terça-feira, janeiro 31, 2006

Esquizofrenia das coisas pequenas (II)

Chamava-lhe a esquizofrenia das coisas pequenas.
Era um estranho conceito, os cépticos não acreditavam na esquizofrenia das pequenas coisas. Nem reparavam.
Ela explicava assim: "É quando os astros se alinham: Vénus entra em triangulação com Júpiter e Saturno e fica tudo em pantanas, há sangue, há suor e há lágrimas em doses cavalares; é quando o tempo pára aos nossos pés e as mais básicas leis da física apanham um vírus terrível que as corrompe, que as perverte; é uma viagem de ácidos de todos os elementos da natureza ao mesmo tempo".
Era o melhor que podia e sabia explicar. Era pouco, sabia, assim ficavam na mesma, isto era muito vago, podia ser qualquer coisa.
Mas ela não estava interessada em prender o conceito numa folha e registá-lo na Sociedade Portuguesa de Autores, nem tão pouco almejava que entrasse nos registos virtuais da Wikipedia, muito menos daria entrada da patente no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Era, mais uma vez, uma tese louca só sua.
E perseguia-a há muitos anos.
Desde que, uma manhã, estava na casa de banho grande de Viseu - e era mesmo grande, era maior que a sala onde está, neste momento, a tentar explicar o que é isto da esquizofrenia das coisas pequenas -, o seu avô Oliveira tinha tirado os dentes de molho num copo de vidro, o sabonete Patti, da Ach Brito, descansava na cerâmica do lavatório, um pincel de barba espalhava espuma branca na cara do seu avô velhinho, e no chão de mármore, muito frio, surgiaram, do nada, os mais loucos desenhos, ela ficou hipnotizada com os veios da pedra, deixou-se levar por um exercício de imaginação idêntico ao que os sonhadores fazem a olhar as nuvens do céu. Começara nesse instante, na casa-de-banho grande de Viseu, a esquizofrenia das coisas pequenas.
Era disto que falava, daquilo que se estava a passar, neste preciso instante, no chão de tábua corrida de uma casa de quatro assoalhadas na Rua de Santa Marta: o pequeno aquecedor, que estava a um canto a bufar ar quente, como a chofagem do Idea, na viagem de retorno a casa da noite passada, fazia rodopiar, aos seus pés, dois balões, um azul turqueza e um cor-de-rosa, numa dança de roda louca e frenética.
Encantava-se com estas coisas.
Com a vizinha do prédio da frente, todas as santas manhãs a comer maçãs à janela, de lenço verde à cabeça - começava a desconfiar que a vizinha tinha um cancro, que estava a fazer quimioterapia; de um dia para o outro deixou de lhe ver o cabelo grisalho, muito curto, mas farfalhudo, para a ver de lenço verde à cabeça.
Com o lugar de estacionamento à porta do seu prédio, que a aguardava, inquieto, noite após noite, fiel, e não era só o demónio do estacionamento que a esperava de braços abertos. As pequenas coisas tinham enormes braços, aceitavam-na tal e qual como era, cheia de defeitos, com algumas virtudes fluorescentes e raras, viviam apenas para a afagar.
Era o vizinho que chegava na mota de competição, ao mesmo minuto que ela - devia ficar escondido à esquina, à espera de ver surgir, do Largo das Palmeiras, o Idea dos estofos laranja; só assim se explicava que o encontrasse todas as noites e da esquizofrenia doentia dos encontros nocturnos, nascia uma rotina, já esboçavam sorrisos e desejavam-se mutuamente uma boa noite.
Não a largavam, as pequenas coisas esquizofrénicas. Era o leitor 33.333, que a tinha ajudado, madrugada fora, sem a conhecer de lado nenhum, a escrever o texto do Bairro da Liberdade; era as cinco horas que passaram no Princípe Real a esvaziar as memórias das suas famílias disfuncionais debaixo de uma Ficus muito velha, que já viu de tudo nesta vida, que guarda memórias nas suas gigantes raízes aéreas (era ele aparecer na outra janela do computador, mal ela tinha acabado de escrever esta frase).
Era o homem decorativo que a acordava às cinco da manhã, com um telefonema, e em vez de dizer "estou?", começava a ler o post "Tenho um homem na minha cama" com a sua orgásmica voz de rádio, era a sua franqueza e javardice (se ela fosse um homem era como ele, era menos gira que ele, "hoje fodes-me?", perguntava ele outro dia).
Era o brinco de platina que tinha desaparecido no dia 6 de Janeiro, era o responso dado ao Santo António a semana passada, era o brinco a aparecer, por magia, no último degrau das escadas de um quarto andar a pique, as escadas que subiu e desceu, dezenas de vezes, nas três semanas em que a argolinha de platina, que o grande amor da sua vida lhe ofereceu no dia em que completou 21 anos e a pediu em casamento, andou a vadear pela cidade.
Era o sensor do estacionamento a apitar, histérico, a gritar-lhe aos ouvidos que estava quase a beijar o pára-choques do Mercedes branco, que está plantado, há meses, no mesmo rectângulo do asfalto - até já havia ervinhas a rodear os pneus -, era o tinido irritante do aviso de iminente colisão, e era, de geração espontânea, lembrar-se onde tinha enfiado as papeladas do IRS, que procurava desde o final do ano passado.
As pequenas coisas estavam esquizofrénicas em estado terminal. Alucinavam de 33 em 33 minutos. Ela deixou de lhes dar o lítio de manhã, à tarde e à noite, em vez de as acalmar, fazia-lhes caldos de galinha, para se manterem fortes - sabia que, da mesma forma que faziam orgias, desapareciam sem deixar rasto, sem um bilhete de adeus. E era mais feliz no caos esquizofrénico.
E dois segundos antes de nevar em Lisboa, o computador de bordo do seu Idea, apitou e disse: Perigo Neve. Foi dos momentos mais lindos da sua vida.

segunda-feira, janeiro 30, 2006

Esquizofrenia das coisas pequenas (I)

Era um estranho conceito.
Mais um daqueles montado em cima de teses feitas de castelos de cartas de copas, que, por sua vez, estavam plantadas sobre estacas podres de bambu, que, por sua vez, escorregavam por entre terrenos movediços.
E este era um post brincalhão. Primeiro quis jogar à apanhada, ela ia a caminho do Marquês, dentro do Idea cinzento escuro, um carro com uma cor banal, que era boa para esconder a sujidade (em quase dois anos de vida, o Idea tomou banho apenas quatro vezes; tinha um estilo de vida medieval, apenas se banhava no dia do seu aniversário - 19 de Março - e no Natal), mas aquele era, apesar do fato escuro, um monovolume com um toque de rebeldia, emprestada na pincelada laranja dos seus estofos - havia poucos Idea em Lisboa, nem o anúncio com o George Clooney valeu à Fiat e ela ficara triste quando a sua mãe não a deixou encomendar o carro laranja com estofos laranja, detestava o facto de o laranja ser conotado com o PSD, tinha uma parede laranja, um sofá laranja onde escrevia posts esquizofrénicos, a casa-de-banho também era laranja, com mosaicos de piscina de cinco por cinco centímetros, mas não a deixaram ter um carro laranja, mas, não era mal agradecida e a cavalo dado não se olha o dente, não se queixou, como se podia queixar?, e a mãe deixou-a ficar com os estofos dessa cor que é feita da mistura do encarnado com o amarelo.
Ia no Saldanha já, o post todo a chegar por telex, daqueles antigos, com fitas perfuradas, vinha a chegar à velocidade da luz e neste preciso momento, o volume do auto-rádio estava a 37 (sempre números ímpares, sempre números ímpares, já sabem como é), ia a cantar, com a pequena loira lá atrás num coro desafinado: "e tu Maria, diz-me onde andas tu? Qual de nós dois faltou hoje ao rendez vous? Qual de nós viu a noite até ser já quase de dia? É tarde, Maria... Toda a gente passou horas em que andou desencontrado" e olha para o lado, tem este vício terrível, está sempre à cata da realidade, não pode andar de transportes públicos porque fica vidrada na cara das pessoas e depois elas perguntam se há algum problema, se têm macacos no nariz ou pedaços de caldo-verde enfiados entre os dentes, era um perigo para si própria, devia saber olhar para os pés, ou ler o Metro, ou um livro de bolso, dormitar, fixar o olhar no infinito, como todos faziam, sem excepção, mas não. Divertia-se a imaginar as vidas maravilhosas dos utentes dos transportes colectivos de Lisboa e um dia queria ir dar uma volta na Vimeca, ou outra qualquer transportadora suburnana com frotas de autocarros com idade para serem suas irmãs mais velhas, queria ver mais gente triste, mais povo, porque o povo da linha amarela não era povo, e das poucas vezes que tinha andado de autocarro também só fazia trajectos pseudo-finos: Marquês-Avenida de Roma.
Olha para o lado e vê uma cara conhecida. Não interessa quem. Mas como é uma desbocada - agora tem que ser menos desbocada; apareceram bloggers de referência no seu quintal que, hoje, só porque sim, tem plantadas hortenses verdes e azuis -, solta que foi um tipo com quem a quiseram amantizar numa passagem de ano, sem pudores, com a cara de cú da namorada a dormir, enjoada, no andar de cima, mas ela trocou o caldo por várias horas ao telefone com o seu primeiro amor virtual, um doutor de Oxford, que estuda as mutações genéticas em drosophilas e outras coisas que tal, coisas que envolvem sinapses, lembra-se ela assim de cor, é muito interessada, e este é um amigo de longa data. Que nunca viu, que nunca vai ver na vida, já o aceitou, mas ao qual ainda não perdoou a ausência telefónica deste Natal.
Mas sorri quando vê o vizinho do carro ao lado, ele não a vê, e é, neste momento, praticamente sufocada pela chofagem do Idea - sempre sonhara escrever esta palavra, nem sabia muito bem como é que se dizia, teve que perguntar ao SGTZ, um dos seus vizinho virtuais, um que, apesar do frio de rachar, tem a janela aberta, escancarada, até às tantas da madrugada. E ainda bem que o fez, porque não sabia se era cofragem ou chofagem, ia optar pela primeira e ia fazer asneira, cofragem é dos edifícios, não é dona arquitecta dos abraços de esmigalhar mamas? E falando em arquitectos, lembrava-se dessa palavra, a "chofagem" dita pela boca do seu primeiro namorado, o "tontinho", era assim que o chamava - nesses momentos, em que ela era má, pensava mesmo que era daquela laia que tão bem descreveu três posts abaixo -, e chamar-lhe "tontinho" era até simpático da sua parte. O moço era muito básico e tinha um incisivo lateral cor-de-rosa, pigmentado dessa estranha cor por causa de uma desvitalização feita por um dentista a martelo, um dentista que tinha consultório na Almirante Reis, em frente ao Independente e ao sítio onde fez a sua tatuagem, um dentista que era amigo do pai do "tontinho", que, por sua vez, era talhante - o pai, não o dentista -, mas toda a gente naquela família tinha dentes cor-de-rosa se calhar o que homem que pigmentava os dentes desvitalizados dessa cor também cortava quartos dianteiros de vacas nas horas livres, lembrava-se bem do aspecto sinistro do consultório, o médico não usava luvas, não mudava as brocas e isto fazia-lhe muita impressão, mesmo muita, mas o tontinho dizia "chofage" e dizia também "lember". Sim. "Lember" - havia uma anedota qualquer, muito porca, que acabava com "lambe-me o caralho", ah, não era uma anedota, era uma história qualquer do Nuno Rogeiro a fazer uma oral na Lusíada, e ele dizia sempre "lembe-me o caralho". Arrepios. Pele de galinha. Era "tontinho" sim, dizia "chofage" e "lember", mas, graças a ele, ela tinha um curso incompleto de arquitectura; fez-lhe as cadeiras teóricas todas - ele mal sabia escrever - e isto era quando ela tinha 16 anos, a sua carreira de depósito de conhecimentos inúteis começara com a arquitectura. Por isso, devia até saber que era chofagem e não cofragem. Estava a perder qualidades. Mas lembrava-se de tanto pormenorzinho escondido que tinha, necessariamente, que deixar cair algumas coisas. Era o caso da cofragem.
Tinha ficado no semáforo, no Saldanha. O post começou a chegar por fax, ao mesmo tempo que por telex. E ela sem poder escrever as frases que se atropelavam umas às outras à frente dos seus olhos, quando os olhos também tinham que estar atentos à mudança de faixa para cortar para o Imaviz.
Era brincalhão, este post. E quando se sentou no sofá laranja para o escrever, com dois cinzeiros de vidro amarelo, que noutra vida foram castiçais, continuou no mesmo registo infantil, quis jogar à cabra cega e depois às escondidas. Passadas algumas horas e muitos John Player Special depois, ela encontrou-o na terceira minhoca do cérebro a contar da direita.

