sexta-feira, abril 07, 2006

Migalhas

[Escrito nas madrugadas de oito e nove de Abril. Para quem é bacalhau não basta]

Ele não sabe. Não tinha que saber. Isto é uma migalha.
Noutra vida fui uma formiga, não a rainha, que fica deitadinha a desovar e a ser servida pelas escravas, fui uma igual a tantas outras, as que carregam o mundo às costas, as que fazem peregrinações de quilómetros em busca da santa migalha.
Sou cão farejador, sou porco viciado em trufas, sou detective profissional com investigações com dignidade em todo o país (a César o que é de César: este é o slogan do detective Correia, um Sherlock português que anuncia no PÚBLICO desde a sua fundação; vêem? isto é uma migalha), sou grão-a-grão enche a galinha o papo. Uma migalha achada no palheiro é o quanto baste para mim, é a minha droga, a diferença entre um dia bom e um dia mau.
Em Santa Marta, há migalhas no closet. A minha filha Carolina deixa cair pedaçinhos de bolacha Maria quando estamos de saída, a vestir os casacos, sempre atrasadas para não sei o quê. A loira gosta, também, de esconder os Little People e as surpresas da Kinder no cesto da roupa suja (e acabo de descobrir, porque são três da manhã e a fome apertava, que os snacks dessa marca que imortalizou o Ambrósio têm 8,5 por cento de licor de laranja; estou em transe, ando a dar sopas de cavalo cansado à minha filha e eu a pensar que isto era bom, que tinha mais leite que cacau). As formigas percorrem os trinta metros quadrados da cozinha e dois passitos do hall (podem ir pela sala, mas creio que o caminho é mais longo e as formigas, pelo que sei, até da minha vida passada, não são nada parvas) para recolher a esmola que o anjo loiro deixa na assoalhada onde descansam as minhas dezenas de pés sobressalentes.
Eu sou assim. Junto migalhas para os Invernos frios frios do meu ser. Noutra vida fui uma formiga, mas tenho sempre as portas abertas para as cigarras. A minha vida só faz sentido com elas aqui ao lado, a cantarem-me baladas pela madrugada fora, a comerem da minha comida, a esvaziarem a despensa e o frigorífico, a dormirem na minha cama, em cima dos lençóis de linho branco, bordados pelas mãos cor-de-rosa da minha mãe.
Ele não sabe. Isto é uma migalha, não tinha que saber. Foi o primeiro a escancarar a caixa de correio electrónico desta tralha. Sou capaz até de arriscar a data da sua carta de apresentação - aposto 20 de Novembro de 2005. Dizia qualquer coisa como isto: Por entre as tuas tralhas em pantanas nunca digo nada. Hoje decidi dizer. Leio-te. (Amanhã, confirmo as datas e a fidelidade das suas palavras, quando não me doer a mão e os olhos estiverem menos raiados de sangue, e se acertar em tudo, dou-me por contente, hoje joguei no Euromilhões, amanhã pode ser o meu dia de sorte. Ou é na sexta-feira o sorteio?)
Foi o melhor acordar de há muito tempo. Tem sido um Inverno muito rigoroso. Neva em Lisboa todas as semanas. Tenho recaídas, flutuações de humor que me preocupam, sei que nunca estive tão louca. Hoje não queria acordar. Não ia acordar. O outro ia ficar lá em baixo, no Largo de Andaluz à espera, indeterminadamente. Eventualmente, ficaria preocupado, tentaria telefonar para perceber o atraso. Eu não atenderia o telefone à primeira. Nem à segunda. Talvez à terceira o atendesse para lhe dizer que o despertador não tinha tocado. Era mentira. O despertador tocou à hora certa e eu desliguei-o e não me levantei.
O telefone tocou. Eu pensei que já passava da hora, que era o outro, o das terças e sextas, lá em baixo irrequieto. Teria visto o meu automóvel, ficaria preocupado. Eu pensei em tudo quando o despertador tocou e o desliguei e voltei a dormir (tinha acabado de adormecer; o dia já era dia e eu ainda deambulava pela casa). Teria visto o meu carro sim. Ele também foi formiga. Das más. Das marabuntas. Ele sabe datas em que eu disse "tenho medo, vem aí mais um Ralha", tem tudo na ponta da língua, processa as migalhas no seus sete estômagos e torna-as ácidas e corrosivas, vomita-as e queima quem aparecer pela frente, não partilha absolutamente nada com cigarras, nem pensar, as migalhas junta-as como peças de puzzle para ferir alguém.
O telefone tocou e eu decidi olhar para o visor. 09h16. Número privado. Não era a outra formiga, então, a hora decretada pelo juiz é às 10 (esperarei por ti com os maxilares cerrados). Tinha dormido apenas 45 minutos desde o cantar de galo do telemóvel que silenciei.
Não atendo números privados. Tinha decidido que hoje não ia sair da cama - mandava um holograma à cozinha preparar o biberon da Carolina quando, eventualmente, ela despertasse; o mesmo fantasma estava incumbido de colocar no DVD cinco ou seis episódios do Noddy. Tinha pensado em tudo. Não atendo números privados, hoje nem pelo meu anjo consigo sair da cama, não atendo, não atendo... Atendo. Sem saber porquê, atendo.
O silêncio. Soube logo que era ele, escusava de se ter dito que se chamava David, eu soube logo. Diálogo de loucos, eu respondo-lhe a tudo de olhos fechados, destapada pelos lençóis que arranquei da cama, nas poucas horas que o corpo descansou no colchão e que, no entanto, me brindaram com pesadelos suficientes para um mês.
Pronunciou uma das minhas palavras favoritas, "picuinhas", ele não sabe nada disto, não sabe que eu acho que não mereço estar fotografada no melhor blogue de Portugal - e o amanh'ser não é um blogue sequer, é um território à parte, é beleza pura onde eu me refugio quando não consigo dormir; e, de um lado da cidade, ele fotografava o tralha, e no outro, eu visitava as fotos que têm uma luz mágica e ouvia o Cold Water.
Ele não sabe que só me levantei porque o telefone tocou às 09h16.

6 comentários:

Isa disse...

e ele sabe que este post tá demais? bjs

Anónimo disse...

el zandem aí

Dia disse...

Elz andem aí sim, querido mi. As cigarras. Cantam de madrugada, cantam em dias de chuva.
Obrigada Isa. Pelas tuas visitas madrugadoras.

Catarina disse...

Sabes Dia, leio dia sim, dia não, porque as tuas palavras magoam-me, sufocam-me e preciso de algumas horas para recuperar.
Consigo sentir-te o sofrimento e não me saí da cabeça a imagem de que choras com a mão a abafar-te as lágrimas.

A expresão "brutalmente belo" é a única que encontro para descrever os teus caracteres.

Anónimo disse...

senti-me tão pequenina. tão pequenina a ler-te.

Dia disse...

Não ganhei o euro milhões. Ele escreveu o primeiro email no dia 2 de Novembro e não a 20. O texto sim, é quase como o que eu escrevi.
Quanto às minhas meninas Lady e Lyra, peço desculpa. Eu não queria transmitir sofrimento. A sério que não queria. E, por isso, acho que hoje não vou escrever.
word verification mto apropriado: mesick