terça-feira, outubro 18, 2005

Paz

Quando tinhas menos de 50 centímetros, sossegavas quando eu cantava It's a good day for singin' a song: punha o CD da Peggy Lee às tantas da madrugada, pegava em ti ainda com medo de te partir, dava dois passos e entrava na sala de sete metros quadrados, pegava nas tuas mãos pequeninas com dedos enormes como os meus - agarrava-me a essa ideia, que as tuas mãos eram iguais às minhas, que pelo menos tinhas alguma coisa dos Ralhas -, tu fechavas a mão com muita força e ficávamos ali horas, junto do sofá azul, com almofadas laranja, iluminadas pelas resistências do aquecedor que funcionava 24 horas por dia - vieste num Inverno rigoroso e a casa de bonecas onde morámos, o 10 andar sobre a EUA, era muito frio e muito quente -, dançava e cantava para ti e, enquanto te embalava com todo o amor que podia dar a alguém - sei disto: nunca vou amar um filho como te amo a ti, Carolina -, sentia-me em paz, apesar de tudo estar a ruir ao meu redor.
Nunca te deixei chorar e, como nunca pegaste na xuxa, era o meu peito que te calava (toda a gente ralhou comigo pelo uso sistemático deste calmante; como vai ser no futuro, quando ela estiver triste? Quando tiver uma dor de barriga? Quando esfolar um joelho? Enfias-lhe uma bola de berlim pela goela abaixo?, diziam). Ainda tenho dificuldade em te ouvir a chorar, mesmo quando é birra de um mau feitio imensurável característico dos Ralhas - não são só as mãos que herdaste de mim -, mas quando a minha mama não funcionava, e era tarde, muito tarde, deitava-te de barriga para baixo no meu tronco, tu moldavas-te ao meu regaço e acalmavas num instante. Ficávamos horas assim, eu era o teu sofá e mais uma vez, assim como que por magia, estava em paz.
Hoje, depois de milhares de tropelias - a maquilhagem arruinada, uma festa de cotonettes no armário da casa de banho, depois de regares as roseiras com o leite do biberon e arruinares o Antúrio porque não te deixei rasgares uma a uma as folhas do meu livro de cabeçeira - pediste-me colo, arrumaste-te, enorme, no meu regaço e dormiste, de boca aberta, num sono profundo, pouco mais de um quarto de hora. E, apesar de tudo ter ruído, senti-me em paz.

3 comentários:

SGTZ disse...

É preciso garra, força e muito amor. Há pequenas coisas que nos confortam nos momentos em que tudo vem a baixo. Nesse caso a "coisa" não é pequena e a guerra que vocês travam enche de orgulho que conhece a maezinha...

Telescópio disse...

Uma vez, uma única vez, a pequena Ralha adormeceu no meu colo, esgotada pelo cansaço das tropelias em casa da cate. Babou-me todo o ombro esquerdo, fiquei com uma cãimbra no braço, mas não me mexi.
Acho que, desde esse dia, eu a Carolina nos tornámos companheiros inseparáveis.

Anónimo disse...

12400... não é ímpar mas é redondinho... vim ver se havia mais boa prosa para animar o meu dia, que tal como as nuvens, está meio cinzento.