quinta-feira, maio 11, 2006

Nem tudo são rosas

Nem tudo são rosas, senhores. E isto acontece todos os dias.

Acaso alguém se lembra de eu ter escrito isto?
Foi no Verão, no final do Verão, parece-me, o louco da Viriato estava em paradeiro incerto, certamente estava morto, pensámos todos nós, havia ainda quem o recordasse, quem sentisse a sua falta. Alguns, como eu, ou o Agostinho, do Lacinho, e o segurança da Organização Internacional de Trabalho, temíamos já pela nossa segurança, ligávamos para o centro de adopção de loucos e diziam-nos de lá que havia uma enorme lista de espera – é que os loucos estão mais perto de Deus, mais ainda do que as crianças, e têm o “cofre aberto”, são filtros da maldade; é sempre bom ter um louco por perto e um espanta-espíritos à janela. E nesse texto decidi lembrar todos os loucos que passaram pela minha vida e é, na minha opinião, um dos melhores desabafos deste blogue escuro, daqueles que saem de rajada, daqueles que reli em voz alta.

E eu releio sempre em voz alta, quando o assunto é sério, e a voz que traduz a mímica que faz dançar a ponta dos meus dedos nos dois teclados da minha vida – um branco e outro preto –, a voz que oiço do lado esquerdo da testa, é muito diferente da minha voz falada, e esta são muitas, também: há a voz dengosa do telefone, que derrete as "fontes" e as faz falar de mais, essa é a voz quente que lhes põe na boca tudo aquilo que quero e que preciso de escrever em papel de péssima qualidade, que sai da gráfica Mirandela para as bancas, todas as manhãs – imagino sempre moças rosadas, de cabelos secos pelo sol, descalças, com cantarinhas na mão, junto a fontes de pedra, com água fresca, quando chamo de “fontes” às minhas “gargantas fundas”; são as “fontes” e “tenho um serviço”. O Leonardo entrou nisto, nas notícias, dois anos antes de mim e chegava a casa, ao quarto onde apenas entrava quem tivesse carteira profissional de equilibrismo, que lhe conferisse aptidões para saltar entre pilhas de jornais e revistas e sacos do C&A cheios de camisas de viscose brilhantes (isto foi no tempo em que eu e o Leonardo íamos juntos ao cabeleireiro no Carrefour de Telheiras e pintávamos as melenas do mesmo encarnado fogo, e as meninas do salão derretiam-se e tomavam-nos como um casal de namorados excêntricos), e dizia que tinha feito “dois serviços” e eu ficava a pensar na expressão, pensei nela quase tanto como no “céu-da-boca” (quando era pequena, muito pequena, imaginava estrelas no palato, escondidas pelo marfim dos meus dentes encavalitados, eu já vos tinha contado que comecei a brincar com as palavras desde muito cedo, ou não?), e “fazer um serviço” soa a máfia, a assassinato por encomenda, cheira-me a Beretta, mas todos os dias faço “serviços” e não tenho Padrinho, nem ninguém me chama por “Mama Raglia”, e querem maior sinal da minha insignificância? Nem sequer apareço no livro do Carrilho...
Depois, há a voz cantada, que andou perto dos anjos antes de eu enferrujar as cordas vocais com o fumo dos cigarros que me fazem sobreviver a algumas noites difíceis e intermináveis; há a voz de cama, que é doce, há a voz de mãe, que é de cartoon do canal Panda, há a voz embargada, dos dias tristes, há a voz gaga quando alguém me tira o tapete por debaixo dos saltos altos; há a voz que fica registada nas fitas magnéticas dos gravadores quando faço entrevistas, que me irrita porque é sibilante.
E hoje, de noite, a voz que leu o anoit’ser. Não a conhecia, esta voz não estava identificada. Não era minha, era a dele, só a pele de galinha era minha e as mãos a esconderem os olhos, cegos, depois de terminar o suspiro da última frase.

Isto acontece todos os dias. Mesmo aqui ao lado.

