domingo, fevereiro 12, 2006

Lamento

E a única coisa que me apetece dizer é que assim agonizo a escrever, arrasto-me, não arrepio ninguém, ainda se lembram como era antes? A outra, a que não é esta, eu sou a que se expõe gratuitamente, a que se recompõe a escrever, a que não manda nos dedos, a que tem as falanges, as falanginhas e as falangetas doridas, sou a da tendinite na mão direita, a que tem que usar uma tala quando a alma sangra demais para o teclado, e assim não é carne nem peixe, o dashboard está cheio de drafts, os inomináveis amontoam-se no closet ao pé das dezenas de sapatos, pendurados junto aos vestidos com decotes indecentes, os inomináveis expulsaram-me os fantasmas do armário, não cabiam todos lá dentro, e agora o que é que eu faço? Andam à solta, os fantasmas, e já não os posso mandar para o quintal da [T]ralha à velocidade de dez dedos frenéticos, e para quem acabou de chegar, para quem ainda não sabe, não há nada a esconder por este buraco da fechadura: este é o blog da Diana Ralha, jornalista, carteira profissional 81 81 (mudaram-me o número da carteira para um cinco mil e qualquer merda, mas eu serei sempre o 81 81), a Diana Ralha que não vai ser nunca ninguém na vida porque é desbocada, que pode escrever até muito bem como não se cansam de lhe dizer, mas que nunca há-de ter pachorra para escrever mais de dez páginas seguidas da sua lavra, e se é para ser assim, manca, cheia de cortes a lápis azul, mais vale escrever só para mim, lamento o egoísmo, é sempre para mim de qualquer forma, alimento-me disto, eu escrevo para me reiventar todas as noites, eu escrevo porque não durmo desde o Verão passado, escrevo porque enfiei a ridícula ideia na cabeça que vou escrever outra vez uma história de amor, que vou encontrar o meu blogue metade, mas também é verdade que eu só escrevo quando alguém me inspira, escrevo porque sou generosa, porque gosto de partilhar, e só me apetece dizer que o que mais me impressionou ontem foi a força dos elementos, o tronco do eucalipto por terra, a gaiola dos faisões esmagada, conhecia tão bem aquele eucalipto, plantado junto ao lago, ele mudava de casca todos os anos, quem me dera mudar de casca todos os anos como o eucalipto, quem me dera que a minha filha deixasse de absorver a aspereza do mundo pela epiderme; todas as noites, todas as manhãs, ensebo-lhe a pele com uma emulsão que cheira muito mal, que é muito gordurosa e peço a um Deus qualquer que me valha, que a livre desse mal, da pele áspera como lixa, que me dê a mim a pele de lagarto, que ela não merece, e debaixo daquele eucalipto eu brincava às peixeiras, fingia que as cascas eram bacalhaus, e fingia que eles eram microfones também, e cantava: "são tão bonitas as carvoeiras, são tão catitas as feiticeiras, ai que lindo rancho da mocidade, cantai raparigas, viva a liberdade", e ele tombou, e ele quis tombar, cansou-se, não quis morrer de pé, morreu deitado, e não visse eu sinais em toda a parte, o jardim meio desalinhado, a relva queimada do gelo, a ocupação ilegal dos gatos, o Zé Ralha como um trapo velho, o meu avô de arrastadeira, muito cansado, e o eucalipto fez muito bem em cair por cima da gaiola dos faisões, eu também não queria estar de pé, do alto dos meus dez ou quinze metros, não suportaria ter o local privilegiado, junto ao lago, para assistir ao fim do mundo como sempre o conheci.

9 comentários:

Anónimo disse...

E eu lamento que as orquideas mais bonitas precisem da tristeza para florir. Que este blog fique triste quando tens milhares de razões para sorrir. Lamento, mas continuarei a vir aqui, porque já não passo sem a minha dose diária de Ralha.

Anónimo disse...

Nossa mas que melancólica que eu estou. Arrebita, se não o fazes como é que os teus fãs te leem. Nem parece teu. Vá força e un grande beijinho da Anabela do Castelo

Maria disse...

E por ser esse o blog da Diana Ralha, dessa de hoje e das várias outras que existem, coexistem, o seu lamento tem dor, mas ecoa vida, e, por isso, arrepia, faz a alma vibrar junto.

Isa disse...

"nunca" dura tempo demais e nada dura para sempre. nem mesmo essa tua mania de achares que não vais escrever nada publicável. Na minha opinião, e não sei se te interessa mas dou-a na mesma, basta substituires o eu por um ela que a história passa a ser de outra pessoa qualquer que não tua. podes sempre dizer que não é a tua história. Na minha opinião, e n sei se a queres, há muita (t)ralha publicável por aqui.

um beijo enorme e força, que eu sei que tens. E tu tb sabes. A tua filha é prova disso mesmo.

Dia disse...

Benvinda, Maria, ontem andei à procura do seu primeiro comentário para lhe dar as boas vindas ao quintal, mas a Netcabo não me deixou.
E à Isa, espero que a viagem tenha sido boa, já cá fazias falta, moça.

MPR disse...

Fico dois dias sem cá vir e a (aparente) felicidade decorativa transforma-se em triste melancolia Ralha... Que se passou este fim-de-semana?

oldmirror disse...

Curioso que entre o cinco mil e qualquer merda e o dois mil e qualquer merda não há assim tanta diferença. Também eu nunca serei ninguém na vida...ainda bem!

Anónimo disse...

Lamento-te a perda do teu gigantesco companheiro de brincadeiras. Lamento essa e outras dores que te fustigaram enquanto deambulaste por aquele mágico espaço. Agora, há a mágia e a boagia. E a nostalgia é boagia! Por mais que por vezes sangre só me quero recordar das coisas boas por que passei. E foi o que te aconteceu. Porém, após teres colocado no pedestal da tua infância a coisas que deliciosamente te marcaram...
E é injusto, procuras sinais de decadência e encontra-los, pois! Na força das intempéries e no ciclo da natureza, mais a idade das pessoas que, tal como nós, vão quebrando e por fim envelhecem. A morte de um companheiro de brincadeiras é um assunto seriíssimo.
(Lá fui com o nosso irmão.) A mim, e antes mesmo de topar o eucalipto, perturbou-me a ausência de pinheiros e de pinhas pelo chão. A casa rodeia-se, agora, de alguns tocos ou falos encimados por vasos floridos e à escala. E depois vi o teu poderoso amigo tombado, poderoso e impressionante. Nem me lembrava dele (para mim aquela zona para lá do lago sempre foi meio off-limits). Já os pinheiros, por toda a parte, curtia-os bué. E gostei de ver o teu Avô... fiquei mesmo agradavelmente surprendido com o bom ar e sentido de humor que manifestou. Para já, está prácticamente na mesma onde a minha memória o tinha deixado à mais de 10 anos (???), e depois, parece-me que recuperou prodigiosamente deste precalço.
Bem, isto não será comentário que se apresente, ainda para mais à laia de apresentação, paciência.
Quedo-me, mas não tombo, e hei-de voltar.

Dia disse...

Benvindo, André. E amanhã conto contigo no jantar dos solteirinhos e bons rapazes e raparigas.