Mas estava cansada. E o texto ia longe da parte que era realmente bonita, da que piscara diante dos seus olhos, no percurso de carro que era igual todas as noites, e que ela tinha enxotado com força com as escovas do pára-brisas.

Doía-lhe a mão e a tendinite de esforço, que lhe tinha sido diagnosticada há uns meses, estava assanhada. Pela primeira vez, ia cortar um post ao meio, fazê-lo em capítulos, reivindicação de muitos leitores preguiçosos, que desistem aos cinco mil caracteres. Não estava contente com essa decisão. Não fora reflectida, fora imposta pela mão. E, como tinha falhado, prometera a si própria nunca mais ficar 24 horas sem escrever. O Ibook tinha uma bolsinha janota em neoprene, tipo boxeurs de lycra, tinha uma bateria com horas e horas de autonomia, da próxima vez, levava-o para o Princípe Real consigo.

Era a excepção. Hoje. E o melhor da posta ainda estava para vir, garantia.

E continuava a escrever na terceira pessoa do singular. Não o lamentava. Apenas registava a ocorrência, tão maquinalmente como um agente barrigudo da Divisão de Trânsito da PSP preenchia uma multa de estacionamento.

Domingo

Arrisca-se a ser eleito o melhor dia da semana. O que faz bem à pele. E às vezes neva. Já me imagino, velhota, cheia de artroses, nas mãos e nos joelhos, sentada na poltrona com pés de garra, estofada a veludo de cor beringela, a olhar a neve a cair no Marquês de Pombal pelo vidro da janela. A recordar o Domingo longínquo em que Lisboa ficou coberta de branco e onde todos se queixavam do frio menos eu e o senhor que é decorativo.

Estou de folga. Estou de rastos. Perdoem a mini-posta.

domingo, janeiro 29, 2006

À espera da Liberdade


A última favela de Lisboa. A primeira também. Enraízada nas costas de Monsanto e aos pés do Aqueduto das Águas Livres. Com vista para o Tejo e para toda Lisboa. Irónica escolha de palavras: um milhar de lisboetas vive em condições idênticas às da Revolução Industrial num bairro chamado Liberdade. Esperam-na há mais de 50 anos.


Um trabalho de Diana Ralha [texto] e Rui Gaudêncio [fotos]


Há coisas que os olhos não estão preparados para ver.


Um milhar de pessoas a viver na companhia de ratos, percevejos, imundice, escombros e entulho. Imagens de Fátima e fotografias de Amália espalhadas pelas paredes, numa espécie de culto, de fé inabalável. Bibelôs, muitos, cisnes, cães, gatos, de vidro ou de porcelana, apinhados em uma, no máximo de duas assoalhadas com pouco mais de cinco metros quadrados.
Habitações que não são mais do que corredores, sem janelas, com as paredes pintadas de cores vivas e salpicadas de bolor. Divisões versáteis e minúsculas, que servem para tudo: para cozinhar, para comer e para dormir.

Sanitas ao lado do micro-ondas, a um canto da sala, aos pés da cama, atrás de um vão de escadas.Por vezes, não existem sequer. A substituí-las, há baldes de plástico no chão, que os seus donos mascaram de sanita, enfeitando-os com tampos de plástico. Depois de cheios despejam-se na rua, nas pias existentes nos pátios. Os lavatórios são um luxo.

Um milhar de pessoas, adormece e acorda todos os dias nestas condições. Liberdade. Vivem num bairro chamado Liberdade. Moram assim desde sempre. A maioria há mais de meio século, mas ainda se encontram anciões que ali criaram raízes há 80 anos, quando o mais antigo e último dos mais precários bairro de Lisboa assentou arraiais e cresceu sem freios nas costas de Monsanto, na freguesia de Campolide. Nasceram, casaram, criaram filhos e os netos na Liberdade. São escravos dela.


Ensombrado pelo Aqueduto das Águas Livres, colado ao pacato e cobiçado Bairro da Serafina, com vista para o Tejo e com Monsanto a enquadrá-lo como uma moldura de vegetação luxuriante, o Bairro da Liberdade é “a última favela de Lisboa”. Quem o qualificou com estas palavras foi António Carmona Rodrigues, na altura candidato à presidência da Câmara Municipal de Lisboa. Não exagerou. Prometeu deitá-lo abaixo. Há coisas que os olhos não estão preparados para ver.


Quando se morre sai-se pela janela num saco

Pátio do Chafariz. Travessa Capela Velha. É apenas uma das ruas de um bairro onde toda a gente se conhece, ajuda e tem sempre as portas abertas, com as chaves na fechadura. Sem medos.
Por fora, lembra uma aldeia, há crianças e velhos nas ruas, cheiros vários, cortinas de renda de nylon e de xadrês colorido. Nada faz adivinhar em que condições vivem os moradores do Bairro da Liberdade.


Carmen Almeida, 40 anos de bairro e de vida, nunca saiu daquele pátio. Mudou da casa do pai para a do marido. Transportou os seus pertences para apenas duas portas ao lado. No seu T1, ao qual se acede por um corredor escuro e umas escadas a pique que teimam em ceder e pregar rasteiras, moram três pessoas. Tem água em casa porque fez as obras à sua conta. A sanita está ao lado do micro-ondas, numa cozinha improvisada em pouco mais de três metros quadrados.
Esta mulher de coração frágil, recém-operado, está inquieta. A sua sogra regressa do hospital amanhã, segunda-feira, com uma perna amputada. Carmen sabe que a idosa não mais irá sair do buraco a que ali se chama casa até ao dia em que fechar os olhos para sempre. Desabafa, enquanto desce um vão de quatro degraus com a largura de não mais de cinquenta centímetros: “Quando se morre aqui, sai-se num saco de plástico pela janela. Não se sai num caixão”.
Voltando aos vivos. Número da porta 71 A. Aníbal Barata, olhos verdes, muito doces, voz de candura infantil imputada à demência. Um quarto. Sem janela. Um cheiro que se entranha na roupa, na pele. A porta abre-se, não abre toda, só o suficiente para entrar um corpo de lado. Não abre o suficiente porque o quarto é exíguo, a porta bate numa cama onde se acumulam pilhas de lixo, tralhas diversas. Percevejos.

Lá dentro, como um animal e rodeado deles, sobretudo de ratos, vive, desde 1965, um ex-combatente da guerra colonial. Serviu em Angola. Está reformado por invalidez. Enlouqueceu. Está entregue à bondade dos vizinhos e da irmã, que mora uma ou duas portas à frente. Aníbal Barata gosta de Amália, há fotografias e cartazes da fadista na orgia de parafernálias várias que colecciona no seu quarto: “Quem não gosta de Amália não é português”, diz. Gosta de Cavaco Silva também – está um exemplar da revista “Homem”, em grande destaque, aos pés da sua cama. Quase não se vê parede. Aníbal pendura espelhos, posters, demasiada informação para a retina. Ao centro, uma imagem do sagrado coração de Jesus diz, em letras garrafais: “É preciso orar”.
Dez passos à frente. Fim de um pátio do bairro da Liberdade, onde crianças brincam com cães de raça (um pittbul, um caniche, um yorkshire terrier e um lulu da Pomerânia) e pardais chilreiam nas gaiolas pregadas às fachadas das casas. É um pátio cheio de flores e de couves, plantadas por Eva Duarte e que, afiança, já renderam duas sopas este ano.






No fim do pequeno pátio, numa habitação prestes a desmoronar-se, sem telhado, sem reboco nas paredes, apenas tijolos unidos com cimento, mora Francisco Sousa. Aos 49 anos está desempregado e sem direito à prestação social do rendimento mínimo garantido. Este homem, de enormes unhas e gengivas pueris, não tem como se proteger do frio e da chuva. Não tem casa de banho ou cozinha. Sobrevive de biscates e da ajuda dos vizinhos.



Grafitti para esconder o bolor

Os moradores abrem, sem vergonha, as portas das suas casas. É assim em todo o bairro. O asseio é a norma. Ana Isabel mora na Liberdade há apenas três anos com o marido. São ambos muito jovens, já têm um filho com três anos, que dorme num colchão encostado à cama dos pais. São os vizinhos da frente de Francisco e recuperaram a braços uma barraca idêntica à sua. Lutam contra a humidade. Escondem-na, no quarto, com cortinas de renda, com cachecóis de clubes de futebol e posters de ídolos musicais. A humidade não se vê, mas sente-se, entranha-se nos ossos. Na sala, com pouco mais de quatro metros quadrados, desistiram, é uma luta inglória, optaram por um tromp l’oeil, camuflaram o bolor das paredes com um grafitti.
O cenário repete-se naquele pátio, em todo o bairro.




Existe uma tentação forte de verificar, à cautela, na agenda em que ano se está. 2006,1906? Oito pessoas a morar numa habitação que tem um quarto esconso enfiado no sótão, uma sala que também é cozinha, e uma divisão sem janelas, com cerca de cinco metros quadrados, onde dormem quatro pessoas de noite. Um filho de 21 anos, e um neto pequeno a dormir ao lado dos pais e avós.
Um quarto e uma sala. Mínimos. Não há cozinha, nem casa de banho. José Cardoso, setenta anos de boa figura, sobretudo de bom corte e boa fazenda, viveu sempre sozinho. Na companhia de imagens de Fátima e bibelôs do Benfica. “É só miséria”, desabafa, mas volta atrás, quase com vergonha do sacrilégio que a sua boca acabou de reproduzir: “Posso-me dar por contente. Há pessoas aqui no Bairro a viverem trinta vezes pior.”

Aqui é tudo boa gente

Todos gostam de viver no Bairro da Liberdade. Garantem que não há desacatos, insegurança, admitindo, porém, existir algum tráfico e consumo de droga no bairro. Não se encontra ninguém, que algum dia, em meio século de vida, tenha sido assaltado no bairro.


A noite cai, a ponte 25 de Abril e o aqueduto iluminados compõem um cenário de beleza invejável e, lá em baixo, no Eixo Norte-Sul e na Avenida de Ceuta, os carros seguem em fila indiana sem supor que, ali tão perto ,há um vórtice temporal que faz recuar tempo até ao início da revolução industrial.
Quase todos querem permanecer encostados a Monsanto e ao Aqueduto das Águas Livres, com vista para toda a cidade. Sonham há décadas viver com um pouco de dignidade, mais como pessoas e menos como animais. Muitos perderam já a esperança e também a conta das vezes em que abriram as portas das suas casas, sem vergonha, ou escondendo-a o melhor que sabem, e escutaram as promessas eleitorais, nunca cumpridas, de uma vida melhor.
Mas ainda há quem acredite. A anciã Hermínia Tasso, octogenária, tantos anos de vida como de bairro, sabe que já não vai ver o dia em que a liberdade vai chegar: “Já não vou ver. Mas fico contente por saber que vão ajudar quem precisa. As pessoas merecem, são todos boa gente, acodem-se uns aos outros”.
Com apenas dez anos, Sara Ramos, muitas sardas no nariz, acalenta este sonho: “Tenho muita gente com quem brincar, tenho tanta gente para conhecer aqui no Bairro. Só precisamos de casas melhores. Moramos em buraquinhos que até dão para viver, mas gostava mesmo era de ter um quarto só para mim”, desabafa, entre suspiros e um sorriso envergonhado, à porta de uma das muitas mercearias do bairro para onde vai brincar depois de chegar da escola.

sexta-feira, janeiro 27, 2006

Da sua laia

Conhecia muito bem os da sua laia. Era feita da mesma matéria. Tinha degenerado um pouco, gostava de acreditar que tinha degenerado, ou regenerado - era como a história dos copos, se estam meios vazios ou meio cheios, depende se é um maníaco ou um depressivo que está a olhar para o copo -, que apenas parte de si vivia à custa de sugar emoções.
Era gulosa, mas empanturrava-se com chocolates sempre que lhe surgiam repentinos desejos incontroláveis de devorar sofregamente o melhor que há em cada um.
Acreditava que era moderada - nunca fora moderada em nada, era adjectivo que fazia ricochete em si, iludia-se, portanto -, que tinha apenas um distúrbio alimentar que ainda não tinha sido identificado ou publicado nas revistas científicas que às vezes gostava de ler. Gostava de pensar que deixava sempre um pouco, um restinho, qualquer coisa, queria acreditar nisto, repetia-o em voz alta, com determinação, como que a empinar a tabuada dos nove, que não sugava tudo e todos os que estavam ao seu redor, que não os atraía a si apenas para isso, como um implacável e frio predador.

