segunda-feira, abril 17, 2006

O efeito borboleta

Cruzamento da Estados Unidos da América com a Rio de Janeiro. Onze horas da manhã (há empregos cinco estrelas sem horas de entrada e de saída) e, do meu lado direito, o café mais manhoso do bairro, muito alumínio, muito neón e muitos espelhos e era ali que comíamos bitoques aos fins-de-semana, enfiados numa cave gordurosa (lembro-me de o Português Suave amarelo da Magui custar 107,50 escudos), isto quando os avós morreram em fila indiana e deixaram a Magui sozinha no mundo, com um emprego de secretária de direcção pago pelo escalão de estivador num armazém cash and carry perto do rio (quando não havia hipermercados ou a Makro, muito menos o MARL), doze horas de trabalho diário, três autocarros, almoço junto das gaivotas e dos contentores do Porto de Lisboa e, lá em casa, dois filhos pequenos para criar (foi há muitos anos, seguramente há mais de dez, que não entro naquele café).
Barreiras da Polícia Municipal a cercarem os motivos geométricos da calçada – a fachada do prédio que alberga o espelhado e pegajoso Brasiliamérica vai caindo aos pedaços, como uma mulher enraivecida que tenta bater a sua marca pessoal no lançamento de peças de roupa do marido infiel pela janela (e um lance de prédios abaixo, não há muito tempo, uma mulher acabou com o seu sofrimento e voou da janela do seu quarto andar para os pés de um choupo que não morreu de pé; e do outro lado da rua, mas há muitos, muitos mais anos, lembro-me disto ainda, a carrinha do colégio à minha espera e um corpo de uma rapariga largado num caixote do lixo).
O Toyota Yaris reluzente, matrícula deste mês de Abril, à minha frente e não avança, quer seguir em frente e eu quero cortar à direita, e suspiro e não há nada a fazer, não levo, sequer, a mão à buzina, ou o pai de todos ao manípulo dos máximos. Constato mais uma vez que aquela faixa é como as caixas de supermercado para grávidas, deficientes e acompanhantes de crianças de colo – há um magnetismo qualquer irracional, os carrinhos de compras são atraídos para essas caixas exclusivas como porcos às trufas, e as grávidas e os velhinhos de bengala vão para as outras caixas sem rezingar.
“Chico esperto”, diz a Magui, surpresa, eu diria atordoada com a minha estranha tolerância – a estrada, o asfalto, revela o pior que há em mim. “Deixa estar, mamã, se calhar é porque tem que ser assim, dez, quinze segundos podem mudar a minha vida, sabes que já passou tanto tempo desde o acidente na Avenida da Liberdade, mas ainda hoje eu penso nesta coisa dos segundos. Se eu não tivesse deixado a Catarina na Rua da Rosa, se não me tivesse demorado a despedir (estávamos naquela fase, a mais bonita das relações, em que não nos largávamos um minuto, ela ligava-me todas as manhãs, eu tenho saudades disso, mas não é um lamento, é nostalgia, é uma lembrança), se o carro da polícia não tivesse tido dificuldade em estacionar na Praça da Alegria, se eu tivesse ido pelo Rato como sempre fazia, se, se, se… não teria chocado de frente com o Mercedes, na Avenida da Liberdade. Tu é que me disseste para eu nunca pensar nisto, que dava em louca, deixa estar o chico esperto, dez segundos fazem toda a diferença, se calhar tenho que ficar aqui parada, se calhar, foi um anjo que colocou o Yaris acabado de sair do stand à minha frente”.


Como é que é a metáfora da borboleta? Devia ter o Google instalado no meu cérebro (e como é que o corrector ortográfico do Word desconhece a palavra Google? Assim se vê a tirania despótica da Microsoft…). Hoje – já era hoje, já passavam já quase duas horas do dia de hoje –, o companheiro acidental das noites sem fim,

