À noite tudo se recompõe
À noite tudo se recompunha.
A camisa do pijama - só usava a parte de cima, dormia sempre de pernas ao léu, gostava do toque dos lençóis brancos, de algodão, bordados pela sua mãe, na sua pele -, de flanela, cor-de-rosa, com ovelhas, 5 euros na loja chinesa da Gama Barros, tamanho xxl
[o pijama que levou para a Maternidade, dentro do qual sentiu uma moinha fina, contracções, quarto 615, sozinha, com o livro do Harry Potter na cabeceira e duas máquinas fotográficas na gaveta, Canon EOS 500 N, Leica Digilux 1; o anel de platina e diamantes, que o avô Oliveira dera há Magui quando ela fez 16 anos, no dedo anelar da mão direita, já nem sabia quando é que a Magui lho tinha passado, como um testemunho, como um pedaço de si; o fio de ouro com um pingente de coração, que pertencera à sua outra mãe, e que também lhe foi confiado, no dia em que fez 18 anos, também ao peito - sempre que sentia que algo estava para vir punha o fio no pescoço, e naquela noite, em que estreou o pijama não falava com a sua outra mãe há dois anos, tinha perdido o número do telefone, estava no quarto 615 a pensar muito nela, a pedir um milagre, que a queria lá ao seu lado, por isso tinha posto o colar e, no dia a seguir, transmissão de pensamentos, a sua segunda mãe, que parecia mais mãe dela que a Magui, porque tinha o mesmo cabelo negro e cor de pele e a mesma anca larga, podia mesmo ser sua filha, no dia seguinte, no dia em que um ser vivo, uma menina, de 47 centímetros e 2,9 quilos, lhe foi arrancada do ventre, sem anestesia, essa sua mãe cabo-verdiana, a que tinha sempre a seu lado, numa moldura redonda junto à cama, telefonou, não me venham dizer que não há muitas coisas entre o céu e a terra, e quando estava aflita punha, também, a aliança dos tempos em que vivia paredes meias com o Bairro do Zambujal, e não era ao acaso que tinha ambos no corpo, neste momento, um círculo dourado no anelar da mão direita e o coração na boca, o de ouro e o de carne também; tinha um péssimo pressentimento, e não era o avô Ralha, sentia que não era o avô Ralha]
em cima do braço direito do sofá laranja, a saia castanha que rasgou a subir as escadas tenebrosas de Santa Marta, sentada, sem pose, na poltrona branca, o urso cor-de-rosa e o tigre laranja, do Winnie the Poo, deitados no chão, três pares de sapatos semeados na tábua corrida, um desodorizante junto aos livros e ao lado da moldura com o Pax a bocejar, mas à noite tudo se recompunha, mesmo no meio do caos, mesmo sentada por cima de uma coberta cheia de nódoas de leite com chocolate do Lidl, tudo voltava ao seu lugar.
Tudo se recompunha, os dentes, por exemplo, voltavam ao sítio onde deviam estar, não onde nasceram, onde assentaram arraiais, mas sim, onde os mandaram estar, onde os puxaram durante dois anos e sete meses, o lugar perfeito, alinhado, mais ou menos simétrico, se não fosse um canino mais saliente, da sua faceta vampiresca, estragar o ramalhete.
Os amigos, os poucos que visitavam a sua casa centenária já sabiam isto, ela já nem avisava, largava o molde dos dentes pela casa, chamam-se goteiras de contenção, eram feitas em acrílico, nunca sabia onde os tinha largado. Era provável encontrar as suas mordidas superior e inferior no sofá, de cima da mesa de vidro, na cozinha. Imprevisível.
Estava quase a passar um ano. Um ano em que o marfim amarelado, manchado de nicotina, se tinha visto livre de uns piercings de titânio. Mas, durante o dia, os dentes mexiam-se, queriam voltar ao seu lugar (quem não quer?), onde foram felizes, e há noite tudo se recompunha, doía muito, arrastá-los de volta ao sítio perfeito, à casa decorada para a revista, e ela começava a desconfiar que teria que usar goteiras de contenção durante toda a sua vida, ou aceitar que há coisas na vida que não podem ser perfeitas.
6 comentários:
Só espero que esse pressentimento passe e não seja nada... Não quero que fiques triste quando mereces ser feliz...
começo a chegar á conclusão que as melhores coisas da vida não são perfeitas, que a perfeição é uma utopia, e que só somos felizes quando conseguirmos aceitar todas as imperfeições e viver com elas em paz...bom fim de semana, bjkas que corra tudo bem
A menina decida-se: Ou vai ou Lidle e é do proletariado? Ou põe ordem nos dentes e mete a casa na revista? E essa conversa do pijama é só para enxertar a perna à rã. Toda a gente sabe que o que é bom é roçar a penugem no lençol branco acabado de passar pela escrava do lar.
:) muito bom! (temos que fazer a tal sessão!) bjs
Todos temos de viver com as nossas qualidades e também com os nossos defeitos,não temos que viver escondidos só porque não gostamos de algo em nós.
A tua simplicidade a escrever é brilhante.Mais um post espectacular.
Beijinhos.
Gosto tanto de te ler, esse seu qintal tem sido um refúgio acolhedor e bonito que encontrei neste momento em que tudo me é estrangeiro.
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