Alfredo
O Alfedro é o cachorro que está a morrer de tristeza.
Peculiar, esta rua onde eu moro, onde um cachorro se recusa a comer em protesto por ter sido abandonado e uma mulher chupadinha, a meio dos seus trinta anos, dentadura perfeita e branca, de nome Mafalda, veste apenas roupão de turco azul cueca entreaberto, sem mais nada por baixo e explica-me, entre lágrimas de um desepero de quem está prestes a carimbar o passaporte com da vassoura dos doidos varridos, --"Sabes, há determinados limites que nós pomos em causa a nossa sanidade mental".
É a única coisa com lógica que me diz, a Carolina está a dormir dentro do Idea, e o Alfredo vem-me cumprimentar, tento convencê-la a ir para casa, que está frio, mas ela quer tabaco, o Alfredo quer festas, e eu andei a fumar pontas de cigarros Português Suave, não tenho nicotina para a confortar e, enquanto a obrigo a fechar o roupão - "Ainda se constipa, Mafalda" -, não por mim, choca-me a magreza da mulher e o corpo cheio de nódoas negras, mas não é por mim, sinto-me até mais seguro por ter uma louca a guardar a rua, mas os vizinhos estão todos à janela a ver o espectáculo da loucura e ela mostra-me os braços, diz-me que não se droga, eu acredito e o Alfredo ao meu lado, preocupado com a Mafalda, irrequieto e eu matuto, enquanto consolo a doida: levo-te ou não para casa, Alfredo?
Andava meia triste (eu ando sempre triste, aliás, não é novidade). De vez em quando acontece algo que me abre o portão do mundo (o portão do mundo é de ferro forjado trabalhado, com pavões e libelinhas arte-nova) e me dá mais do que eu imaginava ser possível numa só vida. Mas são sempre ilusões, são ilusões bonitas, mas são isso mesmo - bolinhas de sabão irisadas que desaparecem quando as vamos a agarrar.
No final dos meus dias, tudo se resume a uma janela de um programa de chat do Bill Gates e as aventuras de um candidato autárquico, com um terrível problema na pele, pelos bairros mais miseráveis e feios da capital (hoje foi a excepção, porém. Passeámos, aquecidos por um sol que estrelou os meus ombros, entre Belém e a Expo, entre pastéis de nata, quentinhos e estaladiços, polvilhados com canela e açúcar).
E, pronto, como há muito tempo que não acontecia nada digno de registo, eis-me a debater o sentido da vida com uma louca semi-nua, ao mesmo tempo que passo a mão no pelo sedoso de um cão ruivinho, com olhos de Bambi, isto muito perto da meia-noite, instantes antes de eu me transformar em abóbora (ou vampira?).
Confortei a louca, trouxe o cão para casa.
No dia em que eu vos contei, pela primeira vez, a triste história do Alfredo, de ele estar lá em baixo a definhar decepção e melancolia, o cãozito estava mais para lá do que para cá, deitado sem reacção no meio da estrada, com moscas-abutres a avisarem que por ali andava a morte.
"Não te deixo morrer à minha porta", pensava eu enquanto fazia um esforço enorme para levantar o alfredo-vegetal e colocá-lo dentro da bagageira do Idea. O vizinho taberneiro ajudou e todos concordámos que o Alfredo é um lindo cão. Todos concordámos, eu, o taberneiro e os três espectadores da esplanada, que ele só se pode chamar Alfredo (pronuncia-se com sotaque mafioso siciliano)
Decidi levar o cão moribundo ao veterinário. Mas ele ressuscitou, apenas por alguém se ter negado a deixá-lo ali no asfalto, ao Deus dará.
O Alfredo acordou de um coma nessa manhã e pela primeira vez aceitou comida, um quilo de carne picada que a Magui comprou e comeu, também, umas bolachas Maria que eu tinha no carro.
O Alfredo já não comia há muito tempo. Estava em greve de fome. Nesse dia, o Alfredo subiu à Martinha (nunca imaginei que no seu estado de debilidade conseguisse escalar os quatro andares a pique) - um vizinho deixou a porta aberta e ele seguiu-me o rasto até cá acima. Esteve pouco mais de cinco minutos e acho que gostou.
Desde então, tem vindo todos os dias cá acima. Devora latas de salsichas, esvazia-me a dispensa e o congelador. Se eu lhe levo a comida lá abaixo, olha-me com tristeza e suspira. Só come lá em cima, na Martinha. Depois deita-se no hall e dorme uma soneca. Custa-me levá-lo de novo para a rua, depois de lhe servir o jantar.
Mas a tal da dona Prudência, que me tem chateado os cornos todas as noites, adverte: Ralha, não tens vida para ter um cão. As gatas não aguentaram e eram duas. Se tivesses passarocos, decerto se afogariam nos bebouros, de tristeza e solidão; os hamsters teriam ataques cardíacos de tanto correrem na roda com o stress; os peixes suicidar-se-iam saltando para fora do aquário - a puta da Prudência diz-me isto ao ouvido e eu fico triste e desconsolada: "Será que ninguém me atura mesmo?"
O Alfredo está a dormir na sala de jantar e é mesmo um cão muito bonito. Esta noite dorme cá. Vamos lá ver como se porta.
(Portou-se muito bem. A Carolina acordou, viu o "ão ão" no mesmo sítio em que o deixei quando escrevi aquelas linhas e deu-lhe muitos beijinhos na foçinheira - carinhos que ele retribuiu com umas lambidelas que a fizeram rir à gargalhada. Combinei com o Alfredo que vou ser, por enquanto, sua dona em "time-sharing", a Martinha aceitou ser o abrigo nocturno de um cão bonito até eu tomar uma decisão definitiva - a Martinha já tinha servido de asilo nocturno, há coisa de dois meses e picos, e diz que nasceu para ser uma instituição particular de segurança social)
2 comentários:
O Alfredo é um cao lindissimo, com uma manchinha bonita na "testa" :) O alfredo anda triste porque a sua futura dona nao toma "a" decisão.
Mas o alfredo tem uma boa advogada de defesa!
Se eu fosse o Alfredo, também ia querer passar und dias no quentinho. E vem aí o inverno....
Eu vou deixar o meu blog em stand by, (vou para Londres uns anos...), mas de vez em quando venho aqui espreitar. Quando quiseres ir a lonfres, tu e a Carolina teem onde ficar. Até breve.
Ana
Enviar um comentário