Conhecia bem os da sua laia.
Adorava a expressão "vampiro de emoções".
Ouvira-a tantas vezes da boca de uma senhora loira, uma inocente vítima de um desses espécimes, e imaginava a cena da mordidela fatal, inspirada num filme de Ed Wood. O seu pai era mais feio que o Bela Lugosi, não tinha ar de húngaro, mas sim de monhé com carapinha, mas imaginava a cena assim, com uns cenários manhosos a desfazerem-se no momento em que os caninos "rilhões" do vampiro - que para si e para os seus irmãos passaram misturados nos genes; ela tinha conseguido camuflar o aspecto vampiresco com recurso à ortodôncia e a uns belos milhares de euros -, aferroavam o pescoço esguio, leitoso da sua mãe, até não sobrar nada.
Isto tinha sido há três décadas atrás. Há mais de três décadas atrás. Ninguém tinha vontade de se lembrar, ninguém sabia ao certo. Não tinha graça nenhuma, mas o que vem aqui para o caso é que a vítima continuava vazia, seca, não tinha havido lugar para uma miraculosa regeneração, ela pensava muito nisto, quase tudo regenera, porque é que a trinca do vampiro de emoções era irreversível para todo o sempre, como uma imuno-deficiência?

Já não havia o oitavo andar. Haver havia, mas morava lá a ex-tia que, para si, seria sempre a mulher de queixo e nariz proeminente e verruga colada à narina direita que lhe oferecera o seu primeiro eye lyner, tinha ela 14 anos. O jardim de inverno já não tinha paredes rugosas pintadas de verde, o chão já não era de mosaico preto. Evitava entrar em casa da tia. Doía-lhe o apartamento desfigurado, transformado numa toca indiferenciável de tantas outras, a puxar para o novo-rica e que havia sido paga, integralmente, pelo corno do seu tio de sangue.
Durante toda a sua adolescência refugiara-se naquelas cinco assoalhadas, 150 metros quadrados numa zona nobre da cidade, que a sua mãe, burguesa e péssima gestora de património imobiliário, utilizava como arrecadação.
Sacrilégios...
Sempre sonhara viver ali, com o fantasma da dona Julieta a beber chá na sala, a dormir no quartinho da empregada, a dona Julieta que era a velhota de cabelos pintados com um plix violeta que tomava conta dela quando as aulas do colégio acabavam e não havia ninguém em casa para lhe abrir a porta, a dona Julieta, que, juntamente com uma task force de vizinhos improvisada, a dona Ilda e o senhor Victor, substituíra os seus avós, os seus avós que, em menos de um ano e meio, decidiram morrer, em cascata, não deixando sequer o luto repousar uma semana descansado no roupeiro.
A vítima do vampiro mirrou até aos quarenta quilos por causa do tal do luto que se sentou de pernas abertas a arrotar, na melhor poltrona de um segundo andar onde viviam. E o preto também não fica bem às loiras, quer ela ressalvar, é raríssimo, assim como loiras ficarem sensuais com os lábios pintados com baton encarnado - parecerem todas umas putas -, e os vestidos até eram bonitos, tinham a cintura descaída, eram de voile de lã, comprados na Truz, uma loja pseudo-fina da Praça de Londres, onde hoje é um antiquário que dá ares de lavagem de dinheiro.
Ela lembrava-se de a sua mãe vampirizada passar os cheques que compraram os tais vestidos pretos e também uns sapatos de camurça da mesma cor, com uns laçarotes. Lembrava-se de tudo, era um fenómeno, nesse dia decorou o bilhete de identidade da senhora loira que definhava de desgosto, 1260756, e ainda se lembra de uma saia com umas florzinhas brancas que mal de notavam, que, ao longe, mais pareciam bolinhas.

Já não havia oitavo andar. Nem jardim de Inverno. Passou a sua problemática, chorosa e semi-suidida adolescência ali, entre caixotes de recorações empoeiradas e húmidas. Gostava de fotografias de família. Revoltava-se por estarem ali desterradas, abandonadas. Talvez por isso, hoje em dia, resgatasse fotografias dos mortos dos outros em alfarrabistas e na Feira da Ladra.
Um dia encontrou numa caixa as cartas tontas de amor, da vítima de porcelana ao vampiro de emoções. Ainda hoje se questiona como é que isto pôde acontecer. Como é que a mulher loira, boticelliana, apaixonada, romântica, tola mesmo - isto reconfortava-a de certa forma, saber que era igualzinha à sua mãe, que apenas o tom de pele, do cabelo e dos olhos era o oposto - se deixou mumificar pelo vampiro.
Conhecia bem os da sua laia.
Temia ser uma deles.
Tinha teses muito bem montadas na cabeça. Dogmas que aceitava abnegada, sem discussão, e isto era raro, era do contra por natureza, só para chatear. Só aceitava porque eram suas, mas às vezes não tinha ninguém para contrariar porque era muito só e podia virar-se contra todas as suas premissas. Mas não. Acreditava mesmo nelas.
Gostava pouco de carneiradas, por isso é que não pertencia a nenhum clube, partido, nem mesmo à maçonaria, que até seria bem bom para conseguir um emprego onde trouxesse mais dinheiro para casa, para evitar viver no limiar da classe média (detestava gente pobre. De espírito). Por isso, desenvolvia teses surrealistas, que não lembravam ao menino Jesus, para que não surgisse uma cambada de fervorosos fiéis a segui-las, a apropriar-se da propriedade intelectual privada de outrem (isto lembrava-lhe as ocupações dos comunistas no pós 25 do 4 e só de pensar nisso ficava com pele de galinha e com aquela estranha urticária que lhe aparecia no rosto sempre que rebentava com os níveis altíssimos mas, ainda assim, toleráveis de stress).
Se não fosse uma preguiçosa, gostava, um dia, de conseguir desenvolver vários projectos científicos fulcrais para a humanidade. Entre os quais, a morfologia dos filmes pornográficos.
Era fixada pelo formalista russo Vladimir Propp, queria aplicar a sua teoria da Morfologia dos Contos à indústria porno. Defendia que, todo e qualquer filme pornográfico, obedecia a uma estrutura narrativa linear, cronológica, pré-definida. De que outra forma se explicava, então, que a narrativa dos filmes pornográficos terminasse sempre com a esporradela do elemento masculino nas mamas ou na cara do elemento feminino?
Mas havia mais teses. Acreditava na banalidade do mal. Que qualquer um pode ser um assassino profissional. Que matar só custa, vá, às primeiras cinco vezes. Estava a ser simpática, a exagerar. O homem é naturalmente mau - a mulher também, mas numa dose mais fraca, se o homem fosse uma grama de Xanax, a mulher era 0,125. Para ela, matar passava a ser um hábito chato à terceira vez. Era um número cheio de misticismo. As suas teses nao tinham quaisquer fundamentos científicos, não era com o propósito de as validar que as elaborava. Elaborava estas premissas apenas para manter ocupado o cérebro. E como via sinais e simbolismo em tudo, defendia este número, o três.
Desenvolvera esta equação quando a sua mãe matava ninhadas de gatos, adormecendo-os em camas de algodão encharcadas em éter. Pouparam-na de participar no genocídio. Sempre foi muito protegida. Lá sabiam porquê. Era frágil, parecia um rochedo mas era uma lágrima da Batávia (não está com paciência para explicar o que é uma lágrima da Batávia, essa era uma longa história da sua infância, que revisitou num best seller, salvo erro, Booker Prize, do Peter Carey).
Aparentemente, era um pedaço de vidro inquebrável, ao qual se podia dar enxertos de porrada sem fazer mossa ou riscos, mas bastava uma pancadinha ao de leve no ponto nevrálgico para se desfazer em mil pedaços. Mas era um lindo espectáculo quando estilhaçava e, no Natal, partia bolas de vidro no centro de bricolage Aki só porque o barulho lhe lembrava a desintegração das lágrimas da Batávia.
Nunca arriscaram, nunca usaram testar o efeito desse beliscão, e pouparam-na à matança felina. Havia de sofrer muito pela vida fora, não precisava de começar tão cedo. Mas ela ouvia os miados. E chorava muito. E escrevia cartas a Deus, perguntava onde é que ele andava, enfiava-as no meio dos livros da prateleira da sala - um dia, alguém as há-de encontrar.
Chorava muito até se banalizar. Deixou de chorar com a morte dos animais, sentia-se um péssimo ser humano, quisera chorar quando o seu gato favorito, um gatarrão laranja chamado Red, morreu e não conseguiu largar nem uma gota para amostra. Quando assim era, punha-se a cortar cebolas. Induzia o choro desta forma (estava a enlouquecer, ela estava sempre a avisar que estava a enlouquecer).
O vampiro de emoções devia funcionar da mesma forma, conjecturava. Uma ferroadela para matar uma vida de emoções. E ela achava isto muito estranho, não desenvolvera ainda nenhuma tese porque acreditava que ninguém podia viver sem uma bela dose de paixão. Tinha que ter cautela, não queria ficar seca, queria aproveitar um pouco mais.
Conhecia muito bem os da sua laia.
E conhecia-se muito bem também. Podia esforçar-se para escrever na terceira pessoa do singular, mas não enganava ninguém. Era sempre sobre ela. Era noventa por cento dela, o que escrevia.

Aguentem-se

Aguentem-se à bronca, dancem o fandango (era assim que a minha avó Tóia dizia quando eu estava aflitinha para fazer xixi), protestem, montem o aparato todo, com figurantes feios, aluguem os carros de som, façam estalar no ar chicotes e deixem voar bandeiras ao vento, façam birras e beicinhos, cantem serenatas à minha janela sobre a Viriato e a Andrade Corvo, façam trinta por uma linha, uma linha torta, por favor, é a única coisa que peço, mas, hoje, é quase impossível escrever posts.
Tenho um post que me paga o salário para escrever.

Contra todas as expectativas

O homem que esteve na minha cama telefonou.
"Bem fodido à foda torna", disse.
Faz-me rir. Faz-me rir muito.

quinta-feira, janeiro 26, 2006

Ainda posts gramaticais

Davam abraços de esborrachar mamas.
Tinham umas mãos muito bonitas. Uma usava as unhas quadradas, muito curtas; a outra, amendoadas, bem limadas e afiadas.
Gostavam de beijos no pescoço, derretiam com beijos no pescoço.
Ambas eram incapazes de escrever o verbo "apaixonar", também já não sabiam como é que ele se conjugava.
Sempre que tentavam, e tentavam todos os dias, saía sempre "apixonar".
E estava certo. Muito certo.
E começava tudo aí.

Amores perfeitos [no pretérito-mais-que-perfeito do Indicativo e na terceira pessoa do singular]


[Reeditado]

