sábado, abril 15, 2006

No mato, com tracção às quatro rodas

Uma criança. Hoje parecia uma criança a desembrulhar presentes com as bochechas muito rosadas (eu sei que sou filha da minha mãe e que a genética só se baralhou na paleta, trocando o branco leite da pele por um dourado, o azul dos olhos por um castanho escuro, e o loiro do cabelo por um castanho acobreado, quando com a comoção, qualquer que seja a comoção, me nasce um rubor trigueiro nas bochechas, que combina perfeitamente, com os pequenos cabelos muito frisados que nascem ao pé das orelhas).
Ainda não foi hoje que me levaram ao jardim da Estrela. O São Pedro não quis, entendeu por bem não me tirar dez anos de cada perna, disse que já estou crescidinha para me emprestar, ainda que por umas horas, poucas, o complexo de Peter Pan - mas o que lhe deu um gozo danado, ao santo, foi estragar o fim-de-semana prolongado a todos os que rumaram ao sul, à procura do enrubescimento da pele semelhante ao que me tinge a cara à mínima alegria, medo, amor e tristeza (e se eles soubessem como é fácil ficar com uma corzinha saudável...poupava-se um dinheirão em gasolina e portagens e os lucros da Brisa e da Galp caíam a pique).
Eu também rumei ao sul. Sem pretensões a achar um norte. E bingo!
Levei o quatro por quatro, o carro de casada, ao meu lado, um amigo recente, matinal e pontual (já gostava dele, mas a pontualidade às primeiras horas da manhã de um feriado espantou-me), cabeça luzidia e olhos verdes, e outro par de olhos verdes, de um outro verde, um pantone ainda não registado, é verde dor, olhos muito brilhantes, isto lá atrás, no banco de um Frontera que também era verde, muito escuro (e na bagageira, uma arca chinesa, a madeira finamente talhada com flores de ameixoeira, e não era meu o baú, mas gostei que viesse connosco, podia dar jeito para esconder um cadáver, para enterrar um tesouro, para enterrar os meus medos e as tristezas, já agora, para enterrar amores putrefactos da minha companheira de repérage).
Pela primeira vez, comigo atrás do volante, o tractor saiu do asfalto, chocalhou em lombas toscamente esculpidas pelas na terra batida, voou sobre areia, até andou sobre as águas de um rio (era uma poça de água, mas, para mim, era um rio, e ele sabia que para mim ia sempre saber-me a um rio, por isso, cedeu o lugar ao volante e disse-me para eu andar sobre as águas). E eu soltar guinchos de alegria, a perguntar em pânico, com as mãos no volante, cruzadas, sem saber onde as enfiar, e os pés a dançar o fandango entre o acelarador e a embraiagem: "E agora, Jo? E agora?", e ele: "Dá-lhe, dá-lhe, não traves", e eu: "Aiiiiii....."
Encontrámos campos de papoilas rodeadas de espigas verdes, tal como eu os imaginei num post mais abaixo (faltavam as marcejas...), dunas com acácias em flor, cardos azuis e fábricas abandonadas de seca de bacalhau.
Entrámos noutra dimensão, tenho a certeza que sim, na rodagem de um novo filme de Kusturica, quando avistámos um mar de gente enfiado no lodo à procura de minhocas (até a velha, com as rodas da sua cadeira e uma manta a tapar-lhe as pernas mortas, enfiada no lamaçal), quando nos cruzámos com um aglomerado da gente mais feia que se pariu em Portugal, a piquenicar no meio de cavalos brancos ao som de música cigana.
A vida anda lá fora, e eu nunca tinha partido assim, sem itinerário, pela terra batida e pelo mato a dentro. O Jo ensinou-me hoje que nunca, em caso algum, se pode pôr o pé no travão, ou na embraiagem; é sempre, sempre no acelerador. Isto no todo-o-terreno. Só que não é só no todo-o-terreno.
Afinal, sou uma personagem também.
E continuo sem ter ido ao jardim da Estrela.

3 comentários:

Anónimo disse...

Pintaste hoje o Tralha de cores garridas. Com gargalhadas e sorrisos. Sei que corro o risco de te desiludir, mas leio que tu também podes ser feliz. E a felicidade traz grandeza. Deixa lá as lágrimas para te aquecerem nos dias frios de Inverno. Até lá: VIVE sff.
H Sociedade Anónima

Goiaoia disse...

Ufa!, Fixe e altamentes. Passeia, desopila um pouco e volta com o espírito refeito, fresca e satisfeita, espirituosa criatura de sorriso lumiso.

Anónimo disse...

(faltou o ... mas... onde estão as rodas?)

foi tão bom!
T.