Do ódio
Sou uma mulher atormentada.
Pelo cansaço, pelo medo, pelas demandas shakesperianas loucas em que me meti e cujo final será uma tragédia, de certeza, e não um "viveram felizes para todo o sempre". Pelo ódio, só tenho um e isso apurou o sentimento, tornei-me especialista, sou exemplar a odiar, gosto de ser a melhor em tudo o que me meto, sou fria e calculista, sou o melhor e o pior dos seres, não me deixem nunca comprar uma Beretta, não me dêem licença de porte de arma nesta vida nem na próxima, tirem-me da frente o antigo testamento que eu arranco um olho por um olho e um dente por um dente.
Lembro-me dos classificados falsos que plantei durante meses no jornal Ocasião: vende-se T3 Avenidas Novas, 120 mil euros, pela urgência e o número de telemóvel do meu ódio; ou potentes BMW por tuta e meia; e mensagens eróticas sugestivas impressas na mesma publicação semanal. Todos os anúncios gratuitos colocadas pela Internet, com caixas de correio electrónico inventadas para o efeito, submetidos nunca através do meu computador, mas em web cafés na outra ponta da cidade da minha casa (e nessa altura, eu soube que podia ser assassina profissional, que tinha tudo o que era necessário).
Torturas. Sou má. Lembro-me de colocar as Valquírias de Wagner aos altos berros, nos primeiros meses de 2004, às segundas, terças e sextas-feiras. E o Requiem de Mozart. De minutos antes das dez da manhã, descer um piso, até ao nono andar, e deixar a porta do elevador aberta e obrigar o meu único ódio a trepar dez patamares de escadas de mármore com pixagens revolucionárias dos meus inquilinos comunas, eternizadas há mais de trinta anos.
Tenho saudades daquelas escadas, são como a caixa de comentários deste blogue, aconteceram lá as coisas mais extraordinárias ao longo de toda a minha infância e adolescência, vivi num quartinho da empregada e nas escadas; vi ladrões e drogados, casais de namorados em cenas potencialmente siflíticas, tive pressentimentos e maus presságios que acabaram por se concretizar, mantive conversetas de café com Deus e com os anjos, porque a carrinha do colégio deixava-me à porta do 22 e depois tinha que esperar, uma, duas, três, sei lá quantas horas para que o Leonardo chegasse da Gago Coutinho; houve cantorias com voz de anjo que perdi para os maços de tabaco, pautas de Mozart e de Bach espalhadas nos degraus entre o primeiro e o rés-do-chão, uma flauta e uma guitarra clássica como única companhia na idade do armário, e nunca fui tão feliz como nessa altura, quando um dos melhores músicos de Portugal, que nasceu e cresceu naquelas escadas, me encontrou ali e julgou que quem cantava era uma das vozes do país, e eu tinha 14 anos, e os sonhos todos na mão, e mais tarde, tive 37 metros quadrados sobre os céus de Alvalade.
E do elevador. Do Hércules cansado. Tenho saudades dele. Às vezes, a viagem até ao décimo piso demorava horas, isto quando levava o cérebro perdido; outras, nem dava por conta da contagem crescente de andares, passava a barreira do som, tenho a certeza disto, e via a minha imagem reflectida no espelho que não existia há mais de vinte anos e que tinha sido pintado de negro pelo meu tio Zé.
7 comentários:
n acredito nem meio por cento que sejas má. n acredito, n acredito.
Olha! Já tá ali!... medooo tu... medoo
(obrigada pela música, vai ficar aberto a tarde toda)
acredita, acredita. É só cair-lhe no goto. E depois, como em tudo, é com requinte e sofisticação. Os ódios, para serem verdadeiros, merecem a dedicação que se se disponibiliza para o amor: total. Um Ódio, para ser à séria, tem de ser de estimação. Se não mais vale esquecer, é como o amor. Ou é à séria ou é para varrer. Não se tratando de algo tão forte como repulsa, o ódio não é ódio é desprezo. E isso compara-se às paixonetas. Ou entramos em escalada de conflito ou tornamos-nos a encontrar mais tarde, pois quem é vivo sempre aparece.
Ódio que se preze cultiva-se com detalhes (comó amor com benevolência) de malvadez deliciosos, nunca é tempo mal gasto ou perdido. [Penso em ti! nem bem nem mal, somento penso... em ti.]
Continuo mais tarde... vou almoçar "convosco"
muito bom o coment. (fiquei espantada)
um auto-retrato cheio de realismo :)
(e uma prosa muito bem escrita...)
Ai, maninho, somos mesmo família. Com cariz italiano.
dia, não consigo entrar na "tralha" a partir do meu posto de trabalho habitual. não consigo ler-te. tem a ver com uma estupida actualização do internet explorer que me impede agora de aceder a n sites e blogs. hoje consegui entrar por outro lado e estive a ler-te...e é bom. vi que me continuas a reler...em breve vais começar a ler-me novamente. muito obrigado por gostares. globalcom@iol.pt para saberes. a. c.
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