Levara a vida à espera daquele dia: sonhara com os olhos bem abertos, com um olho mais aberto que o outro, porque no dia em que nascera, o último dia do signo caranguejo, a simetria estava de férias, a banhos, no Algarve a dourar; sonhara estender amores perfeitos à janela, com a mesma naturalidade rotineira que a vizinha da frente, do terceiro andar esquerdo, estendia cuecas de gola alta, em cordas de nylon, pela manhã.
Nunca tivera jeito para os singelos e delicados viola tricolor e não vivia bem com essa incapacidade, lembrava-lhe sempre o dia em que entrou para o colégio e era a única da turma que não sabia fazer cambalhotas, nos tapetes verdes de pele do ginásio bafiento de uma moradia da avenida Almirante Gago Coutinho, uma moradia enorme, onde, à entrada, como não tinha amigos, falava baixinho com uma palmeira muito velha, acariciava o seu tronco e às vezes tentava-a abraçar, mas faltavam-lhe braços.
Mas isto era quando se certificava que ninguém estava a olhar - há quem diga que o seu amor pelas árvores começou aí -, isto era numa moradia na qual pintou as paredes do jardim de infância dos meninos um pouco mais pequeninos do que ela com os seus desenhos geniais, a pedido expresso da directora, que a dispensou das aulas para se dedicar à pintura das paredes brancas dos pequeninos, e nessa tarde saíram todas as imagens que tinha na sua cabeça. A directora soubera, desde que a admitiu a meio de um ano lectivo, soubera que aquela menina triste, de tranças enormes, que acabara de perder o colo macio das suas duas avós, soubera logo aí, que lhe esperava um futuro brilhante. Era mesmo assim.
Lembrava-se da humilhação, de dizer ao professor Geraldes, ex campeão de Judo, entre lágrimas, que não sabia fazer cambalhotas. Nem a roda. Muito menos o pino. Uma vez por semana, tinha pesadelos. Teimava com a sua mãe solteira, na altura secretária de direcção, que estava doente, que não podia ir à escola. Irremediavelmente, a mãe mandava-a para a carrinha com um fato de treino turqueza; apanhara-a a aquecer os termómetros na lâmpada da mesinha de cabeceira e, desde então, parara de se preocupar com os febrões com data marcada da sua filha mais nova.
Mas, durante muito tempo, acreditou nos poderes da espada dourada da boneca She-ra. Gostava mais da má da fita, da Catra, que se vestia à gótica, de preto e beringela, mas usava a espada da loira boa da fita, a irmã do He-man, para fazer magia. E durante três meses, não houve ginástica e ela acreditava piamente que era por causa daquele pedaço de plástico, não sabia o que era uma ruptura de ligamentos.
Mas um dia, a sua gata siamesa, que se chamava Íris, uma gata má como as cobras, roeu-lhe a espada da She-ra. E ela chorou, desesperada, não ousou, sequer, explicar qual a razão de tamanho pranto à sua mãe, que, na altura, não era uma fada do lar, que, às vezes, também tinha homens na sua cama comprada na Octógono, e que, ao jantar, fazia sopas instantâneas da Knorr (ela sempre gostara muito da sopa de rabo de boi, na altura, já era muito gráfica, tinha uma imaginação esquizofrénica e de nada valia a sua mãe loira, de pele de porcelana, lhe explicar que rabo de boi era uma forma de dizer. Sim, gostava da palavra tutano, mas não aceitava que a sopa fosse de tutano, era de rabo de boi, a imagem era grotesca, mas ela gostava muito da sopa avermelhada da multinacional do galo).
O professor Geraldes, claro, voltara depois do acidente felino. Tinha que ter sido assim. Nunca perdoou à sua gata pela quebra do feitiço. Mas aprendeu a dar cambalhotas com o seu primo Hugo, num jardim da Estados Unidos da América, por debaixo de um plátano que foi cortado há muitos anos. Foi a melhor da aula de ginástica. Fez o pleno. Era a melhor em tudo. Era mesmo assim. Foi sempre assim. Há-de morrer assim. Quando mete uma na cabeça, não descansa até ser a melhor. Até nas coisas mais improváveis, como as cambalhotas e os pinos.
Passava, então, a vida de cabeça para baixo, com as pernas apoiadas na parede, foram muitos anos assim, o sangue subiu-lhe ao cérebro e nunca mais foi a mesma. E houve uma altura em que era viciada em equações, e gostava muito de gramática também.
Foi insistindo com os amores perfeitos. Se havia sido a melhor a ginástica apesar das pernas roliças que herdara dos genes do seu pai quase incógnito, um dia iria ter jeito para amores-perfeitos.
Estava tão determinada que, quando salvou uma dúzia de vasinhos de plástico de uma morte certa num supermercado, lhe apeteceu conjugar todos os verbos no imperativo afirmativo. Mas depois lembrou-se - era sempre assim, um reservatório de inutilidades, mas isso era sindroma de família, corria-lhe nas veias, misturado com um sangue fluorescente - que o imperativo afirmativo não possui a primeira pessoa do singular e ela estava a enlouquecer, é certo, cada dia que passava nas folhas da agenda, era mais um passo para o abismo, ela sabia que já não era muito certa, mas ainda não falava de si na terceira pessoa do singular.
De noite, pensava muito, tentava não se analisar, tinha-se em muito má conta, dizia ser uma má pessoa, era o seu cartão de visita, acreditava piamente que se gostassem do seu lado negro, seria mais difícil resistir à pureza que não teimava não sair dentro de si, apesar das sucessivas ordens de despejo, remetidas por carta registada com aviso de recepção.
Mas temia ser uma maldição, e quando começara a atrair homens impotentes, ou mesmo imbecis (gostava mais dos impotentes do que os imbecis, ainda assim), vira um sinal na morte prematura dos amores perfeitos nas suas mãos.
Durante alguns anos, refugiara-se nas heras e nas orquídeas da sua sacada pombalina. Mas não esquecera os amores-perfeitos. Era romântica, gostava da poesia das coisas pequenas. Era mesmo assim. Foi sempre assim. Será sempre assim.

Esperava pouco da vida e a vida teimava eu não a largar. Sonhara estender amores perfeitos à janela. Sonhara conjugar um amor perfeito no pretérito mais que perfeito do indicativo.

E um dia a maldição acabou. As flores, pelo menos, estão na janela; e o amor andará à solta onde menos se espera.

quarta-feira, janeiro 25, 2006

Post no jornal

Este Domingo, sai um post meu no jornal. Vai parecer uma notícia, vai parecer uma reportagem, mas é um post. E está todo na minha cabeça, prestes a saltar. Vou ficar sem dedo pai de todos a escrevê-lo. Hoje vi coisas que tão cedo não vou esquecer. Estive no Bairro da Liberdade.

Mãos ao baixo


Não tarda, chega a Hermínia, chega o João, não tarda, a casa tem que estar arrumada, a roupa estendida, o jantar feito, a árvore de natal tem que estar desmembrada no seu caixote até Dezembro próximo, não tarda tenho que subir ao escadote para arrumar no alçapão o caixote com as bolas, as fitas e e os pais natal de tecido em tons de cobre. É já não tarda, e as fadas do lar estão de folga, preguiçaram, deixaram tudo para eu fazer, o Chopin já toca - gosto de fazer a faxina ao som de música clássica, dá algum estilo à coisa -, não tarda nada a campainha toca e eu ainda estou agarrada ao macintosh, com tudo por fazer, e pelo menos tenho que plantar os amores perfeitos à janela, os amores perfeitos que salvei de uma morte certa à sede de um hipermercado da Jerónimo Martins, e à minha janela está uma foto incrível à espera: há os pombos no telhado do prédio gémeo siamês do outro lado da rua, há a vizinha com feições duras e cabelo grisalho, há o canário ao sol, mas a foto não está aí, está dois andares abaixo, na janela do vizinho que, invariavelmente, apanho de ceroulas à janela da cozinha, as paredes são azuis, vejo o tecto de madeira, vejo muito pouco, é uma cozinha sombria, invadida por uma enorme solidão, mas hoje, à janela, estão estendidas duas luvas de borracha cor-de-rosa, não sei se consigo captar com a Leica aquilo que os meus olhos vêem, mas isso, é não tarda.

O remetente deste email que me perdoe a perda de exclusividade deste pedaçinho. Tem todos os outros só para ele e, aliás, as minhas coisas não têm dono. São de quem as apanhar, são de quem as trata bem, com carinho.

terça-feira, janeiro 24, 2006

Algo se passa. Tenho o pai de todos escavacado.

Algo se passa.
E não são as mil visitas que hoje pisaram os amores perfeitos das bordaduras dos jardins deste quintal - eu não disse que era o fim do mundo como o conhecíamos? Tinha acabado de chegar do Tóquio, de ler uma mensagem embriagada de um dos meus bloggers favoritos (um anónimo que vê a realidade ao lusco-fusco), não sei o que me deu para abrir esse mail às quatro e meia da manhã.

[esse mesmo, esse endereço de email que está aí do lado direito e que ninguém, salvo excepções honrosas, utiliza, nem sequer para me insultar, e se eu não tivesse criado essa caixa de email, se não a abrisse para não cheirar a mofo, às vezes é às quatro da manhã, outras, logo pela manhã cedinho, quando abro as pestanas e me preparo para mais um dia de trabalho, se não fosse por esta caixinha, não conheceria a minha esquizofrénica, que me bateu à porta do gmail empantanas a medo, dizendo que não pretendia corresponder-se, que não me sentisse obrigada a começar um caso de amizade cibernética, queria apenas dizer que me lia, pedir-me que não parasse nunca, mas eu não lhe dei hipótese, eu nunca dou hipótese, não te queres corresponder o tanas, eu conheci a minha amiga, a minha baby sitter Cinderela, que me levou ao cinema depois de eu não ter ido ao quarto escuro mais de dois anos, isso foi o nosso primeiro date, eu conheci-a na caixa dos comentários de um prestigiado blogue, ela dizia que lhe estavam a acontecer filmes de série Z e eu disse, não sei porque o escrevi, mas agradeço várias vezes ao dia ao anjo que comandou a mão, "estou solidária", e estava mesmo, filmes de série Z era comigo nessa semana, aliás, é todas as semanas, se formos a ver bem, mas tudo começou ali, dentro de uma jaula do canil, rebentámos uma vez com o cubículo, depositámos duas dezenas de comentários sem pedir licença e depois ganhámos fama de delicodoces, estou-me bem marimbando para a fama, agora quero é o proveito, mas esta noite não a tenho a fazer-me companhia no escuro da net e faz-me muita falta]

Foi um pressentimento talvez, eu vejo sinais em toda a parte, eu estou sempre muito atenta, sei que a câmara acende as luzes da minha cidade às 17h30 em ponto, eu presto atenção a coisas que ninguém presta, sei quem são os meus anónimos apenas pela escrita, sem lhes catar o IP no Statcounter, pior, cato os anónimos dos outros também, por acaso, sem querer, tenho ciúmes dos meus anónimos noutras paragens, e isto acontece apenas porque vejo demais e isso às vezes cega-me, eu sou uma mulher ciumenta, eu devia passar menos tempo nos blogues, eles às vezes fazem-nos mal, e estou farta de dizer que estou a enlouquecer, e hoje o meu editor disse que é bem capaz de ser verdade, mas disse, também, que me assenta muito bem, que se alguém tem que ser louco que seja eu, mas, eu abri um email, para o qual ninguém escreve, às quatro e meia da manhã e isso é perfeitamente normal para uma pessoa louca, e tenho saudades do Tiago, do Pif Paf, mandava uns emails deliciosos e parou, mas a verdade é que gosto muito de escrever a este meu outro anónimo, respondi-lhe qualquer coisa sem nexo e a Catarina ligou-me há pouquinho porque se comoveu com a forma carinhosa como trato os meus anónimos.
E não nos vemos faz uma eternidade, o mealheiro-busto do Mao Tse Tung que comprei para lhe dar no Natal ainda cá está, tenho saudades dela, hoje dei de caras com um tipo que tive na cama dela, na querida Rua da Rosa, uma casa tão velha como a minha, com paredes tão tortas como as minhas, tão linda como a minha, com a casa-de-banho ainda mais enfiada na cozinha do que a minha, e isso foi no tempo em que os animais falavam e escreviam milhares de caracteres sobre a nova legislação do trabalho, noites em que quase morríamos carbonizados na sala, por causa de uma mala de cartão que se queria imolar pelo fogo utilizando as velas que nos esquecemos de apagar a jogar ao "E se eu fosse?", a mala de cartão estava sempre à porta, para a Catarina se lembrar que estava naquela casa de empréstimo, essas noites eu não esqueço, mas esqueci este rapaz, de olhos azuis, mas a Catarina ligou para dizer que me lê, que me segue por aqui, e a primeira coisa que diz é este amor pelos meus anónimos, diz que eu sou muito "querida", que, na caixa dos comentários, sou outra pessoa, não sou aquela que não usa pontos finais e forra o blogue a papel de parede com padrão de vírgulas.

Mas algo se passa. E quando escrevi o refrão da musiquinha dos REM que dancei aos pulos com a esquizofrénica adolescente e com o meu Jão, junto às putas do Cais do Sodré, It's the end of the world as we know it, não imaginava isto: chegar ao jornal de referência onde escrevo notícias e passarem outros redactores, de outros pisos, a perguntar: Qual é o teu blogue, Ralha?
E o inominável a sair em minha defesa, a proteger-me como tem feito sempre desde que descobriu a tralha, divulgando-a pela elite da blogosfera, mas impondo votos de silêncio, palavra passe renovável ao fim do dia, e eu gostava mais assim, quando éramos poucos, agora tenho que me habituar, e ele a dizer qualquer coisa do género "hás-de ter muita merda a ver com isso", mas, neste momento, toda a gente sabe que tive um homem na minha cama, até se fazem apostas de quem é ele, e não, não é o que escreve bem (este fala bem, fala com uma voz ainda mais bonita do que a do Manuel Alegre, se querem que vos diga).
Algo se passa desde Domingo, desde o post "Deixa aproveitar" - que ninguém comentou e ele está de rastos. Já lhe expliquei que o problema não é ele, é um bom post, que fala de uma demanda inglória em busca de um amor literário, é precisamente o que ando à procura, cada vez escrevo melhor, cada vez defino mais o meu estilo e, por isso, topo à distância Claras Pinto Correia, cada vez mais olhos pairam por estas bandas, e é isso que eu procuro, mais do que jogar às escondidas com invólucros de preservativos e peças de roupa interior (falta-me encontrar ainda um soutien; a casa, para além de demónios que vêm tomar a ceia e trocar dez dedos de conversa - quantos mais dedos houvesse, mais obedeceriam cegamente aos demónios -, tem também bichos papões que se alimentam de peúgas desemparelhadas e isqueiros psicadélicos comprados no Lidl de Xabregas), mas, também já lhe disse para não lançar foguetes, mostrei ao homem da minha cama o meu quintal, ele mostrou-me o dele, cheio de ervas daninhas, prometeu ganhar calos a cavar com a enchada e que depois mo mostrava arranjadinho, mas duvido que tenha cá voltado, ele estava cá para aproveitar a ressaca eleitoral, não estava cá para bajular o meu ego literário.
Mas algo se passa. Comecei a escavacar o dedo pai de todos da mão direita nessa tarde. E eu só ponho o pai de todos na boca quando algo se passa.

