quinta-feira, fevereiro 16, 2006

O milagre de Santa Marta (com uma ode à minha mãe pelo meio)

Eu anotei tudo. Anotei tudo para não me esquecer.

A memória já não é o que era, e eu estou sentada no café mais horroroso que algum dia foi projectado na cidade de Lisboa, quando me apercebo que o disco rígido precisa de ser formatado, e olho à volta e isto é obra de autor, tenho a certeza, é demasiado mau para ter sido feito por um qualquer curioso, e falha-me a memória outra vez, ao meu lado está uma mulher e eu sei que a conheço, mas não sei de onde. Ainda assim, lembro-me que a menina sardenta que me traz a bica se chama Paula, recordo que trabalhava na defunta loja de brinquedos que há mais de dez anos é uma ervanária, vá lá, menos mal, deve ser da fealdade do café, fico tonta, anestesia-me os sentidos e venham as tascas, venham os azulejos de casa de banho nas paredes, é que aquele café é por demais pretensioso, é novo-rico, roubou as cores às abelhas, amarelo, preto, chama-se Polana, fica ao lado do Fruta Almeidas da Avenida de Roma, e agora bebo lá o café porque o Pingo Doce da Conde Sabugosa está fechado para obras. E levo a Magui e a Carolina ao Minipreço da Óscar Monteiro Torres, porque a Magui vai todos os dias ao supermercado. É que nunca se sabe, diz, a dispensa dava para alimentar um batalhão durante um mês, mas nunca se sabe se os dias difíceis voltarão. A minha mãe tem terror a senhas de racionamento, ela diz que ficou assim, armazenadora de comida, na ressaca do 25 do 4, e eu acredito, eu lembro-me quando não tínhamos nada para comer a não ser a pescada zero que a senhora Rosa enfiava no carrinho das compras e a minha mãe comprava dois quilos e a senhora Rosa colocava, em segredo, cinco quilos bem pesados. A senhora Rosa não sabe que eu me lembro disto, ela não sonha que eu reparo que ela tem as mãos deformadas pelas artroses; tem um coração de ouro, a minha peixeira favorita, com o avental preto cheio de escamas de peixe, a senhora Rosa ainda não sabe fazer as contas em euros, os preços estão em escudos, ela não sabe ler, não sabe escrever, sabe fazer contas e ponto final, e a vida tem-lhe sido madrasta e não é justo, um filho morreu estupidamente, a bebé que encontrou abandonada na rua cresceu e seguiu pelos maus caminhos, e eu vejo tudo isto nas ruas das rugas da cara da senhora Rosa, e eu nunca vou esquecer o que ela fez por nós, em silêncio, sem magoar, sem humilhar, sem fazer caridade, mas eu também sei que nunca mais vou conseguir gostar de pescada.

Anotei tudo na Moleskine enquanto o semáforo não ficava verde. Hoje não vou escrever sobre o milagre de Santa Marta, sobre o fogo que apaguei como as velas do bolo de aniversário, em forma de coração, que comprei para a sobremesa do jantar dos encalhados.



