segunda-feira, maio 08, 2006

Metro

Tenho os músculos – todos eles, mesmo os que desconhecia, os que passados quase 28 anos, mal-educados, nunca se apresentaram –, em sentido, congelados, e o queixo ainda está arranhado de uma barba muito mal semeada.
Mas o queixo não se queixa, e os joelhos doem, mas aguentam estoicamente, e mesmo os músculos só vieram dizer que estavam vivos, que saíram de coma. E devo ser a pessoa mais bonita e bem vestida do átrio da estação de metropolitano de Entrecampos, há quatro dezenas de olhos por cima de mim e, se calhar, é do sorriso, se calhar, é do fluorescente do branco dos meus olhos [comprei uma nossa senhora de Fátima fluorescente na Servilusa da tua rua e não a devia ter oferecido, devia ter ficado na mala-de-cabeceira, mas o que eu queria mesmo era uma nossa senhora meteorológica, que ficasse com o manto roxo quando fosse fazer chuva e com ele em tons de rosa, quando o amor estivesse para nascer junto com o sol – e deixa-me olhar para os meus joelhos, que doem e rangem como se pedissem uma gota de óleo: estão rosados e a moinha nas rótulas avisa-me que o sol está a prazo, que é de pouca dura neste Maio de todas flores]
Triste. No meio de tantos sorrisos, consigo estar triste. Pelas flores. De Leica a tira-colo, mudo o itinerário só para passar em frente ao portão da casa cor-de-rosa dos meus sonhos. Na calçada, dezenas de papoilas que ninguém ousou pisar, erguiam-se, a coroar os amores desta Primavera. Não mais. Deixam a casa a cair aos pedaços, com o pedido de licenciamento pendurado numa janela de madeira que já não tem vidro ou tinta, mas cortam as papoilas e os jardins de Deus, plantados e cuidados apenas pela sua mão verde.
Não se deve escrever na carruagem do metro; agora são mais de cem olhos a espreitar o que eu faço e sorrio, e sorrio e procuro os óculos na mala que não largo há três anos, da marcado sapatos que o Papa adora, e os óculos decidiram aparecer hoje de manhã, depois de ausência prolongada, de meses de paradeiro desconhecido, aterraram na gaveta das cuecas, e já estou de óculos apoiados na cana do nariz que é torta como a do Zé Ralha, – mas ele partiu o nariz em criança e eu não, e a avó Zá espetou um espinho de rosa na vista direita e tinha uma pinta encarnada no olho e eu não andei às turras com as rosas, apenas depositei cartas de amor debaixo de uma singela rosa de santa Teresinha, que não tem espinhos, mas também tenho uma cicatriz igual à da minha avó –, e com óculos já não escrevo em cima da folha do caderno comprado pelo engenheiro das OPA’s meu patrão, e continuo a sorrir e paro, paro e espreito pelo canto dos olhos – dos olhos que já viste colados com ramelas pela manhã, e inchados de madrugada, e negros do acumulado de noites perdidas a chorar – e tento imaginar o que eles pensam de mim, leio-lhes o pensamentos e em quatro estações da linha amarela, não é preciso mais, aprendo que os transportes públicos são bons para a escrita, que este é um post sôfrego como os de antigamente, dos que têm o ritmo da boca dos meus dedos (e neste post, até os mindinhos trabalharam; os mindinhos são muito tímidos, geralmente não têm nada a dizer, fazem suas as palavras do pai-de-todos e, às vezes, do indicador, mas neste post, disseram de sua justiça).

6 comentários:

Goiaoia disse...

parece-me que inauguras-te um novo tipo de postes: Postes de alta-tensão amorosa... Deves ter andado a plantá-los também, um pouco mal semeados é certo, mas, e daí, as dores nas costas.

AnadoCastelo disse...

Que postas de pescada lindas.
O amor está no ar?

Mary Mary disse...

Escrever com um sorriso na cara tem outro charme! :D

Isa disse...

podes crer Mary, tem mesmo. e diz ela q n gosta de escrever qdo está feliz... pois eu acho que deverias escrever sempre, n sei de quais gosto mais de dos tristes de dos felizes. este tá mto bom, por exemplo... bjs e all da best!

Goiaoia disse...

...outro charme!

MPR disse...

De quem se tornou cliente regular da linha amarela e anda a viver com um sorriso na cara, boas tardes... que tenho visitado mas sem deixar registo, fora a marca no velhinho contador...
A banda sonora ao som deste post é arrepiante (sim que quando lemos, mesmo sem mexer os labios produz-se um som na nossa cabeça que se mescla com os sons do mundo...)