Não é um recado

You have to understand: I'm jealous of everything that moves, I'm jealous of the rain. I am a jealous man.

Maurice Bendrix (Ralph Fiennes), The End of the Affair, Neil Jordan, 1999.

Um diálogo. A propósito de ciúmes. E não é um recado.

Estou muito assustada com as audiências do quintal - se estivesse listada, estava já no top 100, com 250 visitantes únicos, e 710 visitas. Isto não é um recado.

Estou muito preocupada com lágrimas que esborratam letras desenhadas em folhas brancas de papel. Não é um recado, mas declaro aqui ao mundo que passei a escrever para ela, dedico-lhe todos os posts desde que me passou a fazer companhia nas noites em que não há homens na minha cama (e para que não pensem que eu sou uma putéfia, não tinha um homem na minha cama há uma eternidade de tempo, é melhor nem especificar que parece mal).

Estou a trabalhar na renovação gráfica da (T)ralha. Se tudo correr bem, nos próximos dias hão-de cair para o lado de choque. Nós os conservadores, somos atreitos à mudança, gostamos de rotinas de prazer, passamos 27 anos sem saber o que é um mil folhas, mas quando é para mudar é para mudar a sério. Não é um recado.

Fora do armário (não compliques)

Eu não costumo ficar para dormir, disse o homem que desfez os lençóis da metade direita da minha cama, já os galos andavam a cantar nas quintas às portas da minha cidade e o sol faltava à chamada do amanhecer, só para encobrir os amantes da cama com vista para a Duque de Loulé. Sabes onde fica a porta, não sabes? Eu não espero nada, és um homem bonito que está na minha cama, és um homem tão bonito, como é que estás na minha cama, não compliques, caralho, não complicaste com a depilação que não estava perfeita, passaste a mão pela perna e disseste não está dramático, anda cá, e eu ri-me e não estava de facto dramática, mas eu não gosto de pelos, e eu achava que uma depilação imperfeita era o melhor cinto de castidade, mas não, tu estás na minha cama porque não complicaste. Não quero ir, mas não sei se consigo que me vejas acordar. Não vás então. Não sei se consigo que me vejas acordar, sabes, não gosto das minhas pernas, são iguais às do Zé Ralha, não olhas para as minhas pernas. E tu não olhas para o meu cabelo. Não olho não. Olho para a sarda que tens debaixo do olho esquerdo. Para o dente ligeiramente mais escuro da frente. Olho para o homem bonito a quem despudoradamente me insinuei. Com uma lata nunca vista. Mas não espero nada, se não tivermos nada a dizer um ao outro, abres a porta e não tenhas vergonha de ir embora sem dizer uma palavra, sem um beijo. Não compliques. E depois de mais beijos, e depois de mais um preservativo, habituados à vida de solteiros, adormecemos de costas voltadas, um para cada lado e eu não te deixei ficar com a almofada de sumaúma, ficaste com a de penas.
O homem que estava na minha cama acordou quando toda a gente já almoçava e teve medo de sair do quarto. Ligou-me para o telemóvel. Mas o telemóvel tinha ficado a dormir no carro. Chamou o meu nome e eu estava a escrever um post, sentada no sofá laranja, na TV passava os parabéns do canal Panda. Teve medo de me ver. Teve medo de ser visto. Mas eu acordei assim, bonita. E ele acordou despenteado, muito. E eu dei-lhe os óculos que tinham ficado a dormir no meu chão centenário de tábua corrida. E brincou com a minha filha na cozinha, hipnotizado pela máquina a lavar lençóis brancos, e comeu a sanduíche mista que preparei, e bebeu a UCAL de chocolate, e perguntou se podia voltar, e beijou-me em frente ao boteco da Dona Beatriz.
E não ligou. E não vai ligar. E não faz mal.

Copiei com carinho

Há uma Clara Pinto Correia em todas nós.

Luxúria II

segunda-feira, janeiro 23, 2006

Luxúria


Três horas de sono. Nenhuma maquilhagem em cima. Metade do país de luto. No primeiro dia do Cavaquistão, acordei com este aspecto. Com um homem na minha cama, atrás desta parede branca. Com o post todo na minha cabeça. Mas antes lavei a loiça, e arrumei a barafunda, catei invólucros de preservativos. Faz bem à pele.

Amanhã há mais. Bati todos os records de audiências. 611 pageloads. 211 visitantes únicos. À conquista do top ten. O céu é o limite.

33.333

Nada como escrever com parágrafos. Nada como não abusar das vírgulas. Nada como falar de sexo.
As audiências deste blogue estão esquizofrénicas. E eu não sei quem foi o visitante 33.333. Caralho!

Continua um homem na minha cama

Será que respira?
Ou terei que esconder o corpo no closet, onde guardo todos os meus fantasmas?

Tenho um homem na minha cama.

Tenho um homem na minha cama. Não sei o que lhe fazer. Mas é decorativo. Muito.

Acordei com um homem na minha cama. É uma estreia em Santa Marta.
Fechei a porta para ele dormir, para dormir o sono dos justos até às tantas, mas ainda não estou em mim, vou lá espreitar de quinze em quinze minutos e, efectivamente, é muito decorativo, tapado até ao nariz com os lençóis bordados pela minha progenitora há mais de quarenta anos (e não é graças à minha progenitora que eu tenho um homem na minha cama, se não fosse a minha adolescente esquizofrénica, babysitter cinderela, que aceitou à meia noite velar pelo sono da minha filha, eu não teria um homem na minha cama).
Tenho um homem na minha cama, raios, como é que isto me foi acontecer?
E o carro dele estacionado no passeio, em frente ao boteco da dona Beatriz, e eu sem nada em casa, sem um papo seco para lhe dar pequeno almoço, e há doze horas atrás, eu disse-lhe "vai lá tomar o pequeno almoço a casa", mas disse aquilo da boca para fora, estava longe de imaginar que iria ter um homem na minha cama, tenho leite e ice tea no frigorífico, e há meia dúzia de horas, ele: então quando é que nos comemos, caralho? E ele diz mais caralhos que eu, e isso é, também, uma estreia, eu acho que só tenho um homem na minha cama porque ele diz mais caralhos que eu.
E eu de camisa de pijama, com uma pele linda uma noite de ressaca eleitoral, ai porra, adoro o Cavaco, ai que adoro mesmo, e veste o sobretudo castanho, aperta-o até ao pescoço, desce à dona Beatriz e diz: querida, se o carro a estiver a estorvar, bata-me à porta, é do.... e vacilei e depois achei que a dona Beatriz não precisava de ficar baralhada.... é do meu namorado. Dona Beatriz, salve-me: dê-me fiambre, dê-me manteiga, dê-me uns pacotinhos de chá, e leite com chocolate também, já cá venho pagar-lhe, olhe dê-me um maço de Camel, que ele fuma Camel.
Tenho um homem na minha cama, fui lá espreitar, ainda tenho um homem na minha cama, não é liberdade poética, não é do LSD genético, está lá, não fugiu.
E já lavei a loiça, e já pus a máquina a lavar a roupa, e estou a ver o canal Panda, o urso Franklyn, mas continuo sem saber o que fazer. Mas é muito decorativo.

domingo, janeiro 22, 2006

Noite Eleitoral I (título plagiado de um blogue de referência)

Quem venceu as eleições....

... fui eu.

E mais não digo.

Deixa aproveitar

Deixa aproveitar as últimas duas horas e meia sem Cavaco Silva, e já o estou a imaginar, com a sua nova pose de quem caiu num caldeirão de Xanax à nascença, sentado nos jardins divinos do também bonito e ostensivo Palácio de Belém.
Deixa aproveitar que as ressacas, assim como as noites serenas de sono, também nunca me batem à porta, estou fresca como uma alface, apesar das três horas e meia de sono e de uma nódoa negra descomunal na coxa esquerda (desconheço como veio cá parar).
Deixa aproveitar, enquanto não tenho que ir para a sede de campanha do Garcia Pereira e, já que sabem a minha vida de trás para a frente, já conhecem a minha filha, os meus decotes, conhecem-me do avesso, conhecem-me triste, às vezes apaixonada, conhecem-me sempre semi-neurótica - vá lá que os que já me conheceram, que me viram com mais carne que osso, comprovaram que a neurose fica no blogue, a fazer sala aos demónios e a servir cházinho no serviço com folha de ouro da Vista Alegre -, vão ser, também, os primeiros a saber que não votei Garcia Pereira pela terceira vez na vida.
Maldita a hora em que vi os últimos tempos de antena de sexta-feira, que acabaram mesmo à meia noite, antes de se transformarem em dia de reflexão, e eu acho lindo, eu gosto mesmo da alta blogosfera, os meus blogues de eleição, devem ter um qualquer livro de estilo, um código de ética, e também cumpriram à risca os votos de silêncio, não se falou de nada a ver com as eleições, mas, maldita a hora em que fui desfolhar o Cão como Nós, e na sala de voto, da escolinha primária nas traseiras da Igreja de São João de Brito - ainda não me recenseei em Coração de Jesus, se nem o selo da EMEL eu trato e levo multas dia sim dia não, e mesmo assim não trato, a burocracia faz-me taquicárdias, acho que nunca votarei no Liceu Camões -, o senhor diz o meu nome alto, um senhor monhé como eu, mais escuro, e depois entrega o papel, e o senhor Pestana Garcia Pereira a encabeçar a lista (ao menos aqui foste o primeiro, Garcia), e depois, quando já vou com cólicas e tremuras a pensar onde vou colocar a cruz, atira: "Diana Ralha? Eu conheço este nome...". E eu, pernas a tremer, ai meu Deus, que é mais um leitor da tralha, um dos milhares de anónimos que não saem do armário, ai meu Jesus que vai dizer que eu sou a melhor escritora, mas não, é ex-comandante da TAP, falou comigo ao telefone várias vezes, e eu fiquei à vontade dois minutos a reflectir se votava no poeta, se no Pestana. Mas os Pestanas não querem nada comigo, a família toda, ainda hoje, tremendamente alcoolizada, com níveis de THC no meu sangue acima da média, naturalmente, com o LSD genético a borbulhar e as pestanas sem quererem abraçar-se umas nas outras, as pestanas querem é fechar-se no instante imediatamente anterior a um beijo, mas isto de beijos não anda fácil, logo agora que eu tenho os dentes perfeitinhos, quando tinha aparelho, era beijos a toda a hora como os piriquitos, não sei como não apanhei herpes, e com o coração a bater a mil, cheia de pena do meu candidato, fiz o xis no Alegre, quero uma crise no PS, quero um Parlamento dividido, quero, quero, quero... chatear branco. Convenci a Magui a votar, apeteceu-me mostrar-lhe o post do Francisco sobre a sua avó Isabella, mas eu dou-lhe sempre a volta e a Magui também esteve quase a votar no Alegre, mas depois, porque é rebelde, fez bigodes nos senhores e corninhos, como é que eu não hei-de ser a filha da mãe que sou, e escreveu PALHAÇOS!.

