Mentira
"Mentiroso!", apeteceu-me dizer logo pela manhã, mas era em vão, um consumo de energia escusado, não ouvias de qualquer forma, estás fora do meu alcance vocal - quando eu era mesmo muito pequena, perdia horas a olhar para a mira técnica da RTP 1 e ficava naquilo, horas a fio, à espera de uma qualquer locutora de continuidade ou de um interlúdio musical, na sala dos avós - um quinto esquerdo de um prédio da Estados Unidos da América, com sofás alaranjados de napa, que eram frios no Inverno e quentes no Verão -, e recordo com muita nitidez que a minha ambição para quando para quando fosse crescida, algures depois do ano 2000, era ser tenista (?) e queria também entrar no Guinness com o grito mais alto da história da humanidade.
Cinco anos, desdentada, uma caganita, uma amostrinha de gente e uma formiguita já cheia de catarro, a revelar um feitiozinho de merda. Gritar mais alto? Onde é que eu fui desencantar esta? Tenho bons pulmões, sei gritar bem alto, melhor: sei gritar sussurando, mas os meus dotes vocais contigo não servem para nada nada: o nosso negócio é exclusivamente literário (no outro dia, o JPH, mestre blogueiro, perguntava quem era o "chulo literário" e eu resumi secamente a questão: "é um gajo que só gosta de mim pelo que eu escrevo"; na altura pareceu-me injusto, agora acho que o meu poder de síntese esteve no seu melhor).
Mentiroso! Escrevo, então, se não me consegues ouvir daí.
Descubro hoje, por acaso, que deves ter aberto actividade nas Finanças como chulo literário há já algum tempo, que não sou a única a ter-te como objecto de idolatria literária, que escrevemos parecido e tudo, que gastamos folhas amareladas dos mesmos cadernos caríssimos de capa dura preta e elásticozinho a prender o material literário que nos inspiras e os nossos cês cedilhados foram separados à nascença. Se passas recibos, eu quero os meus, sabes a morada, conheces, inclusive, as caixas de correio, já lá estiveste encostado numa sexta-feira feliz, manda os recibos, pode ser que dê para descontar no IRS.
Não sei que raiva é esta, não me parecem ciúmes, estou imune. Dói-me as entranhas, dói-me mesmo muito, falta-me o ar, e se calhar foi mesmo por amor que tu me largaste, para eu não ser mais uma puta literária à espera da sua dose para escrever mais uns posts em blogues que começam a ter audiências assustadoras (221 pageloads hoje; parece que quanto mais negro e sombrio este terreno fica, mais olhos por aqui se fixam, e não há nada como um post de gaja, desesperado, daqueles que, certamente, muito boa gente - incluindo tu próprio - leu mais do que duas vezes, para eu ver que não estou assim tão sozinha: o primeiro foi o Vring, sempre em inglês - I will be 31 in two weeks from now [I know] and i'm alone and broken..... but what da fck [if I ever get a nervous meltdown like last nights, can I call you, Andy?] you can call me, sure don´t even ask], e tu próprio a dizeeres coisas parecidas, em português, e eu a querer gritar "mentiroso!".
E à tarde, no Atrium Saldanha, depois de o Carmona pedir maioria absoluta em Lisboa, café ao som do Schubert, uma pianista bonita a tocar sublimemente bem, eu sentadinha no banco de mármore frio a vê-la passar as folhas dos cadernos cheios de pautas e colcheias. Fiquei lá mais tempo do que podia, derramei mais uns decilitros de água salgada com a sensação desagradável de ter o cú enregelado, e um tipo sinistro ao meu lado, muito míope, a ler um livro chamado: "você sabe que precisa de óculos quando..." e a pensar, ao som do piano de cauda:"ele ainda está online, põe-te a andar ainda o apanhas online", mas isso não me preocupa mais.
Provavelmente, amanhã a primeira coisa que faço é ligar na mesma o computador, aceder ao statcounter e verificar se já vieste cá ler a produção de mais uma madrugada, mas já não me preocupa mais. Hoje, porque tenho um dedo que adivinha, gravei a nossa conversa como "fim".
Não é ciúme não. Estou a sentir-me vulgar.
5 comentários:
tudo muito giro... mas agora explica para miúdos.
quem é esse?
Não posso, é segredo. É o que gosta de mim pelo que eu escrevo. Ponto final.
Grande texto!!! Também já tive vontade de gritar MENTIROSO ao mundo... Mas enfim são as nossas histórias do coração que ficarão lá...
Tens toda a razão numa coisa, quando falamos de sentimentos no blog todos querem ler mas quando são coisas banais já ninguém se preocupa com isso... O ser humano é assim, curioso dos sentimentos alheios.
E aqui estou eu a comentar este texto que fala dos teus sentimentos, sou mais uma a ler e sou sincera... Lemos os blogs uns dos outros e talvez para tentar encontrar sentimentos que sentimos e pessoas que os sentiram. Palavras melhores para descrever o que passámos...
Eu gosto de ti pelo que escreves.
Ford motor.
Ford Motor, benvindo ao reino dos comments. Estou sempre muito atenta às tuas visitas - geralmente as primeiras do dia - e penso sempre que és uma gaja. Será?
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