Alguma coisa a declarar?
Fecho a porta ao dia – agora, os dias fecham-se apenas no trinco, não os quero fechados a sete chaves, numa caixa forte e, antigamente, eu fechava os dias, não por serem tesouros preciosos, mas por serem dias que não queria mais lembrar, dias insuportáveis de dor sem medida, trancava-os com combinações numéricas formadas apenas por números ímpares, e eram sempre capicuas: eu sempre gostei de simetrias, mal de família, e a culpa é da minha mãe, que cedo me pegou o bichinho pela caça às matrículas que se podem ler de trás para a frente e da frente para trás –, e somos o inverso e não o oposto, chega-me essa certeza quando estamos reflectidos no espelho de papier maché que comprei na amada Barcelona, e o dragão, igual ao que está estacionado no Parque Güell, e a deliciosa criatura colorida mostra-me umas costas muito brancas e muito magras, cruzadas por dois braços muito escuros e rechonchudos, eu espreito só de soslaio e vejo um cabelo loiro em desalinho (e há as sardas, eu queria cartografar-lhe as sardas, mas elas não aparecem no reflexo invertido do espelho) e o meu, escuro e longo; encosto a porta ao dia e só sei que cada curva do meu corpo foi esculpida para ele encaixar, ao milímetro, e cada depressão do dele foi desenhada a partir do meu molde; somos o inverso e não oposto, e, às vezes, já dormitei um pouco antes de vir a pergunta sagrada – já não é uma, nem duas, que dormito a pensar se vai ser amanhã que a orquídea branca vai florir; a rosa, a que amuou durante três anos ainda vai demorar; a última vez que a vi estava louca e grávida e não tarda, duas semanas, talvez, vou vê-la de novo, fui mais teimosa, não desisti, aquela orquídea salvou-me uma vez, quando eu estava louca e grávida –, eu sabia que ia conseguir dormir de novo, como dantes, com muitos sonhos e pesadelos também, eu só não sabia que era preciso que ele chegasse e tomasse a metade direita da minha cama, e digo “o nosso quarto”, e arranjo-lhe espaço no armário, e peço-lhe que traga roupa e, não tarda, que empilhe livros à cabeceira da cama que eu queria trocar, porque a tomo por amaldiçoada, e ele não deixa – “é a nossa cama” –, e fiz as pazes com os pronomes possessivos, e não tenho mais medo do número dois, pondero até trocar de operador de telemóvel, e a história das vírgulas antes dos “e” faz todo o sentido, é para os leitores conseguirem respirar, porque, reparem, salvo erro, ainda não fiz um único ponto final, e será que o revisor ficará com urticária?
Pelo sim, pelo não, deixa-me fazer uma pausa forçada, com direito a parágrafo e tudo. Mas antes, lembra-te sempre disso, e deixa-te de tretas e escreve como sempre escreveste: ele gostava de ti pelo que tu escrevias, era só pelo que escrevias, sabia lá quem tu eras – eras a jornalista do diário de referência “montes de esquizofrénica” –, ele lia-te a horas impróprias, usava o Kinja, depois o Bloglines, nunca acedia directamente pelo URL “empantanas.blogspot.com”; outras vezes acedia através de um link no desktop e tu caçava-lo sempre, a que horas fosse, e sabias que o seu “user name”, daquele computador, ISP Telepac, era “Zé”. E se lhe desse urticária – as vírgulas todas encavalitadas e a escassez de pontos –, não lia todas as madrugadas, pensa bem nisso. Devorava tudo mas nunca comentava e tu estranhavas, e já o André diz que o único comentário que plantou, na madrugada de dia 21 de Março – um mero ponto de exclamação –, foi “o ponto de exclamação mais eficaz da história”. E ele admite, deitado na metade direita da cama que salvou de um destino incerto no armazém dos Emmaüs (segundos tremas neste texto; feito notável), que tu não és igual à que escreve; e podes parar de escrever, é um amor literário, sim, entre a que tem a mania que é escritora e o revisor tipográfico, mas ele gosta de ti com todas as rugas no meio da testa, covinhas na bochecha direita, mares de estrias na barriga e nas costas, junto à tatuagem; não é só pelo que escreves, é uma história limpa e das mais bonitas que já se viu – é o amor no terceiro milénio, na era de Aquário, como apregoa Santo André aos engatados.
Mas todas as noites, era isso que eu queria dizer antes de me perder, fecho os dias e, antes de colar as pestanas de cima às de baixo, já os Pestanas estão em pezinhos de lã no hall – é a primeira porta à direita, segredou-lhes ele, foi isso de certeza –, a consciência paira algures num limbo, mas eu lembro-me: “tens alguma coisa a declarar?”
“Ainda bem que chegaste”, responde ele.
8 comentários:
isto é muito importante. Este post foi escrito ao som desta musiquinha de Lhasa, que eu não consigo pôr aqui no (t)ralha:
Pa'llegar a tu lado
Gracias a tu cuerpo doy
Por haberme esperado
Tuve que perderme pa'
llegar hasta tu lado
Gracias a tus brazos doy
Por haberme alcanzado
Tuve que alejarme pa'
llegar hasta tu lado
Gracias a tus manos doy
Por haberme aguantado
Tuve que quemarme
Pa'llegar hasta tu lado
é pá caneco... eu estive quase quase a vir aki reclamar posts. nc faço isso, n gosto da pressão e acho sempre que a escrita tem de fluir e n ser forçada...
fónix ainda bem que n o fiz. este post tá lindo, lindo, lindo. acho que é o que gostei mais até hoje.
n tenho motivos nem feitio para isso mas sou uma romântica incorrigível.
n sei que música e essa que puseste no espaço dos comments mas li ao som da que está e o texto ficou ainda mais bonito. se é que isso é possível.
caneco... parabéns. parabéns e toda, mas toda a felicidade do mundo.
sério... bjs milhões!
está tão bonito... gosto tanto de te ler feliz mana!
Às tantas as minhas palavras esgotam-se para ti. Dizer que gosto já se torna banal, que é mais um para recordar a mesma coisa! Hoje fico-me por um sorriso...
:D
Bem...até o comment é óptimo. Não gasto mais adjectivos.
Puxa...este trouxe-me lágrimas. Um amor demasiado bonito... a música tb ajudou...
Upa Upa ...puxadote
Que seja muito, muito feliz.
Jokinhas
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