Deixa aproveitar, que já só temos uma hora e quarenta e cinco minutos sem Cavaco à primeira volta, e ontem, quando escrevia um mail a um rapaz a quem dou conversa, estava de roupão, de rolos na cabeça, a casa toda arrumadinha, a roupa estendida, a árvore de natal desmanchada (dói-me tanto desmanchá-la, em casa da Magui fica todo o ano, fazendo jus à máxima que Natal é quando o homem quiser), e eu a escrever ao rapaz a quem conto a minha vida toda, ou quase toda, e eu a dizer-lhe, caro, quero dizer-te que não te quero levar para a cama, que não te escrevo para te atrair ao meu covil, não é só isso, não é nada que não tenha passado pela cabeça, mas passa-me tanta coisa pela cabeça, às vezes são tão rápidos os pensamentos que nem picam o ponto, há pensamentos speedy gonzalez, mas não penso muito nisso, gosto do rapaz, gosto dele pelo que escreve, só por isso, e ele a mesma coisa, mas, de repente, as mãos ganham vida, e eu a implorar-lhes, não escrevam isso, e elas de ouvidos moucos, disparam uma imagem e eu a suspirar, já está tudo perdido, eu a erguer as sobrancelhas e a pensar, agora é que lhe dá um treco, as mãos, com os dedos enrugados do banho, escrevem uma imagem que eu até já escrevi neste blogue, mas esse post era só um sonho, era pura imaginação e eu estou a escrever ao rapaz e as mãos dançam a um ritmo louco, traem-me e dizem-lhe: o que é que acontece quando se juntam duas pessoas que escrevem coisas que arrepiam até os pintelhos? Como é? Inspiram-se mutuamente? Aumentam gigantescamente a sua produção diária de caracteres? Ou um apaga-se para dar espaço, glória e reconhecimento ao outro? Em vez de beijos na boca, fazem um post? Em vez de sexo escrevem um blogue? Em vez de se casarem, escrevem um livro? Em vez de discussões, escrevem a encarnado, nas paredes do quarto, em folhas de papel de cenário, estrategicamente pregadas com pionaises na cabeceira da cama?
Como será?
Deixa aproveitar para pensar mais um bocadinho sobre isso. Deixa aproveitar, porque sonhar não paga imposto e a imagem é absolutamente deliciosa.

A glória

O blogue Glória Fácil repete-se a gracinha que o Chico, do Mau Tempo no Canil, fez o ano passado: sou eleita a melhor escritora.
It's the end of the world as we know it.
E apesar de não poder linkar, estou vaidosa.
Estou tão vaidosa que, são quatro e meia da manhã, estou completamente descascada com os decotes do costume, acabada de chegar do Tóquio, com um copito a mais, admito, e tive que ligar o computador da "xaxã" (maçã, em carolinês) para vir agradecer à Ana. E reiterar que, sabe-se lá porquê, tenho saudades das suas botas de estilo militar.
E agora deitar, que se faz tarde e amanhã trabalha-se na cobertura da maravilhosa percentagem de 0,7 por cento que o Garcia Pereira terá nas urnas (é a minha nova aposta para o Garcia).

sábado, janeiro 21, 2006

Mais sinais

Estavam tão apaixonados que até faziam ginástica sincronizada: apesar da imensa distância, abriam o blogue um do outro em simultâneo, na mesma fracção de segundo.

É obra, rais'parta!

Créditos pidescos: statcounter.

Acordar

Hoje, acordei com um assessor do Provedor de Justiça colado à minha pele. Literalmente. Num post it o seu nome e o telemóvel. Que raio de sinal é este?

Que a casa está a precisar de ser arrumada, naturalmente, que nos meus lençóis já se faz arqueologia, magia e bizarrias, diz a filha da mãe da terra-a-terra Srª Dona Prudência. Hoje as fadas não andam por cá. Nem as do blog, nem as do lar. Deixaram tudo para mim, como se eu já não tivesse trabalho suficiente. E deviam saber que sem uma ajudinha eu não vou lá.

sexta-feira, janeiro 20, 2006

LSD. Outra vez.

A história interminável.
Outra vez. Foi sem convicção.
A história interminável ou a história da banda sonora do meu casório?
Mau... É a isso que chamas convicção?

Vou casar com rugas, com uma cicatriz enorme no ventre, com um anjo loiro de cabelo encaracolado atrás e franja perfeitamente lisa a levar as alianças, é certo, mas vou casar com um noivo incógnito, cujo paradeiro ainda se desconhece - se eu for como o avô Oliveira, o meu noivo acabou de nascer há muito pouco tempo, ainda diz pouca coisa, ainda tem rabo de fraldas, só o vou conhecer aos 50, com a menopausa enterrada junto com os afrontamentos, e ele terá acabado de fazer os 25, ainda a disfunção eréctil será apenas uma miragem -, e eu quero casar, eu até já fui ao Expo Noivos da FIL, arrastei o Pedro e o Leonardo, gostei do vestido mais caro, era da Dior, e na banca da dona Lena, no Pingo Doce da Conde Sabugosa, peço-lhe sempre para espreitar as revistas das noivas, papo tudo, hoje em dia, porém, evito ver montras das lojas da especialidade, é uma espécie de dor, o encalhamento, o apenas não ficar para tia porque tenho uma filha, depois vem a imagem da durona self made woman e fico menos nostálgica, quase que tenho orgulho da mulher que sou, a mulher criada pela mulher de pedra que é a magui, fico vaidosa do que conquistei em tão pouco tempo, 27 anos, mas tenho medo de continuar a viver depressa demais, geralmente não é bom sinal, é sinal que se morre antes do tempo, e outro dia, saiu aqui na tralha, três ou quatro posts abaixo, que estou adiantada para o meu destino, pois bem, concordo, bem observado, eu nunca quis, nunca gostei de me analisar, mas aqui simplesmente sai, não comando a mão, sou desbocada por natureza, e sai tudo. Sai tudo e a tendinite faz doer. Sai tudo, quase tudo, sai 70 por cento da alma e ela pasma-se com delicadeza com que expulso demónios - digo-lhes: Demónios, não querem mais nada? Um whiskyzinho? Um táxi para casa? E eles fumam sempre mais um cigarro, tomam sempre mais um Famous Grouse, mas acabam por aceitar a boleia, a Isilda da Retalis, que sabe o meu número de dez dígitos do crédito do pasquim de cor e salteado, sabe o meu e o do Dave também, manda sempre, para os demónios, que são demónios de categoria, um Mercedes com ar condicionado, estofos em pele e tabelier de nogueira, perfumado de baunilha, é o táxi 665+1 (quem leu o post sabe que eu não gosto de escrever o número da besta), e os Demónios foram educados em Oxford, sabem que não têm como dizer não, e entram no carro, dizem, em uníssono, todos sentadinhos lá atrás, a um motorista de enormes bigodes: é para a tralha, se faz favor. Chegam aqui, abrem a gabardina, e por baixo não têm nada, estão em pelota, e aqui sai tudo, sai quase tudo, e, por isso, à noite, eu durmo melhor, ainda assim, apesar do sono andar perdido pelas ruas da minha cidade, durmo melhor, ainda assim, acordo cansada, tão cansada, mas durmo melhor.
Mas quando eu me casar, já não vai ser a mesma coisa e, por isso, vou escrever sobre a história interminável. Está há muito prometida, está há muito na minha cabeça, aqui ao pé dos olhos, porque a vejo bem. Muito bem. Depois da amnésia, recordo-a como nunca. Sei os cheiros de cor, vejo tudo, os ganchos rosa do Hello Kitty das minhas tranças, sinto a mão da avó Tóia a segurar a minha com força, mãos ásperas, enormes, lembro-me de um stand que vendia alcatifas e móveis, uma barraca com artesanato de barro preto, panelas de três pernas de barro preto, sei, tenho a certeza, que havia outra baiúca onde se vendia pratos de barro naifs (não sei do trema, naif leva trema) com motivos campestres, e encontrámos uns amigos dos avós, lembro-me dos foguetes e das canas, do algodão doce, e da roda gigante, vejo tudo como se não tivesse sido há vinte anos.
Vou escrever sobre a história interminável, mas, como ela não tem fim, não sei onde hei-de parar.
Volta atrás com a palavra. Fica uma hora e meia no Altavista à procura de um ficheiro decente, apresentável, da Ária das Variações Goldberg, do JS Bach. Encontra-se. A versão original, para hapsicórdio.
Volta atrás, rebobina. Diz o dito pelo desdito.
A história interminável tem que sair bem, não sei se me entendem. Tem a Feira de São Mateus e o avô Oliveira de chapéu, de colete, tem os cinemas Alfa na Avenida Gago Coutinho, ou talvez seja o Nimas, não, o Nimas foi noutra ocasião, tem sonhos, tens pesadelos, tem cavalos que morrem do pântano dos medos, tem criaturas que se parecem com o meu primeiro gato, o Grieg, tem a Magui num quarto azul da Prússia, com posters nas paredes, comprados na Livraria Sinfonia da Avenida de Roma, tem-me a mim, muito pequenina numa cama de grades encarnada a tirar macacos do nariz e a espetá-los na parede azul, tem lençóis azuis escuros com flores berrantes, na cama do Leonardo, tem lençóis azuis turquesa com carrinhos na minha cama de bebé, tem medo do escuro, tem um candeeiro laranja camuflado com pó, tem, muitos anos mais tarde, conversas de messenger com o meu marido literário sobre a primeira vez que escreveu numa folha de papel, por fim, tem o blog do da..
Este tem que sair bem. Os textos andam perros, falta-lhes o óleo lubrificante dos dias mágicos. Falta-lhes o barroco, a folha de ouro, falta-lhes a arte da filigrana, voltas e voltas e mais voltas, que giram e giram, voltam a girar, que, no fim, dão que falar, voltas que são pesadas e são leves como os corações de Viana.
Um dia vou casar. Não pode ser de outra forma. Com rugas, com cabelos brancos, com filhos, com muitos, ou só com esta de olhos azuis, que dorme na assoalhada que fica do meu lado esquerdo, o do peito, com os meus filhos, talvez com os dele. Vou entrar na sala (eu queria uma igreja, mas não faz sentido, não sou católica), e o pianista vai tocar a ária, se eu continuar a viver no limiar da pobreza, se o noivo não for milionário, porque eu já sei que a Magui é anti-casamento, não me vai dar um tostãozinho, assim como assim, será para divorciar, se eu for uma tesa, o Hugo carrega no play da aparelhagem e o CD tocará, o Leonardo vai levar-me ao desgraçado que aceitar aturar-me por uns tempos e eu vejo sempre o avô Ralha lá à frente, mas não sei se ele ainda cá andará - e eu tenho pena, avô, de não o ver tantas vezes quantas eu desejaria, já lhe dei uma bisneta, sei que no fundo, também lê os meus artigos, sei também que lê com mais atenção os do Leonardo, foi sempre assim, não faz mal, eu sei que deve ter ficado feliz quando andei atrás do Carmona, deve pensar que agora ando no mau caminho outra vez, por estar a seguir o Garcia, e quando o avô morrer, eu vou chorar, eu vou chorar porque descobri mais sobre si numa entrevista da revista da Ordem dos Farmacêuticos, do que em 27 anos de idade -, imagino poucos amigos, a Magui feliz sem querer mostrar, os meus tios com os olhos brilhantes, a Mónica, minha madrinha, deslumbrante, já com o anel no dedo, o anel de noivado, não stresses, Mac, a thê e a malmequer como damas de honor com flores de laranjeira nos cabelos (ahahahahahhaha, sou mesmo tola), eu vejo assim o meu casamento, e quando o senhor do notário perguntar: é de sua livre vontade blá, blá, blá?, eu vou repetir o gague da minha tia Atilde, a dos cabelos pretos asa de corvo, a que está com Alzheimer, se é que já não se finou: "Oh sua besta, se não fosse de minha livre vontade, acha que eu estava aqui?". E o noivo vai corar de vergonha, mas vai adorar-me mesmo assim, como eu sou, bruta como um diamante por lapidar.
Eu sonhei assim. Mas a Magui não me devia ter comprado tantas Barbies. Não me devia ter dado a ler os contos da condessa de Ségur.

Goldberg

Eu sei que escrevi que não gosto de blogues que disparam música sem pedir licença.
Mas há excepções. A Aria das Variações Goldberg, do senhor João Sebastião, é a minha excepção.
Adoro a net, ela adora-me a mim, trouxe-me numa bandeja de prata a partitura original da Aria, que está guardada a sete chaves num museu não sei onde. Descobri este jpeg algures, bem aventurado seja o Altavista (o Google deixou-me ficar mal hoje), esta música e as suas três dezenas de variações foram escritas para um senhor que tinha insónias, a mim não me dá sono, dá-me pele de galinha, põe-me todo os cabelos e pelos iriçados, há quem diga que nem foi o Bach a escrevê-las, foi o seu discípulo Goldberg, pouco importa, é perfeita, a música, a pintura, a literatura e tudo o que há de belo são de quem as apanhar, são de quem se comove, de quem as sente grudadas na pele e esta é a versão original, tocada em hapsicórdio, se bem que eu gosto mais em piano, ou em cravo, mas gosto mesmo do piano, no site erudito de onde saquei a pauta, diz: siga a partitura à medida que a música toca, e apesar de eu não saber ler esta estranha linguagem de breves, colcheias, pausas, claves de sol e de fá, faz tudo sentido. Demasiado.
E mais logo, quando eu estiver mais uma noite sozinha, na Marta, sentadinha no sofá laranja, nascerá o post das Variações, que comecei aqui no jornal, mas que ficou coxo por falta de tempo e de notícias que falharam.
Por enquanto fica só a música. E o teasing. Gosto de tease. O meu nick do messenger nos últimos dias tem sido Miss Teaser.

