segunda-feira, outubro 10, 2005

A tua rua também tem uma louca

A tua rua também tem uma louca - no quarto andar esquerdo, se não me falha a miserável percepção espacial com que nasci.
Estou sentada no Idea, não sei há quantos segundos, muitos seguradamente, não consigo sair daqui, carro em segunda fila, embicado, rabo para fora, às vezes os autocarros passam de razia e eu fico impávida e serena a ver as tangentes pelo retrovisor, não tenho cigarros, tenho duas folhas, um lápis, uma Grande Reportagem , e um gloss com sabor a morango, que multiplica o volume dos meus lábios já de si carnudos, estou congelada, tremem-me as pernas, o Nyman toca em volume 45 (sempre ímpar, o volume), as janelas do carro estão fechadas, mas, mesmo assim, comecei a ouvi-la.
Tem uma manta com riscas coloridas à janela - lista preta, azul céu, azul escuro, verde fluorescente, verde escuro, depois vêem os laranjas, os encarnados e os rosados, mas é um quarto andar, eu estou sem óculos e não consigo diferenciar as cores.
- Quem me dera que o meu filho deixasse de fumar. Mas assim não, assim não dá -, grita ela pela janela quase rouca. Às vezes debruça-se para a frente, para atirar palavras como quem atira escarretas (tão gira esta palavra), fico a pensar se terá coragem para se atirar (os vizinhos agradeceriam, de certeza. Faz uma barulheira infernal a senhora, possessa).
Ela grita "não, assim não pode ser" e eu acho que tem toda a razão e tenho pena de estar apática e não ter coragem de fazer um disparate semelhante à tua porta, depois de te teres ido embora com a belíssima asneira: "Azar do caralho".
Mas ainda não é o meu timing. Não é a minha vez. Estou em fila de espera para passar a fronteira. Desta vez foi ela, 50 e poucos anos, cabelo negro apanhado num tornuxo com uma rede, calças de ganga e tee-shirt pistáchio à janela junto à manta listada.
O Carmona ganhou, voltei a ser respeitada no pasquim que me emprateleirou há dois anos e picos por ter tido uma filha, a louca parece que sossegou, finalmente, o meu coração ainda bate a mil, vou ficar quietinha mais uns segundos, tantos quanto a faixa quinze deste CD, e aí vou conseguir rodar a chave na ignição e rumar para a redacção.

Não esperem grandes prosas neste blog. Perdi o leitor. O mais importante.

Post escrito a lápis, algures na cidade, numa rua que nem é assim tão feiosa, no verso de uma fotocópia de uma entrevista ao Sá Fernandes.

Estava a escrever isto quando tu apareceste à janela do carro, quase me mataste de susto, deste-me um cigarro e foste embora. A louca voltou à janela: "Isto não é do Carmona Rodrigues, é meu!", grita a senhora. É a minha deixa. Vou sair daqui.

Amanhã logo se vê.

2 comentários:

Dia disse...

A visita 11333 foi minha!!! Lindo número, catrino!

Anónimo disse...

LINDO!! lindissimo... podia dizer uqe ia para o meu "TOP 5" mas como sao tantos todos tao bons.... caberá no "TOP 50"?
beijinhoooos maninha