terça-feira, agosto 23, 2005

As tradições

Um dia de Inverno, estava já muito grávida, com mais de 25 quilos empilhados em equilíbrio instável sobre os meus joelhos - nunca mais foram os mesmos; já não eram certos, mas nunca mais foram os mesmos depois das 37 semanas e picos em que tive um hóspede dentro de mim -, na barriga já tinha desaguado, de um dia para o outro, um rio de estrias brancas, os pés e as mãos estavam quase grotescos, muito inchados, tive que deixar de usar saltos altos, apenas cabiam ténis nos pés; anéis só o de platina e diamantes que o avô Oliveira deu à Magui, o anel que eu levei no dia em que entrei para a maternidade, levei-o para ele me proteger, um dia conto-te, blog, como eu estava cheia de medo no dia em que entrei pelas urgências do Particular, 25 semanas de gravidez, a Carolina inviável, pequena demais para nascer, mas a querer nascer na mesma, com medo de não ser amada pela tempestade que provocou nas nossas vidas, com medo de ser um impeçilho, com medo de ser usada como bala de canhão, mas eu, muito teimosa - "não vais nascer agora, não podes nascer agora, filha", eu ainda sem saber que era uma menina, mas a chamar-lhe Carolina há muito tempo, e doze semanas depois, o silêncio do meu quarto privativo em véspera de ela me chegar; conto-te, se tiveres paciência, porque ainda hoje me custa a recordar esse dia, como no início da tarde seguinte, soaram sirenes agudas na sala de partos, da máquina onde estavam ligados os eléctrodos que eu tinha colados à barriga; conto-te como o coração da Carolina começou a parar, e a enfermeira de cabelos encarnados a cantar-me uma canção bonita, enquanto outra gritava "chamem o doutor Moniz", e uma tentava desligar o zumbido da máquina - e no monitor 160 batidas, depois 110, depois 90, deixei de olhar nas 60; fechei os olhos, caiu-me uma lágrima pela bocehcha abaixo e pensei que te perdia no antigo dia da mãe, 8 de Dezembro -, a dos cabelos encarnados a rapar-me em andamento, a caminho do bloco operatório. Conto-te tudo isto, noutro dia. Hoje quero-te falar de tradições.
Um dia de Inverno, estava muito grávida, entrei na loja chinesa das traseiras da avenida de Roma, e vi uma nossa senhora de neon, linda, do mais kitsch que há. Tive que a trazer comigo. Já me moía de remorsos de não ter comprado um poster gigante de um ardente coração de Jesus, tive que a levar para casa.
O Natal estava à porta, mandei embrulhar. Numa das muitas noites de silêncio na minha casa pequenina, pus-me a pensar a quem podia oferecer o sagrado coração de Maria. Uma única pessoa reunia os requisitos de loucura essenciais para receber um quadro religioso de neón - o Ricardo.
Eu fui a culpada. Começou tudo com o sagrado coração de Maria. Agora, nos anos e no Natal oferecemo-nos as coisas mais impensáveis. Amor com amor se paga. Até a minha filha já foi metida ao barulho. No seu primeiro aniversário, o Ricardo ofereceu-lhe cuecas do Benfica. No Natal, eu recebi a biografia do Papa; ele uns copos de leite com vacas doidas. Nos anos, para pagar o golpe baixo do Papa dei-lhe a biografia de um franciscano, Vítor Melícias no seu melhor, com lindas fotos do senhor padre, e um CD (ainda não entregue) do apresentador da TVI Rui Vasco Neto. Ele trouxe-me da Irlanda um poster enorme de um belo jardim florido para pendurar na Martinha que eu, inadvertidamente, deixei nos correios, momentos depois de o receber (imperdoável). O mais louco é que alguém gostou e o levou. Também me trouxe um naperon para eu pôr em cima da televisão.

Amo esta tradição, Ric. Não vai parar nunca. E estou mesmo mesmo triste de ter perdido o poster. Daqui a uns dez anos fazemos uma exposição, uma monográfica de toda a tralha louca que oferecemos um ao outro.

5 comentários:

Anónimo disse...

Tou um bocado triste de teres perdido o poster. Afinal, ele percorreu a pé 100 qms de Irlanda, para chegar a Portugal e oferecer-se aos teus braços. Esquecido e roubado, triste sina...
Tinha sido tão selectivo a escolher o pior de todos, de entre uma lista de imagens kitsch de uma loja de souvenirs em Dublin. Alguém ficou com ele.
Quem terá sido a pessoa com o péssimo gosto de roubar um poster tão feio? Bem, que lhe faça bom proveito.
Para o Natal, ofereço-te um galo de Barcelos. Ao menos é fácil de encontrar outro, em caso de perda, dano ou extravio.
A tradição continua.
R

Anónimo disse...
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Anónimo disse...
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Anónimo disse...
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Teresa disse...

Espero ardentemente que o RVN, que é do meu grupo do Liceu, nunca leia este post... :)