Faço minhas as palavras do espelho

Cavaco, mesmo mais próximo da minha área política, não representa a pureza e o romantismo político que apenas Garcia Pereira ainda conserva. Porque Cavaco é o hipermercado e Pereira o comércio tradicional; porque Cavaco é o porta-aviões e Pereira o barco rebelo. Porque Cavaco não cola cartazes e Pereira fá-lo com a convicção que essa é tembém a sua missão numa luta que insistentemente tem travado ao longo da vida.Garcia Pereira é um lutador romântico. Tem evoluído, é certo, já não poria bombas ou defenderia a revolta do proletariado, mas continua fiel a um sonho que morrerá sem ver concretizado mas que nem por isso deixará de lutar por ele. Garcia Pereira foi esquecido e quase humilhado pela comunicação social, no entanto, segue o seu caminho, tendo feito a sua melhor e mais lúcida campanha de sempre, tendo sido o melhor candidato.Por isso, o meu voto vai para Garcia Pereira, não por aquilo que defende, não por querer que seja presidente, mas pelo homem que é, e para mim isso vale muito, vale quase tudo. E sem medalhas para oferecer, ofereço-lhe o meu voto.

Roubado descaradamente ao old-mirror.blogspot.com. Ia escrever qualquer coisa muito semelhante. Domingo, pela terceira vez na minha vida, voto PCTP-MRPP, voto Garcia Pereira.

Pesadelo. Reloaded.

Voltaram as insónias.
Este pesadelo é real. É recorrente. É um comentário neste blogue. Acordo sempre a chorar. "Leio-te. Ass: três iniciais de um nome profissional listado na comissão da carteira profissional de jornalista"
Quando eu acordar, ligar o Gmail e o pesadelo se concretizar, a tralha morre.
Não digam que eu não avisei.
Ninguém é viciado em estatísticas se não tiver listado o seu quintal no weblog. O meu não está nem nunca estará. E eu gosto de holofotes. Eu gostava de entrar nessa guerra e, de vez em quando, gostava de linkar os meus amigos bloggers de referência sem ter medo de ser descoberta por uma enorme multidão de leitores. Nunca se perguntaram porque é que eu sou viciada nas minhas estatísticas?
Hoje, o pesadelo andou muito perto. E eu, dificilmente, conseguirei dormir.

quinta-feira, janeiro 19, 2006

Pesadelo

Enquanto namoravam, na caixa dos comentários, debaixo de um ficheiro mp3 fora de lei, que não sabia o que era isso dos direitos de autor, apareceu um bicho mau, um fantasma de um passado não muito distante. E ela jurou que nunca mais voltaria a comentar. Aquele namoro acabou ali, no mesmo sítio onde nasceu. Foi um amor de Inverno.

A triste sina do vestido preto com rosas brancas

O vestido.
Mais um.
Este vestido foi comprado num sábado de penitência judicial (o tempo sara tudo, já não chamo mulher da vida à senhora).
Num sábado em que o cartão multibanco não teve descanso, lá para os lados do Chiado, e a pobrezinha da Astride, sempre fiel, sempre ao meu lado, a acompanhar-me de aparelho de titânio cravado nos dentes, numa dor branca, que não mata mas mói.
No Sábado em que encontrei o Zé Ralha na Praça da Figueira envergando um molho de papiros gigantes (algures semeado neste quintal, para aí em Março, às portas da Primavera: está tudo na minha cabeça, mas eu nunca fui boa nem para datas, nem para nomes).
No Sábado em que pus os pés pela primeira vez na Confeitaria Nacional e ontem, apenas para que fique em acta, saboreei o primeiro mil folhas dos 27 anos que carrego em cada perna, em cada ruga, em cada cabelo branco – nós, os conservadores, somos atreitos à mudança, eu gosto de palmiers simples e cobertos, e quando a Pastelaria São João, na Avenida de Paris, tinha pintado, no estuque das paredes, uma réplica naïf do quadro São João, do pintor espanhol Murillo, (deixa ir ao Google procurar o quadro), com uma placa a informar que dizia: “São João Baptista, de Murillo – Réplica, não fosse a velhota mais incauta pensar, a meio do seu chá e da sua torrada, que aquele era o verdadeiro e que o que está no Prado é que é réplica, e quando eu me sentava com a avó Zá (primeiro íamos à leitaria da UCAL), numa mesa junto à janela, sentavamo-nos sempre ali, quando o São João não era um café com as paredes forradas a azulejos brancos, indiferenciados, e havia para além do São João Baptista outro “fresco” com uma perspectiva impossível da Igreja da Praça de Londres, eu também gostava de palmiers recheados, com um creme branco, tipo chantilly, eu sonho com esses palmiers, mas nunca mais os vi, só há nas pastelarias uns exemplares recheados com creme amarelo de ovos, e eu não gosto de doces com ovos, pudins, iguarias da região de Aveiro, relíquias conventuais não me excitam e as ancas agradecem, ai se agradecem, e eu como sempre bolos de arroz, dos verdadeiros, dos feitos com farinha de arroz e não as falsificações, gordurosas como queques que se vêem por aí, os que têm papel na base, é o meu bolo favorito, depois vem o xadrês, depois, talvez, o vává, e agora mais recordações de verões passados, na pastelaria Doce Beira, a dois passos da nossa casa de Viseu, vávás – não como vavás há tantos anos – devorados em banquinhos volantes ao balcão, mas eu nunca tinha comido um mil folhas e nem é mau de todo (o mesmo se aplica ao presunto e à sapateira recheada, mas continuo a ter as minhas reservas ao salmão fumado, ao caviar, aos camarões e percebes, que teimei durante anos odiar sem nunca ter provado).
O vestido não merecia. É um bom vestido. Lindo. Que me favorece. Devia ficar como o vestido com o qual aterrei nos Emirados Árabes Unidos, depois de uma viagem de avião de oito horas. Ou de um jantar em que a Qui Qui confundiu erva com coentros (foi estreado nesse jantar, nesse jantar memorável, que estreou os posts fotográficos deste blogue). Mas não. É o vestido da pior sessão de intimidade da minha vida. Recordação feliz, porém, sentada num sofá, vestido já no corpo, descalça, soutien abandonado algures no chão (e por lá ficou algum tempo – eu não posso ser amante, deixo sempre provas, uns brincos, um anel, cabelos, até soutiens), cigarro na boca, estás perfeita, posso tirar-te uma fotografia?
Não tirou, não deixei. Parece-me que este tem registos, como no fabuloso post do Francisco que eu não posso linkar – coisas da vida, quem o manda ter um blogue famoso. E a seguir ao meu nome, e à minha foto, perfeita, com o vestido preto com rosas brancas, viria: “a que ressuscita os mortos”.

O que tu me fazes

Toda a gente tem os seus inomináveis, os seus incitáveis, os seus inlinkáveis (palavra nova, que acabo de inventar) fechados na gaveta, escondidos entre as cuecas e os soutiens.
Brincar às escondidas é muito giro, ao quarto escuro também, mas na penumbra todos os gatos são pardos e parvos.
Este poeta escreveu um naco de prosa que eu quero partilhar com a audiência silenciosa. E toda a gente devia enterrar os senhores que não se podem nomear, citar, ou linkar.
É que sabe mesmo bem poder linkar à vontade.
Aqui.

Fotos. Para variar.

De um dia em que a minha mana me apanhou a escrever um amor perfeito. Ainda no Toshiba. O meu saudoso Toshiba, que está muito bem entregue aos cuidados de um amigo que anda às voltas com o seu livro.






Espero que o Toshiba seja tão generoso como foi para mim.

quarta-feira, janeiro 18, 2006

Sonho

[e a História Interminável continua em draft, e há ainda um outro, a ser escrito no Word, apenas por falta de auto-estima e confiança a passear no piso menos cinco - ando a dar erros de quarta classe e o corrector ortográfico da aplicação da Microsoft sublinha a palavra sempre que eu enfio um prego a martelo na língua de Camões]

Conheceram-se por acaso na caixa dos comentários, era um T0 minúsculo, onde, às escondidas de todos os outros comentadores, trocaram o primeiro beijo, um beijo feito de palavras.
Começaram a namorar ainda eram "anónimos", num post florido de arrobas e ela soube, nesse preciso momento, que tinha encontrado o amor. De olhos fechados, não precisava deles para escrever mais beijos, fez uma promessa: iria até ao blogspot de joelhos, agradecer à Santa Google, por ele ser um blogue democrático, com caixa de comentários aberta a todos os anónimos da blogosfera. De vez em quando, porém, ele censurava comentários e ela zangava-se, zangas sérias em que passavam dias sem escrever um post.
Cimentaram aquele amor no Gmail, foi ali, nesse país cotado na bolsa, que ele lhe disse uma tarde que queria passar todos os dias a seu lado e ter muitos blogues que fossem tão bonitos como os da mãe.
Na noite de núpcias, fundiram os seus blogues num só.
E viveram felizes para todo o sempre.

[Eu sonhei isto. O pai do LSD fez cem anos há pouco tempo, mas, por mim, podia nem ter nascido, os alucinogéneos estão-me nos genes]

Ode à Ana

A Ana foi-se embora, não sei porque me faz falta, nunca fomos amigas, nunca trocámos mais do que cinco minutos seguidos de banalidades: a Ana dizia, no fumódromo do piso de cima, onde eu antigamente me deslocava amiúde para fumar cigarros com o senhor que se assemelha demasiado à imagem que faço de Deus, que o meu cabelo estava muito bonito, e eu retribuía como podia, gabando-lhe as botas de estilo militar, cobiçando-as mesmo, e eu devo ter sido das últimas a saber que a Ana se ia embora e, na altura, a única coisa que me ocorreu dizer foi que ia em grande estilo, com um corte de cabelo excepcional. Um dia, soube que a Ana lia a tralha, nesse mesmo dia, o desbroncado do inominável mais citado deste blogue, revelou-me que muita gente "importante" lê o meu quintal e eu levantei a sobrancelha direita e tive medo de voltar a escrever. Noutro dia, estávamos os três na varanda aqui do meu lado direito, com vista para os plátanos agora nús da Viriato, e a Ana disse, a despropósito, tu escreves muito bem. É de uma liberdade... E eu fugi, envergonhada, sem saber como gerir esse elogio.
A Ana foi-se embora e eu não sei porquê sinto muito a sua falta.

Festa, festa (eu não posso ir, mas se pudesse...)

