Esquizofrenia das coisas pequenas (II)
Chamava-lhe a esquizofrenia das coisas pequenas.
Era um estranho conceito, os cépticos não acreditavam na esquizofrenia das pequenas coisas. Nem reparavam.
Ela explicava assim: "É quando os astros se alinham: Vénus entra em triangulação com Júpiter e Saturno e fica tudo em pantanas, há sangue, há suor e há lágrimas em doses cavalares; é quando o tempo pára aos nossos pés e as mais básicas leis da física apanham um vírus terrível que as corrompe, que as perverte; é uma viagem de ácidos de todos os elementos da natureza ao mesmo tempo".
Era o melhor que podia e sabia explicar. Era pouco, sabia, assim ficavam na mesma, isto era muito vago, podia ser qualquer coisa.
Mas ela não estava interessada em prender o conceito numa folha e registá-lo na Sociedade Portuguesa de Autores, nem tão pouco almejava que entrasse nos registos virtuais da Wikipedia, muito menos daria entrada da patente no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Era, mais uma vez, uma tese louca só sua.
E perseguia-a há muitos anos.
Desde que, uma manhã, estava na casa de banho grande de Viseu - e era mesmo grande, era maior que a sala onde está, neste momento, a tentar explicar o que é isto da esquizofrenia das coisas pequenas -, o seu avô Oliveira tinha tirado os dentes de molho num copo de vidro, o sabonete Patti, da Ach Brito, descansava na cerâmica do lavatório, um pincel de barba espalhava espuma branca na cara do seu avô velhinho, e no chão de mármore, muito frio, surgiaram, do nada, os mais loucos desenhos, ela ficou hipnotizada com os veios da pedra, deixou-se levar por um exercício de imaginação idêntico ao que os sonhadores fazem a olhar as nuvens do céu. Começara nesse instante, na casa-de-banho grande de Viseu, a esquizofrenia das coisas pequenas.
Era disto que falava, daquilo que se estava a passar, neste preciso instante, no chão de tábua corrida de uma casa de quatro assoalhadas na Rua de Santa Marta: o pequeno aquecedor, que estava a um canto a bufar ar quente, como a chofagem do Idea, na viagem de retorno a casa da noite passada, fazia rodopiar, aos seus pés, dois balões, um azul turqueza e um cor-de-rosa, numa dança de roda louca e frenética.
Encantava-se com estas coisas.
Com a vizinha do prédio da frente, todas as santas manhãs a comer maçãs à janela, de lenço verde à cabeça - começava a desconfiar que a vizinha tinha um cancro, que estava a fazer quimioterapia; de um dia para o outro deixou de lhe ver o cabelo grisalho, muito curto, mas farfalhudo, para a ver de lenço verde à cabeça.
Com o lugar de estacionamento à porta do seu prédio, que a aguardava, inquieto, noite após noite, fiel, e não era só o demónio do estacionamento que a esperava de braços abertos. As pequenas coisas tinham enormes braços, aceitavam-na tal e qual como era, cheia de defeitos, com algumas virtudes fluorescentes e raras, viviam apenas para a afagar.
Era o vizinho que chegava na mota de competição, ao mesmo minuto que ela - devia ficar escondido à esquina, à espera de ver surgir, do Largo das Palmeiras, o Idea dos estofos laranja; só assim se explicava que o encontrasse todas as noites e da esquizofrenia doentia dos encontros nocturnos, nascia uma rotina, já esboçavam sorrisos e desejavam-se mutuamente uma boa noite.
Não a largavam, as pequenas coisas esquizofrénicas. Era o leitor 33.333, que a tinha ajudado, madrugada fora, sem a conhecer de lado nenhum, a escrever o texto do Bairro da Liberdade; era as cinco horas que passaram no Princípe Real a esvaziar as memórias das suas famílias disfuncionais debaixo de uma Ficus muito velha, que já viu de tudo nesta vida, que guarda memórias nas suas gigantes raízes aéreas (era ele aparecer na outra janela do computador, mal ela tinha acabado de escrever esta frase).
Era o homem decorativo que a acordava às cinco da manhã, com um telefonema, e em vez de dizer "estou?", começava a ler o post "Tenho um homem na minha cama" com a sua orgásmica voz de rádio, era a sua franqueza e javardice (se ela fosse um homem era como ele, era menos gira que ele, "hoje fodes-me?", perguntava ele outro dia).
Era o brinco de platina que tinha desaparecido no dia 6 de Janeiro, era o responso dado ao Santo António a semana passada, era o brinco a aparecer, por magia, no último degrau das escadas de um quarto andar a pique, as escadas que subiu e desceu, dezenas de vezes, nas três semanas em que a argolinha de platina, que o grande amor da sua vida lhe ofereceu no dia em que completou 21 anos e a pediu em casamento, andou a vadear pela cidade.
Era o sensor do estacionamento a apitar, histérico, a gritar-lhe aos ouvidos que estava quase a beijar o pára-choques do Mercedes branco, que está plantado, há meses, no mesmo rectângulo do asfalto - até já havia ervinhas a rodear os pneus -, era o tinido irritante do aviso de iminente colisão, e era, de geração espontânea, lembrar-se onde tinha enfiado as papeladas do IRS, que procurava desde o final do ano passado.
As pequenas coisas estavam esquizofrénicas em estado terminal. Alucinavam de 33 em 33 minutos. Ela deixou de lhes dar o lítio de manhã, à tarde e à noite, em vez de as acalmar, fazia-lhes caldos de galinha, para se manterem fortes - sabia que, da mesma forma que faziam orgias, desapareciam sem deixar rasto, sem um bilhete de adeus. E era mais feliz no caos esquizofrénico.
E dois segundos antes de nevar em Lisboa, o computador de bordo do seu Idea, apitou e disse: Perigo Neve. Foi dos momentos mais lindos da sua vida.