segunda-feira, setembro 05, 2005

Luto

[Post retocado na manhã de terça-feira, porque, caros, isto de escrever posts a chorar, para além de dar terçolhos monumentais - são dez e quarenta da manhã e eu já ouvi do taberneiro, do taxista e da segurança que estou com mau aspecto, que nem pareço eu - não dá grande resultado]

O fenómeno está bem documentado e ensinou-mo o professor charmoso de Teorias Sociais e Comunicação, no primeiro ano da faculdade.

O corte de cabelo é um dos sinais exteriores de luto mais poderosos de todo o mundo, desde que o tal do mundo se lembra de ser gente.

Tranças
(Estas são as minhas tranças de luto, aos 14 e aos 19 anos)

Os elementos da tribo guarani Bororo, pela ocasião de luto por um parente próximo, cortam os cabelos e deixam crescê-los ao deus (está sem minúscula, porque eu estou muito zangada hoje) dará, durante todo o tempo que dura aquela tristeza auto-inflingida. Os cabelos extirpados são entregues a um representante do defunto que, por sua vez, os dá a uma irmã sua, que tem como missão passá-los a um cunhado, para ele os fiar numa corda. Esta corda pode ser usada como coroa, pelo tal representante do defunto, mas, para tal, uma onça tem que morrer sacrificada. Enquanto os índios não arranjam a onça pintada, podem usar a corda feita de cabelos como pulseira, no antebraço esquerdo.

Os também brasucas Kadiwéu recebem um nome quando nascem e vão acumulando outros tantos aquando das mortes dos seus parentes mais próximos. Durante os ritos funerários, cortam os cabelos negros - aquele que corta o cabelo em sinal de luto é chamado okojege -, mas há uma consolação para o enlutado careca nesta tribo índia: quem perde um parente próximo pode adoptar uma outra pessoa para preencher o lugar do morto, independentemente da idade, do sexo e do grau, ou mesmo da existência de parentesco - o conceito de família desfuncional ser-lhes-à conhecido?

Em África, o culto do cabelo ganha uma dimensão quase sobre-natural.
No século XV, a escravatura é o último grito da moda da humanidade, e os Wolof, Mende, Mandingo e Iorubás são apenas algumas das tribos profundamente "capilares" trazidas para o "Novo Mundo".
O cabelo dessa gente, que vai ser subjugada durante séculos a fio, fala sozinho, é uma linguagem complexa e que poucos sabem traduzir: indica o estado civil, a origem geográfica, a idade, a religião, a posição hierárquica, a riqueza. Enfim, em algumas dessas sociedades, os apelidos podem, inclusive, descobrir-se pelo cabelo (aos Ralhas pode-se fazer o mesmo exercício; eu, porém, não tenho cabelo de Ralha).

Nos Mende, da Serra Leoa, uma mulher só é considerada atraente se tiver uma farta cabeleira.
Andar com o cabelo em desalinho ou sujo é sinal de demência ou imoralidade para esta tribo e, também, para os Wolof, do Senegal (filhinha loira e sempre despenteada, ainda bem que nasceste em Portugal...), que, à partida nunca cortam o cabelo, apenas quando morre um ente querido. Na Nigéria, uma mulher com o cabelo despenteado é porque está de luto.


Cabelo

No filme da minha vida, a Binoche perde o namorado, perde a melhor amiga, está prestes a perder o paciente, convence-se de que é uma maldição para todos os que se aproximam de si [" Imust be a curse. Anybody who loves me, anybody who gets close to me... I must be cursed. Wich is it?] e o que é que faz? Corta as longas melenas à tesourada, numa janela de uma vila italiana abandonada.
É das cenas mais bonitas de todo o filme, que tem, ainda uma outra alusiva à problemática capilar, quando o Kip (o personagem do Ondaatje mais esquartilhado pelo Minguella), desenrola o seu turbante sikh para lavar o monstruoso cabelo. A Hanna leva-lhe azeite, ele não sabe o que fazer com o óleo da oliveira, ela explica-lhe que é para o cabelo, que fica mais bonito, e desabafa, com tristeza, que ainda há pouco tempo tinha assim o cabelo, enorme, como o dele.

Adiante...
O luto é uma prática universal que se baseia na exteriorização da tristeza. Através de abdicações.
Algumas, poucas, mulheres, abdicam de cortar os seus cabelos e deixam-nos crescer, desmesuradamente, em sinal de luto - é o caso da Magui e daquelas velhinhas deliciosas com tranças à Frida Kahlo. Mas a grande maioria adbica do seu cabelo para dar de comer à tristeza. Façam o exercício comigo: quantas mulheres de meia-idade conhecem com cabelos compridos? Muito poucas, não é?

Olha bem para a foto (da Diana Quintela). O meu cabelo hoje estava bem mais bonito. E sossega, não o vou cortar, gosto demasiado dele para o juntar às mechas de tristeza que estão na foto lá de cima.
Mas estou de luto sim.

3 comentários:

Anónimo disse...

Há que pensar se a pessoa que te fez estar de luto, merece que sofras assim. Só devemos "lutar" pelos que de facto merecem o nosso amor, a nossa entrega.

Dia disse...

Sem reparar, inventei um verbo: "esquartilhar", um híbrido entre esquartejar e espartilhar...

:-)

Anónimo disse...

"Ce n'est pas obligatoirement une mauvaise nouvelle que le corbeau t'apporte"...
...às vezes é preciso fechar uma porta para que outras se possam abrir...