domingo, maio 07, 2006

Longuíssima pausa no desencanto (um pouco louca)

Escutem com muita atenção, vejam se percebem isto que eu vou agora dizer: as noites já não são todas iguais, de pernas cruzadas no sofá laranja, a embalar um computador pequeno e branco da Apple no regaço, a destilar desamores, desencontros, histórias retorcidas, coincidências, a escravizar dez dedos sem dó ou piedade, não lhes permitindo, nem sequer aos mais pequenos - os mindinhos -, tirar cinco minutos para fumar um cigarro, comer uma bucha ou ir fazer um xixizinho, obrigando-os a trabalhar mesmo quando ardem em febre e alucinam (a Magui vê ratazanas por todo o lado a partir dos 39 graus).
Já não as avalio pela quantidade de semáforos verdes que consigo passar em excesso de velocidade do início ao fim da avenida da República, nem prevejo uma melhor ou pior noite pelo advento de ter à minha espera um lugar de estacionamento à porta de casa, reservado com carinho e com afecto pelo demónio em vias-de-ser-anjo do estacionamento (e hoje não tinha e não fiquei zangada, estranhei mas não fiquei zangada, está certo que o demónio em vias de santificação tenha ido fazer das suas para outra freguesia; no Coração de Jesus, freguesia do centro de Lisboa com meio milhar de eleitores, as noites já não se ganham pela sua intervenção como arrumador de carros).
Diferentes, mas as noites até têm sido iguais, há rotinas de prazer que se repetem: a campainha tocar breves minutos antes das doze badaladas e os pingos de cera de velas a chorarem pela cómoda abaixo, as velas que aguardavam há tantos anos como o número de dedos da mão que vos escreve (a direita, a esquerda segura um cigarro) por uma oportunidade para alumiarem um amor com probabilidade negativa - daqueles que eu gosto, daqueles que eu persegui, colocando armadilhas, escondidas em caixas de comentários, pela blogoesfera a dentro.
Agora as noites são os dias, e em Santa Marta eu reviro os bolsos das calças e das saias e os forros das carteiras e tiro de lá os pacotinhos de festa instantânea que andaram sempre comigo este tempo todo, prontos a ser preparados no shaker. Basta juntar água e levar ao microondas e já está: foguetes, confetis e bolinhas de sabão irisadas. Risadas, algodão doce e carrinhos de choque.
Esta vai ser uma noite muito grande, o sol não vai nascer daqui a três minutos, e eu vou ganhar raízes em frente ao Blogger, e só não vou fumar desalmadamente porque não comprei tabaco, e não comprei tabaco porque, neste momento, há um vício maior, um vício que afugentou as noites em que não conseguia dormir por causa do desencanto.
Ontem à noite, ou seja, ontem de dia, às primeiras horas do dia (os pássaros ainda não apanharam o jeito, nem vale a pena ameaçar com o "ponto", eles estão com o jet lag deste vórtice temporal), nem podia acreditar no que os meus olhos viam, abri-os muito e a boca também, em sinal de espanto: duas escovas de dentes namoravam no lavatório, à sombra do recipiente de cerâmica que guarda o sabonete líquido das mãos, e o sabonete líquido é laranja, como as paredes, e o WC Pato da sanita, que se queixa que tem pior emprego que o portageiro, também é laranja, e isto só pode dizer que eu sou uma fashion victim e que a Renova tem que passar a comercializar papel higiénico laranja - há um salmão alaranjado, mas não é a mesma coisa, não gosto de cores pastel, gosto de afirmações cromáticas e não incertezas pastéis.
Separaram as escovas, cada macaco em seu galho, uma em cada casa-de-banho, uma na Estrela, outra em Santa Marta, ambas a ressacar, a suspirar, mas no armário de casa-de-banho da cadeia sueca de mobiliário e decoração, está um blister com uma escova Colgate pronta a estrear e só se passou uma semana e eu devo ser um pouco louca, e ele só pode ser da mesma matéria que me enforma.
Continuo a escrever posts na cabeça, sobre a longuíssima pausa no desencanto que me chegou à 50.000ª visita deste blogue, mas destilar amor é uma alquimia muito mais complexa do que destilar dias negros. Não sai tão rápido, não sai tão bem, mas é só por enquanto, enquanto não me habituo. Hei-de conseguir, quero engarrafar licor de encantamento, directamente dos alambiques que fumegam com este amor perto do ponto de ebulição, passado o ponto de rebuçado.
E nisto olho para o maço de chaves e decido que tenho que ir ao serralheiro fazer uma cópia, uma cópia para quem diz que as escadas da Martinha têm o seu encanto decadente, uma cópia para quem, cego de amor, até diz que a porta de alumínio da entrada nem é das piores que já viu. E só posso mesmo ser um pouco louca.

11 comentários:

Mary Mary disse...

São os loucos de Lisboa
Que nos fazem recordar
A Terra gira ao contrário


Não estás louca! Estás a viver o dia como uma pequena vida, como se fosse o último dia que vivesses. Tu és uma força de vida e o sorriso na tua cara neste momento, a felicidade e a paz que sentes dentro de ti fazem qualquer um desejar um pouco para si. Ninguém é louco quando vive a vida...

Carpe Diem

Isa disse...

uma certa dose de loucura n faz mal, antes plo contrário, e nem sequer engorda. N JOY à grande. bjs mil

Goiaoia disse...

A porta nem é das piores?? Definitivamente é um querido, definitivamente apaixonado: estão bem um para o outro.

[ t ] disse...

Ama-se porque é bom amar. :)

(e dá beijinhos à minha sobrinha)

Telescópio disse...

Tanta felicidade enjoa-me. Arghhhhh...

Heiabelha disse...

Tia, estás a viver um dia de cada vez. A mais não se é obrigado para quem começa algo novo. Respira fundo e continua porque a vida tem muito para dar. Mesmo que às vezes pareça ser apenas duas escovas no mesmo copo. :)

Anónimo disse...

... E a sorte de poder viver o momento... como se fosse o último!!!

Dia disse...

Eu continuo a achar que este post não está nada de jeito...

Anónimo disse...

Dia-gnóstico: continuo a achar que poucos ela vai aprender que é muito melhor viver do que escrever. Está só a um pequeno passo. Depois, vai pedir-lhe para a ajudar a avançar nas artes gramatologia e a confeccionar parágrafos. Um dia vão todos ficar a olhar para o vazio desta página preta em branco. A partir daí irás apenas escrever na água do banho, em pensamentos fugidios que acabam por sair pelo ralo em direcção a um mar pensante que nunca encontrará a luz do dia. Serás feliz.

Goiaoia disse...

(âh-âh-âhm) Olhem que, francamente...

ffidalgo disse...

Muito bom!