Sem nome 2
Teimosa.
Se há traço vincado da minha perturbada e inconstante (nunca inconsciente) personalidade é ser teimosa que nem uma mula.
Post sem nome, desapareceste? Porquê e como? Não queres dizer? Não queres reclamar um chorudo resgate? Deixar-me debaixo da porta um bilhetinho escrito, talvez com ameaças à minha integridade física, escrito com letras recortadas de um jornal?
Pois, post sem nome (terás ficado chateado comigo por eu não te ter dado um nome? não sabes que eu tenho um imbróglio judicial por causa de nomes, de apelidos, por ser teimosa que nem uma mula???), eu não te vou dar esse gostinho, podes armar-te em fugitivo de Alcatraz, mas eu reescrevo-te, meto-te atrás das grades da (T)ralha de novo. Teimosa. Não sabias, quando eu te dei vida, que era teimosa?
Não hás-de ficar igual - memória de longa duração é coisa que eu tenho pouco, as doenças degenerativas do sistema nervoso central são o pão nosso de cada dia da minha família, e eu ando gágá; ando gágá desde a anestesia da cesariana da Carolina, ando gágá, por defesa, desde pequenina, porque não vale a pena recordar certas coisas, apaga-se e já está, segue-se em frente - o que não me mata apenas me torna mais forte (ai, os provérbios, que saudade, o mail da guerra dos provérbios é tão pesado que o Gmail se recusa a abri-lo).
Não hás-de ficar igual, porque os posts têm vida própria - não me canso de dizer isto -, por isso é que eu gosto tanto de escrever: gosto de escrever porque sei que há quem me leia - as visitas dos meus leitores às tantas da matina só me fazem querer escrever mais, assim como os pageloads dos madrugadores, aqueles que começam o dia com as minhas paranóias, penso que são vocês, senhores leitores, os responsáveis pelas minhas insónias e produção frenética neste quintal.
Gosto de escrever porque os esqueletos saem do armário, gosto de escrever porque é o que sei fazer melhor na vida (minto: há outra coisa que eu faço melhor, mas adiante), gosto de escrever porque aqui presto homenagem às pessoas que me tocam, aquelas que gostam de mim incondicionalmente, com muitas falhas e algumas virtudes.
O Mário diz que o que eu gosto mesmo é dos holofotes por cima, mas não é bem isso, é uma relação de interdependência, e era uma ideia mesmo bonita, esta minha, esta que me passa agora pela cabeça, que alguém se pudesse apaixonar por mim só pelo que eu escrevo e eu nem tenho um nariz tão grande e tão feio como o do Cyrano, era uma ideia mesmo bonita.
Post sem nome, as linhas produzidas para este blog têm material genético irreprodutível e incorruptível, são imunes a qualquer manipulação, por isso, vais sair diferente.
Vamos lá descobrir as diferenças:
O esquentador continua em greve de chama. Junta-se-lhe os candeeiros bonitos que eu comprei na loja sueca da moda e que continuam a não cumprir a sua função de alumiadores das minhas noites; junta-se-lhe a torneira do lavatório que eu ainda não fui (nem irei, certamente) trocar; junta-se-lhe as molduras que eu tentei pendurar sem sucesso, esburacando sem dó nem piedade as paredes do hall; junta-se-lhes os dois últimos caixotes por desempacotar que jazem, zombies, no meio da cozinha e junta-se-lhes os quadros do Zé Ralha e do meu querido tio José Oliveira (gosto mais dos teus, Zé, e a Carolina também; quando tinha semanas de vida, só se acalmava a olhar para aquela senhora com olhos em bico, tipo Modigliani, pintada em eléctricas cores primárias), hirtos, no chão brilhante de tábua corrida, encostados à parede branca, cansadíssimos de estarem à espera em pé.
O esquentador continua em greve de chama e a casa-de-banho amarelinha da Magui transformou-se no meu balneário privativo.
A Magui não tem uma banheira, tem um Rolls Royce. Imoral é o que me apraz comentar sobre o preço da cabine de hidromassagem que a mim me lembra sempre a cápsula de mutação genética do filme "A Mosca", com o Jeff Golblum.
Mas ela merece. Merece os jactos de água que lhe aliviam as dores nas costas e eu agradeço a sauna e o banho turco que ela nunca usa.
Hoje caguei para a poupança de água, caguei porque li na recém-defunta Capital que até hoje nunca nenhum incendiário foi preso em Portugal (eu sei que isto não tem nada a ver, bom, até tem, poupança de água, seca, incêndios, mas o que eu queria mesmo provar com estas linhas é que este é um país de merda), assim como caguei para a reciclagem no dia em que vi um camião a despejar indiferenciadamente o conteúdo dos ecopontos que os otários dos conscenciosos cidadãos se deram ao trabalho de encher com os seus lixitos meticulosamente separados.
Caguei para os litros e litros de água que desperdiçei, porque a cabine de hidromassagem da Magui é, para mim, um local de reflexão, de grandes ideias, onde muitos dos posts deste quintal nascem, e, foda-se, o que é que se diz?
A inspiração aquática não veio.
Estava a ensopar uma toalha turca com os meus enormes cabelos e a trunfa, mesmo assim, a respingar o chão da casa-de-banho, quando a Magui me viu a chorar. A Magui deve saber.
Ela já perdeu vários amigos, deve saber o que é que se diz. A minha mãe é a mais linda, sabe tudo, arranja tudo, decerto que se já tivesse criado coragem para subir os degraus do calvário que levam até à porta da Martinha, o malfadado esquentador já estava a funcionar.
A Magui deve saber o que é que se diz. Ela chora o Filipe todos os Natais e todos os dias 23 de Julho.
O Filipe foi o grande amor da vida dela. Foi como na canção do Vinicius:
Porque foste na vida
A última esperança
Encontrar-te me fez criança
Porque já eras meu
sem eu saber sequer
Porque és o meu homem
e eu tua mulher
Porque tu me chegaste
sem me dizeres que vinhas
E tuas mãos foram minhas
com calma
Porque foste em minh'alma
Como um amanhecer
Porque foste o que tinha de ser
E o Filipe era um anjo. Tudo teria sido diferente se ela tivesse aceite casar com aquele puto inconsciente, neto de um grande escritor português: a Magui teria sido mais feliz, eu teria tido um pai genial e saberia escrever muito melhor, porque ele contava muitas histórias, tinha uma imaginação louca, mas nenhuma pachorra para as transpôr para o papel. Ele tinha tanto para nos ensinar...
O Filipe lá em casa, a fazer truques de magia, sentado nos sofás que um dia foram laranja e que nessa altura estavam forrados a preto, a fulminar-me com ataques de cócegas, a andar comigo pela casa toda às cavalitas, o Filipe em Viseu, no Montebranco, comigo no Parque, com bigode, sem ele, magro, muito gordo, o Filipe acabadinho de chegar da América, a falar de flores, a falar de cocaína, o Filipe comigo ao colo, na cozinha, o chão amarelo e os armários azuis cobalto, o Filipe: "Casa comigo, Guida!"
A Magui não ficava fodida quando ele lhe chamava Guida, ela detesta Guida, mas o Filipe era inimputável, o Filipe dizia as coisas com meiguisse e charme, vindo da sua boca, podia chamar-lhe Pafúncia que ela não se importava e eu juro que soaria bem, e nós os dois, eu e o Filipe em suspenso, eu a dar-lhe beijinhos, e a Magui nada.
"O que é que se diz, mãmã?"
Não se diz nada. Empresta-se o ombro para chorar e ouve-se as recordações que nos têm para contar".
Esta é para o KAos.
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