terça-feira, abril 11, 2006

[sem rumo]

Vai ser uma noite daquelas (e depois, nada de lamúrios, que nas fotos de há um ano atrás parecias bebé, que não tinhas olheiras e rugas nos olhos. Quem não dorme não mama?)

Sem tabaco, a dar as últimas passas no Davidoff que se extingue em direcção à vidraça aberta (é a única janela da casa que não foi substituída por alumínio asqueroso, tem vista para os quintais abarracados e para o gigantesco prédio da Duque de Loulé ao abandono).

Sexta-feira, o dia que marquei na agenda que não me levantava da cama. Os planos divinos, porém, eram outros, e telefone tocou às 09h16 (e, sabe-se lá como, chegámos lá abaixo ao Largo onde um andaluz perdeu as botas, pontualmente, à hora estipulada em acórdão do Tribunal).
Perco hora e meia da manhã no boteco vizinho, finalmente, a dona Beatriz explica-me a história dos jarros que estão ao balcão, elegantes e despojados como só os jarros sabem ser na natureza, mesmo que enfiados num boteco amarelado e dentro de uma jarra improvisada num garrafão de água de cinco litros degolado ao meio.
São as minhas flores favoritas. Acaso eu tivesse jeito para a coisa, para a fotografia, gostava de eternizar a Primavera num logradouro das traseiras dos prédios baixos da Estados Unidos da América: o jasmineiro trepa pela fachada acima, chega quase ao primeiro andar, tapando toda a janela da cozinha da porteira, e os jarros estendem-se como um tapete à porta da entrada. O Fiel gosta de lá mandar uma mijinha, mas eu contrario o seu ímpeto canino por mais que a Magui me queira convencer que a nicotina e a ureia fazem bem às flores, que matam os pulgões e outras pragas.
Os jarros da dona Beatriz estão ao balcão há quase quinze dias. Quando chegaram - e esta minha querida taberneira tem sempre cameleira rosa à porta do tasco, enfiada num balde de plástico verde; desconheço o porquê e a minha fixação na realidade não vai tão longe, já me basta ter que digerir tudo o resto, creio, que é superstição; da mesma forma que alguns comerciantes da avenida do Brasil colocam figuras de sapos à entrada dos seus estabelecimentos para os ciganos da rua das Murtas não ousarem pôr ali os seus pézinhos arruaceiros, da mesma forma que os namorados se beijam por debaixo do azevinho, da mesma forma que a Magui tem sempre um pezinho de arruda à porta e sempre que esta planta mágica murcha inexplicavelmente, ou lança um fedor que não se pode, a minha mãe diz: "Vem aí ramona, Diana..." -, eu gabei-lhos e ela chorou.
Mas o tasco estava cheio, dos habitués, o caro António José, imigrante brasileiro com um bom coração e braços disponíveis para ajudar a levar as minhas compras até a um quarto andar sem elevador, mas com um grave problema com o álcool; o senhor Sequeira, alfarrabista, a enrolar os seus cigarros com maior perícia e precisão que as máquinas industriais, diariamente calibradas pelos técnicos da Tabaqueira; os agentes da vizinha PJ com ar de agentes da PJ; e as duas velhas insuportáveis, que já me rotularam de mulher de má vida por ser mãe solteira (e a casa estava cheia, o boteco é muito pequeno, a casa estava a abarrotar).
Todas as vidas são interessantes. Acredito nisto com todo o ser, tal como apregoo que a sorte protege os audazes.
O António José traz sempre consigo as cartas que a mãe lhe envia e só vejo uma explicação para este cordão umbilical que estica até ao limite de um oceano: o colo e consolo são precisos nas situações mais curriqueiras do dia-a-dia; a senhora sua mãe, professora primária, envia-lhe livros de auto-ajuda tipo Paulo Coelho, que este, depois, empresta à dona Beatriz, e ela, por sua vez, lê-me as dedicatórias enternecida.
O senhor Sequeira gaba-se de ter sido um bon vivant, por agora, a sua única companhia é a cadela Carolina, uma rafeira gorda e mal disposta, os dois boca de sapo que estão estacionados na garagem cheia de livros, de vez em quando um filho, que é a sua cara escarrada e cuspida, e a banca de alfarrabista no Príncipe Real.
Desconheço a vida dos PJ's, é verdade, é um lapso, mas acho-os sinistros e geralmente, bloqueiam-me o Idea e é sempre um cabo dos trabalhos para sair de manhã.
