quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Leilão

Vendo-me.
Um euro por história.
Quem dá mais?
A Anaïs já o fez, há umas boas dezenas de anos, em desespero de causa, escreveu contos eróticos a um dólar, eu devia aplicar a taxa de inflação, eu devia cobrar mais caro, não me devia vender a preço de saldo, mas eu vendo-me a qualquer preço se for preciso, e o investigador de Cambridge perguntou assim, no sábado do temporal, e a ideia surgiu nesse instante, e nada é por acaso, no dia seguinte, Domingo, esbarrei com os contos da Anaïs na Bertrand, ele perguntou: Estás na tua fase Nin, Dia?
E sim, acertou na mouche, é o seu espírito científico aguçado, muitas horas ao microscópio, vê-se ampliado depois de muitas horas ao microscópio, eu procuro o Henry, eu descobri a June, separei-a do Henry, aquele não era o nosso Henry; antigamente eu era pupila deste Henry de Cambridge, ele advertiu-me logo que não podia ser o meu Henry, porque não sabe escrever e diz, também, que eu passei a mestre, ele ensinou-me bem, a conta da Amazon chegou aos três dígitos, isto nos tempos em que eu gastava 150 euros por mês a encher a garrafeira dos jantares lá de casa, isto foi há muitos anos, eu era uma miúda, a sorte protege os audazes, ele encontrou a discípula perfeita do nada, no desaparecido ICQ, estávamos no ano 2000 da graça do Senhor, eu li tudo o que ele sugeriu, eu andei à cata de postais eróticos dos anos 20 para a sua colecção, estou perfeita, diz-me ele com o vento, a chuva e os trovões a concordarem.
Preciso de dinheiro.
Tenho filhos pequeninos e não os posso criar, e 150 euros de pensão de alimentos, ouvi, é mais do que suficiente para criar um filho, ouvi isto e ouvi mais: há belos pares de sapatos de criança a dez euros, ouvi isto sem acreditar, 150 euros não compravam sequer vinho de qualidade para os meus jantares de há seis anos atrás, no meu 11º andar sobre a cidade, ouvi isto com os punhos cerrados no Palácio meu vizinho, mas ouvi expressões magníficas, "paralelismo pedagógico", "projecto educativo", mas no meu cérebro, a ribombar, belos pares de sapatos a dez euros, eu fiz as contas, 150 euros chega para criar uma criança, eu ouvi isto e a mão ficou doente.
Passará, passará e nenhum há-de ficar, eu fico doida com estas lenga-lengas infantis: que mãe deixa um filho no bom barqueiro e ele até pode ser bom, não duvido que possa ser um velhote simpático, mas pode também ser um dos que comem criancinhas ao pequeno-almoço; e atirei o pau ao gato e ele não morreu? O que é isto? Joaninha voa, voa, que o teu pai foi a Lisboa com uma faquinha na mão para espetar no coração? O mar enrola na areia, ninguém sabe o que ele diz, bate na areia e desmaia porque se feliz. Até o mar é casado, até o mar tem filhinhos. É casado com a areia, os filhos são os peixinhos. Até o mar tem mulher, é casado com a areia, bate nela quando quer? Alguém me liga para a APAV rapidinho, por favor?
A minha filha ontem trauteou pela primeira vez o meu nocturno de Chopin favorito e eu não lhe ensino estas parvoíces dos gatos que não morrem à paulada. Ela gosta de rap, Da Weasel, “Toda a gente” e eu digo-lhe, filha, há mesmo uns quantos bacanos a mais, e quantos belos dentes partidos se podem comprar por dez euros? Acaba essa e passamos para a faixa nove e lá vamos nós as duas a dizer “está tanto frio lá fora, que eu não vejo a hora”. Adora Evanescence, “going under”, não diz quase nada, fala russo, fala a língua dos seus olhos azuis e do seu cabelo dourado, e depois canta com o Abrunhosa “Eu estou aqui”, na perfeição.
E eu preciso de dinheiro.

8 comentários:

Anónimo disse...

Boa!
Prepara-te minha querida pois a tua filha tem bom gosto. Também não admira, né??
Jokas do Castelo

MPR disse...

E eu tambem, e todos nós... e vales mais que um euro por conto, vales muito mais...

AMM disse...

comprar não compro. mas troco histórias e desabafos. gosto de te ler...assim....de graça...e pura

Anónimo disse...

Foi em Cambridge que eu li Anais Nin pela primeira vez, o Delta de Venus

Dia disse...

Será isso um sinal, Pigra?
António, aceito a permuta. Gostei muito do teu quintal, lavrado a dez mãos, gostei, sobretudo, das bolachas de manteiga na prateleira do cimo.

FTA disse...

Lindo, Diana. Estás a escrever muito outra vez. E muito, neste sentido, não é um qualificativo de quantidade...

Dia disse...

Não queres comprar uma história, FTA?

Telescópio disse...

Diana, Diana,
Que vendes tu, afinal?
Esse bambolear de anca,
esse mau génio matinal,
esse melodrama constante,
essa gargalhada fatal?

Não te vendas por pouco, amor, há palavras que valem milhões e outras que não rendem um chavo. Não vale a pena, né? E podes sempre praticar o desporto dos pobres [o Ben Harper explica].