(os dias passaram a ter mais horas, agora eu sei que é isso, não são insónias: os dias estão maiores, tinham mesmo que estar maiores, não me chegam as 24 horas – é que, pelo menos, oito são a trabalhar, outras oito deviam ser a dormir e, depois, restam outras oito e não me chega, tu nem imaginas quanto tempo demora um post a nascer e não sei que pontuação pôr agora aqui, já abusei dos travessões e dos dois pontos, vai um ponto e vírgula, perdoem os que gostam das coisas certinhas; um dia, imprimo-te a (t)ralha e dou-ta para leres nas noites em que não consegues dormir, nem 1000 mg de Codeína com Paracetamol a correrem na corrente sanguínea, gostava de saber se gostas ou se, como sempre, dirias uma coisa menos simpática como quando os vizinhos te gabam a minha beleza e tu dizes que todas as catraias da minha idade são bonitas)

o visitante 50.000 (coisas extraordinárias acontecem neste blogue escuro, caramba), perguntou-me como se chamam “aquelas coisas que prendem as passadeiras aos degraus da escada” (e antes, eu tinha-lhe perguntado por umas amêndoas de caramelo, tipo meteoritos – ontem não me lembrei desta comparação, não soube dizer a que se assemelhavam as amêndoas que o meu avô guardava num armário que tinha puxadores de esfinges faraónicas) e eu não sabia, e ele descobriu no Google Blog Search que se chamam “tranglas”.
O efeito borboleta, a teoria do caos, não quero espreitar à Wikipédia, este blogue não é erudito (por acaso está a ser escrito ao som de música erudita, mas pára por aí a erudição), não pretende ser tese de doutoramento ou aparecer citado na imprensa ou nos blogues da primeira divisão. Este é um blogue para consumo da casa, daí estar exposto à frente dos olhos de quem o quiser ver, mas uma plaquinha escrita à mão e sem nenhuma pontuação, informa que é reservado o direito de admissão, e que é prejudicial o seu consumo a menores de 16 anos. Uma borboleta bate as asas do outro lado do mundo e, nos seus antípodas, um tufão deixa tudo em pantanas. Acho que é isto.
Não me saem as borboletas da cabeça. Tomara as tivesse no estômago. Outro dia, com o codificado girassol, disse-lhe que tinha borboletas no estômago, quando queria mesmo dizer que tinha traças. Ele explicou que eram coisas distintas. Traças igual a fome. Borboletas igual a amor. Tenho as duas. Tenho fome de amor.
O homem que manda libelinhas amestradas à minha casa-de-banho laranja dorme com crisálidas camaleónicas no seu quarto. As pessoas esquecem-se que a borboleta um dia foi lagarta. Que, depois, de comer muitas couves (nunca sintam nojo das lagartas das couves, são de certeza, a promessa de duas asas delicadas), amua e decide-se fechar em copas na couraça da crisálida. Eu não me esqueço. Nunca dormi com crisálidas presas aos armários. Mas à noite, quando metade da madrugada já passou, sem fazer estremecer o silêncio da sala do sofá laranja, adormeço com a visão de casulos quebrados e asas coloridas a baterem num quarto às seis e vinte da manhã, a anunciarem uma doce Primavera.

[A foto foi tirada no dia da libelinha. Estava com propensão aos seres alados nesse dia. A borboleta nocturna pousou-me na mão e para a Leica e depois morreu]

4 comentários:

Goiaoia disse...

Que lindo! O efeito borboleta, ...que prisma. Altamente e grande óptica. Tranglas, ahn? gosto da palavra. é das minhas. Foi o avô que a descobriu na net?

Dia disse...

Eu não sei quem é o 50.000. Mas não é meu avô. Tinha um treco o avô Ralha se lesse a Tralha.
Tranglas soa a trafuncas, de facto.
Ai maninho, boa noite.

Isa disse...

"Não me saem as borboletas da cabeça. Tomara as tivesse no estômago. Outro dia, com o codificado girassol, disse-lhe que tinha borboletas no estômago, quando queria mesmo dizer que tinha traças. Ele explicou que eram coisas distintas. Traças igual a fome. Borboletas igual a amor. Tenho as duas. Tenho fome de amor."

mulher, tás cada dia melhor. cada dia melhor. e n queiras fazer parte da primeira divisão, que se fodam, são uma seca! isto sim, dá gosto, mto gosto ler. bjs mil

CDS: vai ver o tigre e a neve do Benigni. é obrigatório!

Anónimo disse...

A ISA adiantou-se-me. Eu tb ia citar esse parágrafo. Brilhante. Acho que o vou imprimir e colar no meu computador, junto à frase que fotocopiei do teu, ainda trabalhavas na Qta do Lambert. Era da publicidade de lançamento do Yaris e conta assim: "Na minha opinião, o que conta é aquilo que está dentro. Mas é fácil para mim dizer isso... EU SOU DESLUMBRANTE."
Tu és deslumbrante. Por dentro e quando deitas para fora as traças e borboletas que guardas no estômago!