terça-feira, setembro 13, 2005

Os dias - um apanhado sem inspiração

A puta da inspiração foi-se.
Foi-se com os trágicos acontecimentos. Eu já o avisei: vou culpá-lo durante largos meses, por todos os males do mundo e, em particular, do que vai menos bem na minha vida.
É culpado pelo estado crítico da azálea, pois claro, e pela recaída dos olmos da China (sabes, Astride, ainda bem que não me ofereceste o plátano nos meus anos; as folhas deviam estar agora a ficar vermelhas, do Outono que bate à porta, e o plátano morreria de tristeza, era o primeiro a definhar, aposto, porque há uma semana morreu um amor debaixo de um plátano - um amor platónico).
É culpado pelas minhas noites brancas de insónia, pelas unhas e peles roídas do dedo "pai de todos" da mão direita; tem culpas no cartório nas borbulhas irritantes que me nascem na cara; mas naquilo em que o veredicto é inequívoco - guilty of all charges - é de me ter sugado toda a inspiração. Não sobrou nada. Ficou tudo em pantanas.
Não escrevo nada de jeito desde então. Sento-me horas em frente ao computador, aqui, no sofá laranja, de pernas cruzadas, a ouvir o estendal da vizinha de baixo dar gritinhos fininhos de dor, por uma gotinha de óleo lubrificante, e não sai nada.
E os dias têm sido diferentes, em campanha eleitoral, tenho levado um banho de "gente ordinária e suja", como dizia o Álvaro de Campos,

[Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,
Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
E cujas filhas aos oito anos - e eu acho isto belo e amo-o! -
Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.
Maravilhosamente gente humana que vive como os cães
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi feita,
Nenhuma arte criada,
Nenhuma política destinada para eles!
Como eu vos amo a todos, porque sois assim,
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,
Inatingíveis por todos os progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!]



mas não sai nada - o heterónimo do Pessoa já disse tudo por mim, há muitos anos atrás.

Os dias têm sido cheios, tenho falado com o chulo literário estupurado (gosto muito desse comment) todos os dias, como se nada tivesse mudado, digo-lhe às vezes coisas lindas, outras assustadoras, faço-o rir a bandeiras despregadas, mesmo quando ele está impossível de se aturar.
Os dias têm sido bons para mim e agora mesmo bebi leite com groselha, e se fosse há uma semana atrás, eu contava-vos uma história grande e bonita sobre o leite com groselha, falar-vos-ia, provavelmente, também de capilé e grenardine, mas hoje não vai sair nada de jeito, não iria honrar a história, não seria nenhum daqueles posts que se lêem duas vezes seguidas de tão bem escritos que estão.
Os dias têm sido perturbadores, e ontem de madrugada, fui buscar a Carolina a casa da minha mãe, vinda de um jantar de pré-campanha eleitoral, e na porta de vidro do prédio da Magui estavam impressos os corpos e asas abertas de dois pombos que se espatifaram a grande velocidade na porta daquele prédio da Avenida EUA.
Eu pensei que estava a alucinar, juro que pensei, esfreguei os olhos, lembro-me de dizer em voz alta "isto são só manchas de gordura de algum inquilino porco, não são as silhuetas de dois pombos de asas abertas, estás cansada e com sono, é só isso...", o coração a bater alto e rápido e eu a pensar que era ali o momento, estava a passar para o outro lado, e cheguei lá acima em pânico, com medo de estar a enlouquecer, disse à Magui o que tinha visto no vidro, mas ela pensou que eu estava bêbeda ou drogada, não me ligou, não percebeu a minha angústia, limitou-se a disparar que eu sou uma má mãe, que ponho o trabalho à frente da família.
E eu mandei-a para o caralho, agarrei na Carolina e fui para a Martinha, sem saber se eram mesmo os desenhos dos pombos no vidro da porta do prédio, ou se eu estava a ver coisas, se já estava carimbada no meu passaporte a entrada no reino da demência (o carimbo é uma vassoura porque os doidos são varridos), mas hoje ainda lá estam (tento fotografar amanhã) as impressões corporais dos dois bichos, e a Magui, que confirma a minha "visão", ainda tem uma versão mais sinistra: diz que foi alguém que apanhou um pombo morto e o andou a mandar aos vidros da nossa porta. É que é mesmo uma imagem assustadora de tão bem impressa, parece um sudário em versão columbófila, ou um teste psiquiátrico do Rocharch (aqueles dos borrões de tinta negros; neste caso seria borrão de gordura em vidro).
O chulo roubou-me a alegria, roubou-me a inspiração, e este post é só para marcar o ponto, para não perder o jeito, para não perder leitores. É que os escritores não escrevem só quando estão inspirados, têm que se obrigar a isso, levar a prosa como uma profissão (oito horas por dia, durante cinco dias por semana, no mínimo).
Vamos lá ver se isto passa depressa. Espero bem que sim.

3 comentários:

Anónimo disse...

A boa notícia é que não devem ser pombos mortos. Dificilmente poderia haver aquele efeito das asas todas abertas. Tirei uma foto com o telemóvel para mostrar a toda a gente. Merece ser visto enquanto metáfora do desespero columbófilo.

L

Dia disse...

Eu tentei fotografar hoje com a Leiquinha, mas não saiu nada de jeito. Manda-me a foto!

Mary Lamb disse...

Sempre que o amor é platónico, dói muito menos. Beijos muito grandes