Até o Leonardo comentou esse post, e o Leonardo lê tudo mas é parco em comentários – e quando a Thê montar o (T)ralha em livro (podes pedir ao 50.000 para o rever; ou peço eu), eu quero dá-lo à minha mãe; a Magui nunca me leu, provavelmente vai detestar: ela telefonou-me a dizer que ele estava internado e eu tremi, vinquei mais um sulco na ruga da testa, a meio das sobrancelhas, porque ele me tinha telefonado e chorado muito, estava desesperado, e eu disse-lhe que ia ter com ele logo que acabasse de desgravar a entrevista do Carmona e não fui, esqueci-me, e nem fazia diferença, claro que não fazia, e eu disse à Magui que carregamos um peso muito grande, todos, de honrarmos os nossos avós, de sermos tão notáveis quanto eles, e eu disse-lhe e o João, que estava ao meu lado - estava ao meu lado há 18 horas -, ouviu: “mamã, eu não vou ser ninguém”, e ela zangou-se, resmungou, mandou-me estar calada se só me saem disparates pela boca fora, argumentou que também não era ninguém e eu sei que ela ia desatinar com a forma como eu escrevo, só que isto acontece todos os dias, até a quem é do meu sangue.

6 comentários:

Anónimo disse...

E escreve-se assim de rajada, das entranhas, com as vísceras quase à mostra. Os loucos estão todos mais perto de Deus. E nós achamos sempre que nunca vamos ser tão bons, tão grandiosos como os nossos pais. Achamos sempre que não. Mas mesmo que nunca o sejamos, aos olhos deles somos pequeninos.e ah! De vez em quando queriam dar-nos uns tabefes para termos tento. Tento é uma palavra engraçada. E noutras só queriam que deitássemos a cabeça nos colos deles, sem vergonha, para que nos mimassem e nos dessem muitos beijinhos, os beijinhos curam todas as feridas e todas as dores. Nem tudo são rosas . E até as rosas mais perfumadas, mais aveludadas, mais bonitas, até essas tem espinhos que às vezes fazem doer.

FMS disse...

Admiro o teu poder de síntese. Não ironizo, é que isto dava para 3298743 pontas soltas mais IVA. Fundes por aí umas coisas imiscíveis.

Goiaoia disse...

imiscíveis é bonito

MPR disse...

E há a voz deste cantinho, que fala com os sons que cada um de nós ouve, uns mais perto e certos do que outros, uns mais à mão, outros através da incrivel distância de um teclado...

Anónimo disse...

Ontem, dia 11/Maio morreu o Rui. O Rui era o namorado da Vanessa. A minha colega do part-time de Domingo. Morreu sem aviso. De ataque cardíaco fulminante. Era das pessoas mais doces com quem tive o privilégio de me cruzar. Transmitia calma e serenidade. Era a alma gémea da Vanessa. Com ela partilhou sonhos. Projectou um futuro. E de repente, sem aviso, todos os sonhos se dissipam. O Rui morreu. E uma parte da Vanessa morreu também. E eu mais uma vez tive noção do quão frágeis são os nossos sonhos e da necessidade que temos de viver a Vida com garra. De aproveitar todos os momentos. De ver o copo meio cheio em vez de meio vazio. De dizer e de demonstrar às pessoas que amamos que as amamos, por muito lamecha ou piroso isso possa parecer. Desde que ontem recebi o telefonema da Vanessa, uma série de "dramas" se relativisaram na minha vida. Se é mau perder alguém que se ama, por algo que se fez, ou que não se fez mas se podia ter feito, pior é perdê-los assim irremediavelmente. Sem hipótese de voltar atrás para se dizer tudo o que sempre se quis dizer e não se disse. Gosto muito de ti Diana, com todos os teus defeitos e com as tuas virtudes. Gosto muito da Carolina, o pequeno diabrete loiro. E da "Mãezinha". Passo por aqui sempre que posso para saber de ti, quando dizes que me vais ligar e depois não ligas e eu também não ligo a insistir. Gosto muito de ti e sei que também gostas de mim. Obrigada por me deixares desabafar aqui a angústia que sinto no peito desde ontem. O Rui era uma boa alma. Não merecia ter partido tão cedo. Nem sequer preciso de fechar os olhos para ver a imagem dos seus olhos brilhantes e do seu sorriso doce.

Goiaoia disse...

E a Magui devia morder-te de cada vez que dizes asneiras!