarela da Caran d'Ache também?
Agora a Dona Fátima dá cursos de Reiki, lê as cartas, solta os búzios, vende velas e incensos, imagens de santos, mézinhas, cristais e o diabo a sete. Mas a recém-convertida mística também não sabia quem era a Santa Marta, afiançou-me que era muito bom prenúncio e ainda me pediu o número da porta, para ver nos seus conhecimentos de numeralogia se era auspiciosa a minha morada. E era. Sugeriu-me, depois, uma série de consultas em sites esotéricos da Internet.
Mas o meu Deus é o Google. E em menos de dois segundos sabia, através de um site brasileiro que se dedica às biografias dos Santos, quem é a protectora do meu Lar (a águia velhinha pregada na porta, da Companhia de seguros Mundial, também protege a Martinha de dia e de noite):
"Marta, irmã de São Lazarus e Maria de Bethany é a padroeira da cozinheiras e donas de casa. Ela era a anfitriã e a dona da casa por ser a irmã mais velha. Quando Jesus se hospedava em sua casa, em Bethany, Marta era solícita e cuidava do seu bem estar. Em uma visita, recorda Lucas no seu evangelho, Marta reclamou que Maria ficava sentada ouvindo Jesus, deixando-a com todo o trabalho. Jesus respondeu em tom de brincadeira " foi Maria que escolheu a melhor parte".
Assim Marta tornou-se o protótipo da activista Cristã e Maria o símbolo da vida contemplativa. Marta foi a única que foi procurar Jesus, quando Lázaro morreu. A tradição diz que, para aqueles que diziam que já era tarde e que Lázaro já estava morto, Marta retrucou energicamente "que não tinha a menor importância e que Jesus iria cura-lo". E, de facto, quando Jesus chegou, Lázaro já estava enterrado e seu corpo já apresentava sinais de putrefação, mas Marta não se abalou, e com enorme fé, pediu a Jesus para curá-lo e este foi o maior dos milagres de Jesus.
Mais ainda: Ela disse a Jesus que acreditava que o Senhor Pai daria a ele o que pedisse. Em resposta àquela fé inabalável, ela foi a primeira a ouvir de Jesus a sua mais profunda revelação. Quando Marta disse que ela acreditava que seu irmão iria se levantar de novo, Jesus disse a Marta: "Eu sou a ressurreição e a vida, aquele que crê em mim viverá mesmo que ele morra, e todos que vivem e crêem em mim, nunca morrerão."
"Voce acredita nisto ?" perguntou Jesus a Marta, e ela respondeu: "Sim meu Senhor, eu acredito que Voce é o Messias e o Filho de Deus."
Santa Marta é a padroeira das donas de casa e protectora das falsas preocupações e superstições. Isto no Brasil, significaria proteção contra mau olhado, inveja, pragas, bruxarias, descarrego e outras superstições, para as quais ela oferece um escudo impenetrável.
A dona Fátima estava certa na sua premonição: não podia estar mais bem protegida. E que linda Santa me calhou na rifa.
4 comentários:
a da minha casa protege-me da azia e dores de parto :)
já não passo sem cá vir... mais uma fã incondicional...
nas juntas do macadame da estrada lembrei-me do palma, e sempre que me lembro dele, gosto
És uma maluca, Musa!
Acho que pode ser mesmo verdade aquela cena de 'fecha-se uma porta, abre-se uma janela', e aqui... literalmente!
Gostei.
Do post e da historia sobre sta. Marta.
obrigado em especial pela historia. eu tambem estou a 5 anos para saber mais sobre sta. marta mas nunca me lembro disso quando estou no computador.
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