quinta-feira, maio 25, 2006

Mais bonita do que parece

Ele sempre foi um excelente contador de histórias e eu não as sei contar, assim de improviso, não me saem da boca como me saltam aos pulos das pontas dos dedos e nunca poderia ser stand up comediant, mas tinha material para três encarnações de argumentista ou comediante, que a minha vida é tão trágica, de fazer chorar as pedras do vidraço da calçada esburacada, como de fazer xixi à gargalhada nas cuecas e, se calhar, meu querido amigo (ele sabe quem), também não é tão bonita ou tão fascinante como eu a pinto, mas eu prefiro acreditar que sim, que é, e deixa-me, por favor, contrariar-te, porque quem quer que seja que encontra lagartas de papilio machaon onde acaba o país, e as traz consigo no comboio, e as guarda numa caixa transparente, no quarto, à cabeceira, à espera que, uma manhã, elas acordem vestidas com asas coloridas, tem uma existência diferente da dos outros, tem uma existência mais bonita que a dos outros, apesar de, como toda a maralha indistinta, esse alguém também se levanta de madrugada, e não tem um emprego cinco estrelas, e luta por dias melhores que tardam em chegar, como tantos iguais a nós.
E quando a Carolina me começar a pedir histórias de fadas para adormecer, o que é que eu vou fazer? Se calhar, escrevo-as durante o dia e, assim, apenas tenho que lhas ler à noite, e eu sei fazer bem vozes de desenho animado, sim, crio rotinas, a partir de Setembro, mudo as rotinas, vou ter que passar a funcionar de manhã, entregar a menina dos cabelos dourados à quinta de Santa Teresinha antes das nove da manhã, e sair às seis em ponto, passo a ter horário, a ter vida, vou poder dar banho à minha filha, e o jantar também (cúmulo dos cúmulos da felicidade: fazer o jantar, com as batatas que arranjei coragem para comprar no senhor Joaquim), e de qualquer forma nunca me avaliam além dos 90 por cento, nada se perde por cometer suicídio premeditado à minha carreira, e no meio do meu horário de funcionária pública, se calhar, à hora do almoço, escrevo contos de princesas de três mil caracteres para a metade loira de mim - a Magui, quando trabalhava na Matinha, horas demais, fazia-me desenhos e pintava-me caixinhas de madeira de produtos dietéticos que comercializava para o celeiro com Snooppys, e lá na Martinha, descobri-a ontem, dentro de outra caixa, está uma que tem o Beagle do Schulz em cima da casota e na outra face do cubo de balsa um enorme coração “da Mamã para a Diana”. E a grande dúvida, neste momento, mais do que se me vou conseguir levantar os ossos do colchão às sete e meia da manhã, é se eu conseguirei escrever coisas bonitas e mágicas para a minha filha, neste mesmo teclado onde me fartei de sangrar.
Mas é uma espécie de alívio de não saber vender a banha da cobra como ele, de partilhar consigo apenas as mesmas feições, as mesmas pernas e joelhos, o mesmo nome e, sim, a dor de ter tido o mundo todo na mão, não ter tido a coragem, bastava um bocadinho de coragem, para que ele fosse nosso. E o condão de transformar em magia a rotina das 24 horas que passam pelos ponteiros em silêncio. Basta.
Contou-me histórias magníficas. Do dia em que o Paulo nasceu e do sonho que teve (e eu já não me lembro, mas sei que ele se chama Luciano graças a esse sonho). De magos, feiticeiros e poções mágicas feitas com raízes de mandrágora. De um Natal no meio dos loucos, no Hospital Militar, onde esteve internado com ataques de asma que o livraram de ir bater com os costados ao Ultramar. A história da praga dos escaravelhos egípcios no Robalo. Da génese do mundo, à roda de uma fogueira no jardim empedrado da EUA, que improvisou com uns galhos e uma garrafa de álcool etílico. Explicou-me o conceito de alma-grupo. Que todas as coisas do mundo têm uma alma-grupo. Que, por isso, sempre que se arranca uma rosa da roseira, se deve pedir licença à alma-grupo das rosas, explicando que aquela flor vai fazer alguém feliz; que, quando se tem que partir para a “solução final”, exterminando com Bio Kill um formigueiro teimoso de Santa Marta, se deve pedir perdão à mesma entidade superior e colectiva que representa as formigas no Conselho do Universo.
Uma noite, no meio de cigarros de mentol e balões de Baileys, como só ele conseguia fazer, disse-me que os Deuses castigaram o Embondeiro, porque aquela árvore os afrontou. Era tão bonita e tão grande que enfiou na cabeça que iria chegar aos céus e tornar-se divina. E não houve contemplações (e duvido que os Deuses se tenham desculpado à alma-grupo dos Embondeiros pelo que fizeram): irados, castigaram a rainha das árvores, e viraram-na para todo o sempre de pernas para o ar – ergueram-lhe as raízes para os céus, e esconderam a copa frondosa debaixo da terra.
E depois dessa história, veio outra, ficava acordada até às tantas a ouvi-lo, a das almas-gémeas. E havia sempre uma moral nas histórias do Zé. E castigos dos Deuses e feitiços (e havia noites em que púnhamos espadas no cinto e íamos passear para a arriba fóssil como cavaleiros medievais). Que os Deuses nos cortaram ao meio, já não sei o que fizemos, mas deve ter sido qualquer coisa imperdoável, cortaram-nos ao meio, e como num jogo de cartas, batoteiros dos Deuses, baralharam tudo e voltaram a dar, espalharam as nossas metades por aí, algures, e andamos nisto, incompletos, e às vezes a peça do puzzle quase encaixa, mas só à força, e depois volta tudo à estaca zero, porque quando é a metade amputada de nós é como um íman, não é preciso martelo; temos um carro e uma casa, mas falta-nos um braço, um pulmão, e esta é outra vez para ti, mais uma vez para ti, e para mim, também, porque nós, os dois podemos ter uma vida menos bonita do que parece, mas estamos completos.

7 comentários:

Anónimo disse...

É disso que falo quando lamento não viver um amor-perfeito. É de saber, com todas as letras, que não estou completa. Que agora, o encaixe nunca será perfeito. O martelo deixará sempre marcas.

Carrie disse...

Doce dia, é tão bom ler-te feliz.

António Gomes disse...

O Zé só pode ser um tipo porreiro,

Dia disse...

O zé é um personagem complexo.

Goiaoia disse...

óh pá, Parabéns! óh pá, Parabéns! óh pá, Parabéns!
Imagino que calculas o quão feliz me sinto por ti. Pode ser que seja uma fase... (mas enquanto durar) mas há-de ser fantástica enquanto durar. E eu desejo que dure tanto quanto possivel, ou mais um pouco mesmo.

Somos só memórias. E duramos tanto tempo quanto o que nos recordam, e isto vale para todos. Até para o teu "gigantesco companheiro de brincadeiras". Ele só vai verdadeiramente "partir" quando te esqueceres dele. E sabes tu e a "alma mater" dos eucaliptos que isso vai ser nunca.

Olha, beijinho para todos (num digo mais tonterias).
p.s.: E é tão bom quando temos coisas mágicas a recordar.

Isa disse...

isso é que é: "estarmos completos"! tudo o resto vem por acréscimo.

tb gosto mt de te ler feliz. e acima de tudo de te saber feliz. eça é que é hesse! bjs mil

olha, claro que vais saber escrever e contar histórias de fadas à carolina. se duvidar ainda saem em livro.

Mary Mary disse...

Esta seria uma história gira para contar à tua filha... Já imagino todas as perguntas e tu a respondê-las com outros contos de fadas...