Esta sexta-feira, festa da última sexta-feira sem Cavaco Silva em Belém, na discoteca Europa.

terça-feira, janeiro 17, 2006

De mansinho

Eram 22 horas e 17 minutos, o episódio do CSI tinha acabado, os assassinos presos, a mulher queimada e grávida do melhor amigo do seu marido abriu um olho, foi a última frame, são quantas frames por segundo?, 16?, 24?, não me lembro, a Magui preparava-se para mudar do AXN para o GNT, a Magui está viciada no canal brasileiro, a malga do caldo verde descansava no meu colo, a Carolina brincava com os gatinhos bébés - é o gatino bébé, dizia, entre os meus automáticos "cuidado Carolina" -, a minha mãe fumava um Português Suave Amarelo e eu ergui os olhos do azulejo do chão que está partido, partido pelo arremesso de um cinzeiro de pedra pela minha filha, e disse: "Foda-se, era tão simples".
E depois levei o polegar e o indicador da mão direita ao início da cana do meu nariz, a tocar no orifício de onde saem as lágrimas, ainda pensei que bom que foi chorar hoje, e no fumódromo, o chefe preocupado comigo e eu a explicar-lhe que no dia em que soube, no corredor, que se preparavam para me sodomizar (a ausência de calão neste parágrafo é para o meu leitor anónimo; já está um asneiredo lá em cima) novamente, depois de eu abdicar da minha filha tantos dias consecutivos, chorei de raiva, chorei sem lágrimas, e eu, chefe não te preocupes, eu agora rio-me, sou incapaz de verter uma lágrima, estou crescida, já chorei muito, mas quando eu estava com o polegar e o indicador como molas da roupa na cana do nariz ainda pensei, numa micro-fracção de segundos, se calhar está entupido, se calhar tenho que beber mais líquidos, mas fechei os olhos, franzi o sobrolho, imprimi mais umas rugas no canto dos olhos, baixei a cabeça, abanei-a para um lado e para o outro, em sinal de reprovação, tudo isto sob o olhar atento da Magui que não estava a perceber nada e que deve ter ficado preocupada porque não lhe expliquei de que se tratava - a Magui sabe que eu tenho um blogue, onde escrevo demais, onde escrevo as histórias sinistras da família que ela de quando em quando vai deixando transpirar pela sua pele muito seca e muito branca, mas não sabe o que é a Internet, já viu, já lhe tentei pegar o bichinho, mas ela não tem tempo, cuida dos gatos, dos cães, dos pombos, dos piriquitos, dos melros e ainda cuida da neta -, e também não vou escrever agora.
Mas acho que estou a dar em doida. Hoje, depois do apagão da memória, abri a conta do Gmail desta tralha, com o intuito de dizer a um leitor que o sigo com muita atenção, que gosto de ver o que os seus olhos vêem, de ouvir as cordas dos violinos que tocam no seu bonito blogue (acho que é o mais bonito que eu já vi) e quando me aparece a inbox à frente dos olhos, surpresa, magia, abracadabra, pim pam pum, e andava eu hoje a queixar-me que os dias andavam muito normais, que nada de extraordinário acontecia desde Sábado, desde o vestido voador que aparece na caixa do céu aos trambolhões para ser estreado numa noite quente, e aparece-me o leitor como que por transmissão de pensamentos, mas antes, antes de abrir o e-mail dei para desafiar o destino, pedi-lhe: dá-me dias menos iguais aos anteriores, por favor, faz isso porque senão eu definho, e faço o login e a inbox tem um e-mail que se chama "de mansinho", foi baptizado por mim, ele fez reply de um mail muito antigo que eu lhe enviei, e repete-me que eu escrevo de uma forma crua e nua, e eu não concordo com o crua, acho que a minha escrita é meia barroca, cheia de folhinhos, de bordados à mão, de rendas de filet, quanto ao nua, é, de facto, a minha imagem de marca, por isso é que há tantos olhos a pairarem por cá todos os dias, porque uma mulher despida é um espectáculo difícil de se resisitir, e eu não sei quem ele é, sei que ele gosta de me ler, que acha que eu sou neurótica, que, às vezes se diverte, e eu apenos o sinto muito próximo de mim, a pisar a mesma calçada que eu piso todos os dias, e o post da Feira de São Mateus e das farturas tem a ver com o seu último post, e eu escrevi-lhe sobre esse post, porque me impressionou logo pela manhã, e como é que eu não me lembrei que era sobre isso que eu queria ter escrito dois posts abaixo. Cansaço? Loucura? Não sei. Mas porque raio é que só me lembrei no final do episódio do CSI?
Estou perturbada. Não consigo escrever uma história interminável esta noite. O post, o próximo, chama-se assim mesmo: história interminável.

Frases soltas; frases que são tudo menos feitas, que vai na volta até são premonições

desejo[me] diz: contigo foi mais assim
desejo[me] diz: tu vê lá, Maria Teresa, se a menina da bébé não é lésbica
desejo[me] diz: e eu desato-me a rir
desejo[me] diz: e ela logo a seguir: não posso ver novelas malucas à noite que me fazem sonhar muito
Grande [G]ralha diz: Ai, as premonições da Dona Ester...

(...)

Grande [G]ralha diz: Eu podia casar com aquele homem
desejo[me] diz: Pois podias
desejo[me] diz: Se ele fosse fiel

(...)

Malmequer diz: GRANDE POST!
Malmequer diz: O texto é lindo
Malmequer diz: Não percebo é como um cão te põe a escrever tão bem...

Amnésia - post decepado na Feira de São Mateus

Na Feira de São Mateus – quem será este santo?, e lá estou eu com as minhas dúvidas biográficas acerca dos Santos, who cares?, porque é que eu me consumo tanto com o que não vale a pena, com o que é acessório e, depois, o essencial esfuma-se, todas as noites, nas beatas que se acumulam no cinzeiro, e o cinzeiro nem sequer é um cinzeiro, é um pedaço de vidro laranja que nasceu para ser a cama de uma vela, não nasceu para ser depósito de beatas, mas é mesmo assim, não é? Todos nascemos fadados para um determinado destino, mas às vezes chega-se tarde, o despertador não tocou, os lençóis estavam quentes, o dia estava cinzento, só mais cinco minutos, já vai, e havia trânsito, pára-arranca, buzinadelas, suspiros, ajeita o cabelo no espelho da pala do sol, suspira de novo, um cabelo despigmenta-se nesse preciso instante e fica branco, ou nasce dessa mesma cor de geração espontânea, é que nem todos andam na faixa do BUS despudoradamente como eu, nem todos pensam a 300 à hora, nem todos se preocupam com quem foi o São Mateus e, se calhar, eu não cheguei tarde, não estou atrasada, cheguei mas foi cedo demais e fico com um nervoso miudinho quando estou à espera –, uma vez comi tantas farturas com o avô Oliveira que, só 16 ou 17 anos mais tarde, numa madrugada alta do dia de Santo António, na Praça dos Restauradores, à procura de um táxi que me levasse a casa, desde a casa dos Bicos, com umas meninas aflitas dos pés uns metros atrás, é que voltei a enfiar um frito daqueles pela goela abaixo, com muito açúcar e, ou a fome era muita, ou então o recalcamento de uma noite passada em branco a vomitar há muitos, muitos anos atrás, se apagou com o passar dos dias.
E se eu vos disser que não me lembro a que propósito vêm as farturas e a Feira de São Mateus, acreditam? Fugiu. Desconhece-se o seu paradeiro. Foi apanhar sol, e eu queria agarrar nas duas adolescentes esquizofrénicas e na minha loira e plantá-las ao sol, ouvir os gritinhos histéricos da Carolina ao ver as conchinhas e o mar, o post foi para lá sozinho, gostou da imagem da minha cabeça, fez as malas e partiu sem se importar com quem ficou para trás com um texto decapitado.
Era prudente parar. Mas eu não posso parar, guardem as facas na gaveta, fechem as janelas, não se atirem, não posso parar, apesar de me começarem a irritar os erros ortográficos que nunca dei (se eu paro de escrever não tem acento como eu escrevi, raios, que merda é esta?) e que começam a poluir este blogue como tortulhos (tortulhos são cogumelos em dialecto beirão, esta é uma expressão que a Magui utiliza amiúde e eu sempre gostei da palavra amiúde, é mais um ensinamento perdido do Zé Ralha – e ontem, sem aviso, a descer a Rua do Século vinda do Garcia, descubro que a minha madrasta também lê a Tralha e fiquei em semi-transe, acho que disfarcei bem, mas fiquei em semi-transe –, há uma música dos Xutos, “de Lisboa a Bragança são nove horas de distância, queria ter um avião para lá ir mais amiúde”, e não a miúda, como toda a gente cantava, e o senhor até me ensinou muita coisa e ontem, na loja do Dirk, ainda sorri com a Manuela a lembrar quando ele teimava em armar os filhos, os enteados e todos os seus amigos cavaleiros com o cabo de uma vassoura, e garanto-vos que doía, e também me ensinou a ajoelhar, uma princesa ajoelha-se apenas com uma perna, as coisas úteis que aquele homem me ensinou…).
A culpa deste post manco é de um outro vizinho (outro dia escrevi vizinho com ésse) que não posso linkar, por razões de segurança. Turvou-me os olhos, já não chorava há muito tempo, a beleza continua a comover-me, ao menos isso, já que as aberrações me dão vontade de rir à gargalhada, é um post sobre avós, como o meu era, mas pelos vistos, a beleza também me dá amnésia.

segunda-feira, janeiro 16, 2006

E se eu paro de escrever?

Há muito tempo, escrevi um post com o mesmíssimo nome, e nesse naco de prosa, bem cozido, por sinal, estaladiço, ilustrado por uma fotografia da minha caligrafia impressa por uma Dupond de prata nas folhas amareladas de uma Moleskine, eu declarava ao mundo o início de uma relação perversa e deontia, que alimentei a pão de ló de Alfeizarão durante cinco meses - um amor por correspondência, cujo fermento era apenas palavras, frases que se grudavam na pele, frases que encantavam, frases que faziam doer como sal nas feridas, se assim fosse preciso.
E nessas linhas, que não preciso sequer de rever - a grande maioria dos meus posts estão em backup na minha cabeça, o Blogger pode ir ao ar, as cópias que guardo no Gmail com a label empantanas também - eu dizia, e isto foi a meio de Agosto, que, a custo, ia continuar a arranjar frases, num processo tão doloroso quanto prazenteiro. Porque não era pelos meus lindos olhos azuis, porque eu não tenho olhos azuis, tenho-os apenas nos meus genes (tenho a certeza que escrevi esta frase, sem tirar nem pôr). Era pelo que eu escrevia. Eu não me posso dar ao luxo de deixar de escrever, escrevi eu há muitos meses atrás.
Mantém-se. Só já não é para ele. "Tenho uma audiência esfomeada para alimentar", escrevi eu ao RR, em jeito de justificação da produção frenética desta tralha. E antes tinha escrito às minhas duas adolescentes esquizofrénicas, a dos malmequeres e a dos sapatos liláses: "Acho que vou desmaiar". Escrevi isto, fechei os olhos, e com eles bem fechados, vi bolinhas amarelas e ouvi um ultra-som insuportável.
Mas hoje, apesar de ter tomado café na Hagen Dazs com a Marta e de ela falar como os homens, de lhes ter lido a cartilha, a tal que injectam aos meninos mal eles acabam de inspirar o primeiro oxigénio das suas narinas, apesar de o meu coração ter estado em vias de rebentar pela primeira vez desde Dezembro, e de a médica de Medicina do Trabalho ter tido ganas de discar 112 e de eu a ter impedido, e depois de me ter mandado para casa imediatamente sem apelo nem agravo, e eu, nem pense, tenho um texto para escrever, aos 23 anos tive a minha primeira macacoa, 17 de mínima, 27 de máxima, 160 batidas por minuto, aí sim, tive que parar, doutora, fui para o Hospital porque não aguentei quatro serviços num dia e uma greve geral da função pública, e eu sem conseguir respirar numa conferência de imprensa, sem conseguir respirar na linha amarela do metro, e depois a máscara do oxigénio no nariz no centro de saúde e eu a pensar no desgosto que a minha mãe teria quando soubesse que eu tenho um coração fraco, mas antes, a senhora da farmácia muito aflita e eu: só preciso de uma embalagem de Nasex, não consigo respirar, estou um pouco aflita, tenho o nariz entupido, eu a suar em bica e ela sente-se, sente-se, a menina não está bem, e mede a tensão com os aparelhos automáticos e aquilo dá erro, mede com o manual e não acredita, chamem o INEM, grita, e eu, calma minha senhora, eu tenho que escrever três textos, ninguém chama o INEM coisa nenhuma, aliás, eu chamo o INEM, o meu ex-marido socorre-me, vem a voar, e assim foi, e ainda escrevi um texto, mas hoje estava só a 10 de mínima 18 de máxima, 110 batidas por minuto, isso nem é taquicárdia que se apresente e tenha calma, eu não estou nervosa, isto já passa, e eu devia, mas para que é que lhe ia contar, que trago um segredo no meu peito que às vezes me destrói, como é que lhe explicava que tenho o coração descompassado por uma história que é feia demais para ser contada, e nos registos da Unimed, de há quase três anos atrás, eu pesava menos dez quilos, eu tinha uma depressão enorme em cima dos cornos, mas a tensão era estável, normalíssima, 11/7, e eu estava grávida, foi esse médico quem me disse para ir comprar um teste à farmácia, eu estava grávida e já o sabia, disse-lhe que tinha medo de estar grávida, e nessa consulta eu fiz tudo, mas tudo, para ele me considerar inapta para o trabalho, disse que ouvia vozes, que não tomava os ansiolíticos, apenas os excitantes, que me drogava, que bebia muito, que misturava tudo no shaker e tomava de um trago só e quando me pediu para ler as letras eu inventei um novo alfabeto, mas, no fim de tudo, disse-me apenas para eu ir comprar um teste de gravidez e considerou-me apta para trabalhar. Apesar de tudo isto, dizia eu um parágrafo acima e muitas vírgulas depois, não consigo escrever as frases que estão na minha cabeça.
E se eu paro de escrever?