Post a três tempos* [Introdução - As borboletas]
* ou a forma mais matreira que encontrei para aumentar automaticamente a reles produtividade deste blogue enamorado, de 0,33 posts por dia, para 0,50; ou tenho muita coisa na minha cabeça e se não dividir para reinar, ai Jesus que não sei se expludo e se vocês aguentam com os estilhaços de três posts encavalitados num cérebro dormente; ou vocês estão sempre a queixar-se do tamanho dos "lençóis" de letras cinzentas king size, que entortam os olhos sob o fundo preto, e que não há pachorra para as pastilhadas que nunca mais acabam até porque pontos finais é coisa que não abunda por estas bandas (só conheço um que me diz isto, e diz-me isto apesar de dizer, também, entre um whiskey ou outro, que eu podia ser uma grande jornalista se estivesse para aí virada, é só um que me diz isto, mas vale por cem, este vale por cem, ou por mil, tantas quanto as visitas diárias do seu blogue de referência)
Tenho mesmo pena que não venham de África. Trazidas por um vento qualquer, baptizado pelos homens com um nome bonito (foram mesmo os homens que os baptizaram; as mulheres nunca tiveram voto na matéria; ainda hoje não têm voto na matéria, e eu sei bem do que falo, eu luto por esse direito). Daqueles ventos que sopram muito forte e que trazem às costas, à boleia, as areias rebeldes, que não quiseram ficar para sempre no deserto - grãos pequenos que são um nada, nem se vêem se não estiverem em matilha, mas que, ainda assim, têm coragem de sair da sua pequenez, saem debaixo das saias do Sahara apenas com a roupa que trazem no corpo e com todos os sonhos do mundo numa trouxa presa ao ombro; que, depois, no novo mundo, começam uma nova vida e, às vezes, a sede é tanta, é uma sede de mil anos, e juntam-se às águas dos ribeiros, que, sem querer, tingem de encarnado, da cor do sangue (e nisto, sempre que falo de deserto e de ventos, vejo o filme à minha frente: o paciente, quando ainda não o era e não tinha o corpo coberto de queimaduras, e quando ainda não tinha hipotecado um grande amor por ter o nome errado, conta-lhe uma história de ventos terríveis que os homens combatiam com espadas, uma história narrada por Heródoto. O pai da História contou histórias; era um excelente contador de histórias fantásticas que nunca me dei ao trabalho de ler; só sei que era um tonto como eu, que via coisas extraordinárias e belas onde apenas estava a realidade; e se calhar, se eu tivesse vivido naquela tempo, era a mãe de qualquer coisa hoje em dia).
Fiquei desolada. Ao ler o Destak, largado por algum cliente madrugador da taberna da Dona Beatriz. Que está afastada a possibilidade de as borboletas terem vindo de longe. Toda a gente fala delas com nojo, chamam-lhes traças, eu dormi com três no quarto, e estão duas aqui na cozinha, a dona Beatriz pulverizou-as com Dum Dum, e eu dou-lhes asilo, e pouco me importa que não tenham asas coloridas, têm uma vida tão curta e, se querem passar aqui os seus últimos dias, que passem, mas há um mundo lá fora, tento convencer as que dormem na casa-de-banho laranja que no quintal da vizinha alentejana há uma nespereira tão carregada que até os ramos se queixam. E encaminho-as para a liberdade, mas elas teimam em voltar pela nesga da janela que não fecho, e não fecho de propósito para elas voltarem se quiser.
E depois chegou-me esta. Diferente e albina. Dormia no pano da loiça e não no tecto, no pano que cobre a loiça que o senhor 50.000 lavou enquanto eu escrevia notícias, a 500 metros de distância do asilo de borboletas nocturnas de Santa Marta. Pedi licença para a fotografar. A Leica torceu o nariz. Pouca luz. Depois despejei-a com cuidado. Precisava do pano. E da loiça lavada. Hoje foi a primeira ceia. Salsichas com ovos estrelados e arroz basmati. Hoje estou um pouco triste, que coisa esta de quem me deu vida ter uma pedra de granito fria no lugar do coração, mas isso fica para o segundo acto deste post (que, desconfio, já não será escrito esta madrugada, apesar do senhor meu "groom to be" estar aqui mesmo à minha frente, a rever um livro de uma senhora boa em vias de canonização, que tem que estar pronto, sem gralhas e vírgulas supérfluas, até ao final do dia de amanhã).
Ela tem pouco tempo. Praticamente já não voa, temo que sim, que é mesmo assim. Ele tirou os olhos das páginas. E alcançou a máquina fotográfica que não tinha conseguido captar a borboleta em cima do pano da loiça por falta de luz (e de jeito, admito que também tenha sido isso). E eu pensei que queria registar o momento em que eu estragava o primeiro ovo no azeite que borbulhava em cima do bico do fogão. Não. Ela decidiu morrer nas minhas costas, as costas que há tão pouco tempo ninguém abraçava e que não eram o poiso de nenhum ser alado.
Podem não ter vindo de África, nem de nenhum sítio distante (podem até ter estado sempre por cá, quietinhas na despensa ou nos armários da cozinha). Podem ter-me estragado o fim-de-semana nas praias da Comporta e feito com que o quilómetro mágico 22.222 do Idea, às 17h49, da tarde do dia 28 de Maio, fosse memorável e extraordinário, de uma forma insectívora que nunca me teria passado pela cabeça. Mas podem voltar sempre a esta casa. Apesar de não terem asas coloridas, são borboletas.