LSD. Reloaded.
Por momentos, não mais do que fracções de segundo, duvidei da minha sanidade mental.
Foi a primeira vez que duvidei a sério, as outras, tantas, que jurei a pés juntos, sem figas atrás das costas, ter andado num baldio cheio de urtigas a jogar à cabra cega com a loucura, essas, não chegaram sequer a fazer comichões; desta vez, ouvi o carrilhão de Mafra a sussurar-me um segredo ao ouvido, todo o corpo estremeceu, tive que parar a meio do corredor da roupa de bébé de um hipermercado (e não me parece certo que tenha sido num hipermercado; sempre imaginei a cena no sofá laranja, perto dos bonsai que morreram de tristeza - dois estão a ressuscitar, eu não desisto de nenhum dos três, a teimosia é uma dicotomia em mim, ora é qualidade, ora é defeito insuportável), sufoquei o telemóvel com a mão direita (a doente) instantaneamente gelada, levantei a sobrancelha direita, fechei os olhos depois disto, acho que o coração deixou de dar uma batidela que estava prevista no guião, mas, rapidamente, abri os olhos, deixei de ver tudo à roda e desatei a rir à gargalhada sozinha.
Nesse instante, senti a biqueira do novinho em folha sapato Pedro Garcia muito perto da tal linha que me farto de descrever. Hoje, a linha imaginária que separa aqueles que seguem com as suas vidinhas arrumadas dentro de um carrito versão base, sem extras alguns, adquirido através de um contrato de leasing a 36 meses, os que seguem nem depressa, nem devagar, a noventa quilómetros à hora à hora não mais, pelo Eixo Norte-Sul, que os separa dos que fazem, na berma, mausoléus a um Deus desconhecido, com galhos de roseiras, com cimento, tijolos e entulho dos condomínios de Telheiras - e no banco do pendura, sem cinto de segurança, seguia a minha Moleskine de reportagem, se é para fazer reportagem tem que ser em grande estilo, é como a história dos sapatos, é sempre em grande estilo que piso o chão imundo da minha cidade, e pensei deixar ali o carro com os quatro piscas ligados, pensei abordar o homem de cabelos e barbas enormes que construía ali o seu templo de oração, mas deixei-me ficar, não bulas com as pequenas coisas esquizofrénicas, por esta semana basta, tranca os fantasmas no closet, dorme, uma vez na vida, com a porta encostada, deixa o doido em paz, deixa o doido porque ele está mais perto de Deus do que algum dia estarás, anda, pé esquerdo na embraiagem, engata a primeira, um cheirinho de acelerador, deixa a Moleskine aos tombos no banco do pendura, vai lá comprar o que tens a comprar no Carrefour, segue sem olhar para trás -, hoje, aproximei-me demasiado da linha.
Senti a corrente eléctrica a serpentear-se por todos os cantinhos da mioleira como uma enguia, vi um clarão de electricidade que me chegou a cegar; num segundo, na sexagésima parte de um minuto, menos tempo que escrever a palavra tempo, todas as gavetas dos arquivadores da minha memória abriram-se com a violência dos espíritos zangados, entoaram um batuque frenético, e as folhas finas como papel de Bíblia do meu passado, guardadas em pastas de papel manetiga cor-de-rosa e verde, dançaram ao sabor de um vendaval.
Ligaram-me para o telemóvel. Que estive envolvida num acidente de automóvel, na madrugada de 17 de Novembro, na A8, junto à saída de Loures, que provoquei o acidente, que fiz sinais de luzes para ultrapassar um veículo e, ao desviar-se para a faixa de rodagem do meio, esse automóvel esbarrou-se contra outro. Que forneci voluntariamente os meus dados à polícia. À Brigada de Trânsito da GNR das Caldas da Rainha. Que preciso de prestar declarações aos peritos da Zurich e da Seguro Directo. Que estão à porta de minha casa.
Hiperventila.
Nunca fiz a A8 de madrugada. Não faço a A8 há não sei quantos meses. Nunca emprestei o meu carro. Nunca provoquei um acidente.
Hiperventila. Taquicárdia galopante.
Será que já fiz A8 de madrugada? Será que sou sonâmbula? Que deambulo de madrugada pelas bandas do Oeste? Será que já emprestei o meu carro? Será que, para além de prever neve, o Idea dos estofos laranja também tem piloto automático? Será que está cansado de fazer o trajecto Rua de Santa Marta Avenida dos Estados Unidos da América e à noite vai até aos estúdios da Endemol da Venda do Pinheiro? Será que está triste por estar quase a apagar as velas do segundo aniversário e o conta-quilómetros ainda esteja longe dos vinte mil? Será que vai namorar com algum Idea de estofos laranja para aqueles lados? Será que eu provoquei um acidente e não me lembro?
Vai à PSP. Declara que não estiveste na madrugada de 17 de Novembro na A8. Constata que a BT, tua vizinha, recebeu dezenas de bloqueadores de rodas, que os barrigudos enrolam os bigodinhos com prazer sádico depois de terem feito bondage aos pneus de todos os carros estacionados em cima do passeio.
Acalma-te. A linha, a imaginária, está longe, e os teus bonitos sapatos têm ainda muita sola para palmilhar caminhos até a pisarem com fimeza. Nunca ao de leve. Nunca num corredor de um hipermercado. Estas coisas só te acontecem para teres histórias para escrever.
4 comentários:
uhm... os sapatos? como são?
Hoje ou amanhã tiro fotos dos mais novos membros da família Ralha.
São lindos como a mãe.
os sapatos, este saiu tão bem. o bajulanço fez-lhe bem!
Mas que raio de história, tu tens com cada uma... É impressionante! Não há mais nada para acontecer? Safa!!! Mas assim sempre nos entretemos a ler... :)
P. S. - E lá marcharam mais duas tostas de queijo ao som das palavras da Dia... :) Grande beijinho!
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