As velhas são castiças. Uma é viúva, veste-se de preto da cabeça aos pés (eu aposto que usa cuecas brancas, porém, é uma abébia que dá a si própria) e a Carolina - a minha, não a cadela do senhor Sequeira - chama-lhe feia. A outra saiu directamente da montra de uma loja de horrores, pobrezinha, muito rouge nas bochechas e baton fora das fronteiras dos lábios, sobrancelhas esborratadas a lápis castanho. E cheira mal, pronto, disse-o (eu não sou uma boa pessoa; não estou aqui a tentar enganar ninguém), e quando chego já muito de noite, ela está à varanda e, invariavelmente, pede-me para confirmar se a porta do prédio está fechada (eu faço-lhe a vontade; não sou assim tão má como isso - a Thê diz que sou a única pessoa do mundo que diz bom dia e boa tarde aos portageiros e dá passou bem e bem haja; isto é porque eu estou mesmo convencida que não existe pior profissão no mundo do que portageiro).
Os jarros são de um morto. Do amor da vida da minha querida Beatriz, que já é uma espécie de avó adoptiva da Carolina, distribuindo barrinhas de Kinder todas as manhãs, que, depois, não me deixa pagar (e graças a Deus que não deixa mesmo, que os meus mil euros não davam para comprar um chocolate à loira todos os dias; pronto, estou outra vez a ser má).
O morto não chegou a recebê-los, à dona Beatriz resta-lhe a consolação de lhe ter ligado horas antes de ele partir. Não foi ao funeral. Dói-lhe muito. Mas não foi para evitar mexericos lá "na terra". A dona Beatriz é casada. Tem quatro filhos. Aquele foi um amor de criança. Tem um calendário com um gatinho, pregado na parede com um pionnaise, repleto de códigos que só ela sabe decifrar. Abre o cofre comigo. Explica-me a história toda, mas eu ainda estou zonza, não era suposto ter-me levantado hoje da cama, queria ter ficado de cama e, por isso, assimilo só um terço da tragédia.
Durante toda a sexta-feira não consigo articular frases completas. A amiga esquizo, que está sempre à janela mágica, lança-me o repto de ir almoçar ao Chiado. Vou sem hesitar. Fica mais tranquila à medida que a tosta de mozarella do almoço desaparece do prato. Diz que eu não estava a fazer sentido durante toda a manhã. Que ficou preocupada. É um anjo.
Há notícias para produzir pela tarde fora (até eu, que não queria trabalhar, tive que escrever para um buraco na página, tive que coser mantas de retalhos, e pior, esqueci-me de assinar uma peça, entre uma consulta de endocrinologista que diz que algo se passa com uma tiróide e 400 telefonemas, mas o registo de propriedade das notícias é algo que já não me rouba horas de sono, nem pensar, a história era só minha, é certo, mas as histórias são de quem as apanhar e, assim, menos problemas tenho eu com as colegas - está colegas de propósito, porque como diria o Cerejo, colegas são as p.... - que teimam divulgar entre si que ando a dormir com este ou com aquele e que, só assim, se justifica que, de vez em quando, tenha uns exclusivos).
Deixo-a à porta do seu jornal, assusto-a mais uma vez dizendo: "Vou apanhar o primeiro autocarro que me aparecer pela frente. Preciso de aventuras, de ver pessoas novas, e nada como andar nos transportes públicos para algo insólito acontecer".
Faço um grande desvio para passar na igreja das minhas preces urgentes e desesperadas (só o faço, naturalmente, porque estou de ténis, a minha fé abala em cima de saltos de sete a dez centímetros), acendo vela ao Expedito, à Teresinha e ao arcanjo são Miguel, faço mil preces, como sempre, acontecem fenómenos por debaixo da espada do meu santinho favorito (fica para outro post), compro raminhos à saída que, só mais tarde descubro, que são para benzer no Domingo que passou (compro-os porque cheiram bem, a alecrim), dou esmola ao romeno que se faz passar por atrapalhadinho (boazinha, sou boazinha, diz a velhota que vende os raminhos) e, depois sim, apanho o primeiro autocarro que me aparece. Deixa-me no Marquês, ainda por cima deixa-me perto do emprego, e nada de extraordinário acontece.

4 comentários:

Anónimo disse...

extraordinário: deaf areas. não chega?
word verification: ybkkplbu.

AnadoCastelo disse...

Lindo!

Anónimo disse...

olha que história tão bonita. Afinal basta saber deixar cair as palavrinhas .
Fazes isso como quem tricota.
que bem...

Dia disse...

Às vezes caem malhas, caro francisco.
Welcome to tralha show