terça-feira, setembro 06, 2005

Lençóis

[é demasiado bom para não ser publicado, lamento, deixaste de ter exclusividade. Com a devida censura, aqui fica]

Deixa-me contar-te o que eu descobri em três horas de meditação profunda, com um ferro de engomar na mão direita e uma pilha de lençóis interminável à minha esquerda.
Quando estou puta da vida, quando algo me atormenta, me tira horas de sono, me persegue todo o dia sem eu desejar, não há nada que me traga mais paz do que passar lençóis a ferro (há outras alternativas mais prazeirosas que me sossegam a alma também, não fiques a achar que eu sou louca, que já passei a ténue linha de que eu falo no post dos loucos).
Lençóis. Não é camisas nem calças. Só aqueles enormes pedaços de tecido, que no meu caso, são sempre brancos e bordados à mão pela minha querida mãezinha, quando a ensinaram a ser uma boa esposa e fada do lar, nos vários colégios internos de freiras católicas que ela frequentou e de onde foi, inevitavelmente expulsa, de todos eles, sem excepção (um dia conto-te, a ti, ou ao blog, as tropelias da Magui).
Sossega-me mesmo muito passar o ferro a escaldar e a bufar vapor de água nos vincos e vê-los a desaparecer como que por magia.
Quando eu era pequenita e tinha aquele ar doce doce e meiguinho da foto que está no blog, já me tranquilizava ver a minha avó Tóia a passar a ferro catrefadas de lençóis. A avó Tóia tinha uma máquina, uma coisa industrial, gigante, dois cilindros que amachucavam os panos onde nós descansamos os corpos cansados, uma geringonça que montava no meio da sala e onde passava tardes inteiras, sentada, a deitar abaixo pilhas e pilhas de lençóis (eram, sobretudo, de flanela e tinham uns padrões muito seventies; recordo-me de ir aos armazéns do Conde Barão de Viseu comprar lençóis e cobertores, foi nesse armazém, no último Verão da minha avó Tóia, que eu aprendi que cor era o beige e o bordeaux - e vou trancar aqui o fantasma do Natal passado, porque já me estou a lembrar de uns mocassins lindos que ela me comprou nesse dia, com berloques, eram o número 33, que memória a minha...).

A Magui não se cansou de me chamar de tonta: "Está um dia tão bonito lá fora, vai passear com a Carolina, vai comer uma Conchanata com quatro bolas de gelado de nata, como tu gostas, à avenida da Igreja, por debaixo da vinha virgem da esplanada da geladaria, filha, ontem estiveste a trabalhar até às tantas, porque não vais sair um pouco?"
E eu: "Mami querida, preciso de matutar numa coisa, deixa-me em paz com os meus lençóis, que eu preciso de saber o que quero do meu chulo literário, sabes, mãezinha, não há melhor remédio que lençóis enrodilhados para todas as respostas surgirem a meio de um vinco que deixou de ser..."
E ela, transtornada pela minha veia de fada do lar - a Magui criou-me burguesinha, não quer que as minhas mãos tenham calos da esfregona como as dela, sabe que tenho unhas frágeis, incompatíveis com esfregões -, tentou chamar-me à razão, lembrando-me: "Tu pagas à empresa para te passar a ferro...." E eu, imparável: "Não faz mal, na pior das hipóteses fico com crédito de peças para Outubro".
E lá a calei quando lhe disse que, assim que a meditação sobre o meu amor literário, induzida pelo calor do vapor acabasse, limpava o aquário - promessa que já vinha de há quase seis meses.

Primeiro lençol, o meu favorito: flores bordadas a linha de seda castanha, crivos, bainhas abertas (que bem que a minha mãe borda): "O que é que eu quero dele?". Dobra em dois, passa de um lado, do outro, insiste nos vincos mais rebeldes, vapor no máximo, e nada... Dobra em quatro, passa o ferro para acachapar o tecido, vai para o tabuleiro. As fronhas que eu mancho com o rímel das pestanas que esqueço de tirar à noite antes de me ir deitar, passadas em dois tempos, tabuleiro com elas também.
Segundo jogo de lençóis, da Carolina, verde fluorescente, rapidinhos de passar: "Passar um bom bocado? Fuck Buddy? Nã...". Dobra, vira, revira, vão lá para cima dos outros.
Mais uns da Magui, bordados com margaridas a cinzento clarinho: “Quero que seja meu namorado?”. Vapor no máximo, enche o depósito que já não tem água, “Talvez, mas não é bem isto”. Dobra em dois, e noutros dois e mais dois. Já está.
Próximo: rendas de bilros aplicadas em linho tecido pela minha bisavó Carolina - meu Deus, as coisas que a minha mãe sabe fazer: bilros... -, penso quanto valerá um lençol daqueles, é incalculável, para mim: “Eu quero intimidade. Quero saber quantas formas de rir ele tem, quero saber como ele é quando está rabugento, se tem bom ou mau acordar, quero saber o mapa do seu corpo de cor, quero entrar na sua cabeça e saber o que é ele tem “penado” sobre nós, quero falar de banalidades ao almoço, quero saber que o irrita, ao jantar, quero beijar cada centímetro quadrado da sua pele, quero senti-lo dentro de mim".

Quero muita coisa e não sei se mas podes dar.
Intimidade. Estes mails são intimidade. Pode haver intimidade assim. E se não sabes escrever, se não queres escrever, se não podes estar comigo (e eu percebo isso e não estou a pressionar, caralho!) dá-me algo, faz um boneco, diz um disparate qualquer, arranja cinco minutos, inventa, surpreende-me, porque se eu te dou o meu melhor, tu tens que me pagar com a mesma moeda. E, assim, eu saberei que conto na tua vida. Caso contrário, não vale a pena

Bom dia, querido, desculpa o lençol sobre os lençóis.

[Horas depois levava uma tampa por escrito. Tinha mesmo que ser por escrito.]

3 comentários:

Anónimo disse...

Chulo literário estupurado: Deixa a minha amiga em paz! Se não sabes bem o que queres, não envolvas terceiros ao barulho! E D., tu não precisas do teu chulo literário. Aposto que no stat counter encontras muito mais gente que todos os dias passa por aqui.

Mary Lamb disse...

Ainda ontem estive na esplanada da Av. da Igreja, e tentei comer uma rocha. Mas era tão má, que preferi ir passar lençóis a ferro.
Ana

Anónimo disse...

"“Eu quero intimidade. Quero saber quantas formas de rir ele tem, quero saber como ele é quando está rabugento, se tem bom ou mau acordar, quero saber o mapa do seu corpo de cor, quero entrar na sua cabeça e saber o que é ele tem “penado” sobre nós, quero falar de banalidades ao almoço, quero saber que o irrita, ao jantar, quero beijar cada centímetro quadrado da sua pele, quero senti-lo dentro de mim"." Do melhor que já li... e esse post do sex?