Revelação
Aos poucos, deixou de saber escrever em papel, na Moleskine que levava consigo para todo o lado, onde anotava coisas sem nexo, ideias, frases, jogos de palavras (amava as palavras porque elas brincavam consigo desde muito cedo) que surgiam sempre enquanto estava a conduzir o seu Idea imundo (e às vezes surgiam em andamento e não nos sinais encarnados e no caos do pára-arranca e ela não sabia como nunca tinha tido um acidente grave e como é que a caligrafia ficava sempre perceptível).
Descobriu isto à hora de almoço, na companhia de uma silenciosa tosta de tomate e Mozarella, maravilhada com a chuva que caía e que, à contra-luz, parecia neve (e imediatamente, bastava ler a palavra neve, não precisava jamais de a ver para se lembrar disto, viu a ponte sobre o Tejo e os vidros embaciados e os quadros a caírem pelas paredes abaixo com vergonha, com pudor, e suspirou alto, tão alto que o vizinho do lado, que também falava em silêncio com uma tosta mista surda-muda e um bule de chá da marca Bodum, reparou em si, provavelmente, apenas fixou que ela trazia vestida uma camisola transparente, que deixava a descoberto o seu soutien tamanho 32, mas, com o suspiro provocado pela neve que não era mais do que a chuva, bastou um suspiro sincero, e o vizinho saiu daquele transe autista e acordou, por um segundo, não mais do que um segundo, para depois voltar a adormecer sobre o chá).
No ecrã, ao teclado, escrevia com as duas mãos, e não apenas com a mão direita, como tinha que ser no papel e com a caneta. Por isso, e apenas por isso, porque trabalhavam duas escravas e não uma, trabalhavam horas demais, em dupla inseparável, laboravam dia e noite na árdua tarefa, sem passar recibos verdes, não estavam colectadas, não havia na lista de profissões liberais, os tradutores de inquietude, por isso, no teclado preto da Viriato, ou no outro branco, de Santa Marta, estava mais perto dela própria. Com as duas mãos não era a outra.
[Post escrito com a mão direita, no papel]
4 comentários:
Na minha moleskine tenho escrito projectos e ideias e memórias, que dividido por número de cena, interior ou exterior, dia ou noite, tal e qual um guião de cinema.
O último filme é de 25 de dezembro, por volta das dez da manhã. Foi a última vez que te vi. Beijo.
Traduzir inquietudes enquanto brinca com as palavras...grande e bela tarefa.E continue sempre brincando, você e as palavras se entendem muito bem!
Beijos.
Há ideias que não se podem perder...
e um livro sra Dia?!?
Ando a pensar nisso, meu querido sargento. Mas como tenho noção das minhas limitações, deixo essa ideia a marinar em fumeiro.
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