E até o bolo ganhou vida própria e o coração dentro do coração, pintado a corante cor-de-rosa, escorregou pela massa pão a baixo. Os cépticos diriam que escorregou com o calor humano da minha casa semi flambé. Eu digo que escorregou, que se desencaixou das setas do cupido, porque não queria ser o Judas deste jantar, é que a todos os meus convidados (excepto o penetra do Carlos, mano da Thê, o único dos corações que não está encalhado num qualquer cais) acontece isto que aconteceu ao bolo: sofremos todos de amores arraçados de enguias, quando os temos perto, quando achamos que eles estão na mão, esquecemo-nos de pôr aquela tela anti-derrapante que se põe por debaixo dos tapetes (eu varro os doidos para debaixo dos tapetes, gosto de tapetes voadores movidos a doidos varridos) e eles fogem como do Diabo da Cruz.
Não posso, não devo pensar no sussurro do anjo ao meu ouvido, sem alarme, sem pânico, uma voz muito doce, muito calma: "Perigo". Eu não posso escrever sobre a vela que derreteu, que queimou a gaiola pombalina da minha sala, eu nunca lidei bem com as expectativas dos mortais, quanto mais dos deuses ou dos anjos, eu não sei porque fui escolhida, porque é que não me deixaram ser manchete do Local Lisboa do Público, e eu não sei rezar, ainda assim, fui à igreja do Coração de Jesus, a igreja da minha rua, e cantei para a Santa Marta, cantei porque é o que faço melhor, cantei uma Ave Maria Guarani do Morricone no filme a Missão e só ela ouviu, não estava ninguém, só eu e não ousei acender nenhuma vela, pedi-lhe perdão pelas minhas ofensas, pelo umbiguismo, pedi-lhe para me explicar num sonho, sem pressa, um dia destes, porque é que fez um milagre, logo eu que não faço nada de mais pelo mundo, que compro sapatos de 300 euros, mas não, eu prometi e não vou dizer outra vez para dentro "E se eu não tivesse acordado com a claridade fluorescente das águas furtadas bolorentas dos meus vizinhos de leste do prédio da frente”. Não posso escrever sobre o devir, dou em maluca se me ponho nestas conjecturas, é um sinal, estou em paz, não devo ser assim tão má pessoa, os anjos não acordam más pessoas, não guiam más pessoas para apagar fogos mansinhos, e à mesma hora que eu acordei, a Magui acordou também, e amanhã, a minha mãe faz 56 anos, eu queria fazer-lhe um post de aniversário, mas eu não consigo, a minha mãe é a mais bonita e eu não consigo fazer nada tão bonito como ela, estamos no McDonalds com a Carolina e eu, a despropósito, apenas lhe digo isto: "Os deuses não te podem levar. Eu reclamo-lhes a tua eternidade", eu não sou ninguém sem a minha mãe, eu tremo de pensar que a história se repete, que a mãe da minha mãe morreu aos 60, tinha eu seis anos, e quando a Magui tiver 60, a Carolina tem seis anos; e eu sei que tinha nove meses e era o bebé mais deprimido à face da terra, não me mantinha sequer sentada, porque a Magui não podia gostar muito de mim, a tia Lena contou-me isto e não era nada que eu não suspeitasse, eu sei que não lhe salvei o casamento, eu sei que o Zé Ralha passou toda a gravidez a dizer-lhe aborta essa merda, eu sei que lhe atirei uma bota da tropa à cabeça quando tinha 14 anos, acabadinha de entrar na idade do armário, eu sei que lhe grito todos os dias, eu sei que ela muitas vezes só se mantém viva por minha causa, porque não estou criada, ela diz-me que um dia vai ter que partir, que tem muitas dores, que vive num mundo de dor, e eu faço um pacto, eu lanço-lhe um repto, eu não aceito de outra forma: "mamã, assombra-me todos os dias então". E ela alinha.
Eu trato a minha mãe por mamã, não tenho vergonha de a chamar mamã, e estive para lhe ligar às seis da manhã, a contar-lhe do fogo, das chamas que saíram do meu peito e foram passear até à sala e chamuscaram, ligeiramente, a madeira da gaiola pombalina, mas não a quis assustar, rezei à minha maneira à santa Marta, disse a lenga lenga do anjo da guarda como quem conta carneiros para adormecer, vi o dia nascer e li todo o a-manh-ser até às oito da manhã, reguei os amores perfeitos, se calhar fiz mal, porque os meus joelhos dizem-me, com uma dor fininha como uma agulha espetada na planta do pé, que vai chover, e isto lembra-me que não tirei a roupa da corda, e então, depois de três cigarros de enrolar seguidos, e isto está a perturbar-me um pouco, liguei para o que é (de)coração e eu tinha anotado para não me esquecer, e não estou a escrever nada do que tinha anotado e já nem me lembro quando foi a última vez que fiz um ponto final.

As unhas de rameira em repouso sobre a manete das mudanças, a Carolina com o frasco de amaciador Herbal Essences na mão pequenina, a dizer sim sim sim, bananas!, e eu não lhe disse nada, ela devora publicidade, ela já está lobotomizada pela publicidade, pegou no frasco e disse sim sim sim com voz orgásmica, e no Domingo saiu-se com uma que ainda me deixa zonza: viu uma imagem de Buda, e nós dissemos que o senhor gorducho se chamava Buda e ela replicou: Buda é Deus; e eu anotei as gémeas obesas, cada uma com um bebé recém-nascido ao colo, cada uma com um cigarro na mão direita, iguais em tudo, o mesmo corte de cabelo, os filhos da mesma idade, quem sabe, os cigarros da mesma marca. O letreiro na rua a apelar às feias: "Venha ficar mais gira com os acessórios cem por cento gira", o mupi do pasquim que me paga o salário com um ruivo com a cabeça aberta em forma de livro, e eu no trânsito, ainda em chamas: porque é que puseram um ruivo eslavo na publicidade Vê-se mesmo que não é português, que foi retirado de um banco de imagens manhoso, e eu sem saber porque se poupa nos pormenores, eu hoje vejo tudo, eu vejo tudo porque não quero pensar no fogo, no milagre de Santa Marta, porque eu não sei a quem agradecer, eu não sei como pagar o milagre, eu não posso ser freira, não tenho vocação, não sei porque fui escolhida e abençoada pela Santa da minha rua.

6 comentários:

Isa disse...

gosto muito do que escreve, já te tinha dito? Gosto da forma, gosto da maior parte do conteúdo, porque às vezes é demasiado pessoal e eu tenho a mania dos segredos, e gosto de todas as ideias.

Gosto do que escreves e pronto.

Bjs

Anónimo disse...

o meu blog favorito (a melhor escritora). muitas felicidades e que Santa Marta vele por ti e pela tua família sempre.
isabel t.

Anónimo disse...

Dia não penses mais nisso, senão empanas na casa dos "se...".
Já foste abençoada e muito e não deste por isso???
Queres coisa melhor do que a Carolina??? Não achas que é a melhor benção que Deus te pôs nos braços?? Não duvides e pensa nisto.
Muitos beijinhos do Castelo

MPR disse...

Foste porque precisavas de o ser, mesmo que não tenhas sido...

cvarao disse...

grande foto (e grande comp tb ;)

Fénix disse...

gostei